Presença Ética-2002-ANO 2-VOL. 2x

APRESENTAÇÃO
Este é o segundo número da Revista “Presença Ética” que tem como tema: Ética,
Política e Emancipação Humana. A intenção dos (as) autores (as) é suscitar o debate
sobre a ética, enquanto dimensão da sociabilidade humana, ultrapassando a concepção
conformista que permeia a discussão atual sobre “ética na política”. Os artigos buscam
elucidar a premência de uma visão da subjetividade em sua inter-relação com a
objetividade. Em síntese, trata-se de pensar que o indivíduo social é resultante das
circunstâncias históricas, mas que essas mesmas circunstâncias são frutos da ação
humana. Neste sentido, a política não pode ser vista apenas como expressão da relação
de dominação de uma classe sobre outra, mas também como mediação para o processo
de construção de uma sociedade emancipada.
Os artigos que compõem este número de “Presença Ética” buscam elucidar a
importância da construção de valores novos, visto que o individualismo que está
subjacente à lógica capitalista não pode dar sustentação a uma sociedade livre da
dominação e da exploração. Dentro desta mesma ótica, busca-se estabelecer uma
postura crítica diante do engodo das teorias éticas contemporâneas que, se por um lado
anunciam, nos seus discursos, a perspectiva da justiça, da liberdade, por outro,
contradizem-se quando insistem em defender as relações sociais que fundamentam o
modo de produção capitalista.
Esperamos com isto influir no processo de emancipação humana pelo qual
almejamos, considerando que todos somos sujeitos históricos e, portanto, responsáveis
tanto pela crítica contundente, quando pela redefinição da história.
Agradecemos à coordenação da pós-graduação em Serviço Social da UFPE, em
especial à Profª Ana Elizabete Mota, pelo incentivo a esta iniciativa que se materializou,
também, pelo apoio financeiro. Agradecemos, também, aos (às) colaboradores (as); aos
membros do Conselho Editorial e aos que contribuíram com seus artigos. Esperamos
consolidar essas novas parcerias nas próximas edições.
Comissão Editorial
Ética e capitalismo
Ivo Tonet*
Introdução
Nunca, como hoje, se enfatizou tanto a importância dos direitos humanos, a
necessidade do respeito à vida humana, de uma relação harmônica com a natureza, de
uma ação política eticamente orientada, de uma recuperação dos verdadeiros valores.
De outro lado, nunca foi tão disseminada a consciência de que há uma enorme confusão
na área dos valores. Em todas as dimensões da vida social, valores que antes eram
considerados sólidos e estáveis sofreram profundos abalos. Há uma sensação geral de
desnorteamento e de insegurança. Parece que, de uma hora para outra, a sociedade se
transformou num vale-tudo, onde não se tem mais certeza do que é bom ou mau, correto
ou incorreto. E, sobretudo, parece que os valores que mais se impõe, são os de caráter,
individualista, imediatista e utilitário, chegando, muitas vezes, ao cinismo mais aberto.
Aspira-se a um mundo justo, solidário e humano, mas parece que estes valores se
tornam cada vez mais distantes.
O objetivo desse texto não é o de refletir sobre o conjunto das questões
implicadas no título acima. Pretendemos abordar apenas um aspecto. Trata-se da fratura,
cada vez maior, que se está abrindo no mundo de hoje, entre a realidade objetiva e os
valores éticos proclamados.
Que há uma dissociação entre dois momentos, na sociedade capitalista, é algo da
natureza desta forma de sociabilidade. Que hoje, com as possibilidades que estão à
disposição da humanidade para superá-la ela esteja se tornando cada vez maior, eis o
que move a nossa reflexão.
* Prof. Do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas. Doutor em
Educação pela UNESP - Marília.
1. Um período de decadência
Para aqueles que admitem que as classes sociais são os sujeitos fundamentais
(embora de modo nenhum únicos) da história, o ano de 1848 marca o início do período
de decadência da sociabilidade burguesa. Isto porque foi neste ano que a burguesia
derrotou um conjunto de tentativas feitas pela classe trabalhadora de vários países
europeus, para eliminar, pela raiz, a exploração do homem pelo homem. Sem dúvida
esta não foi uma vitória definitiva – mesmo porque isto é algo impossível – do capital
sobre o trabalho. Contudo, esta vitória, de grande importância exatamente porque se deu
sobre a classe trabalhadora dos países mais desenvolvidos, permitiu à burguesia
consolidar plenamente o seu poder econômico e político. Viu, então, abertas diante de si
as portas para um desenvolvimento extraordinário das forças produtivas e para a
configuração de uma ordem social à sua imagem e semelhança. Contudo, isto também
significou, como foi muito bem expresso pelo lema positivista “ordem e progresso”, que
o desenvolvimento da humanidade, daí para adiante, se faria tendo por base a
propriedade privada e, portanto, a continuidade da exploração do homem pelo homem.
Como conseqüência, aquele impulso progressista, que levava a burguesia,
desde o seu nascimento, a demolir as barreiras que a ordem feudal colocava ao
desenvolvimento da humanidade, agora se transformava em uma força conservadora.
Naquele primeiro momento, em sua luta contra a ordem feudal, a burguesia foi
responsável pelo impulso conferido ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia; pela
supressão dos privilégios feudais e, portanto, pela ênfase na igualdade de todos os
indivíduos; pela valorização da razão e da atividade humanas; pela intensificação do
caráter universal da humanidade e pela ampliação do processo de individuação.
Tudo isso, não obstante ter sido realizado a um custo altíssimo de violência e
exploração, abriu caminho para a elevação de toda a humanidade a um novo patamar de
existência. Neste sentido, vale a pena ressaltar o caráter decisivo que a revolução
industrial (1760-1830), capitaneada pela burguesia, teve para o desenvolvimento da
humanidade. Com a revolução industrial, a humanidade viu abrir-se, pela primeira vez
na sua história, a possibilidade de produzir riqueza suficiente para satisfazer as
necessidades de todos os homens. Contudo, foi exatamente o enorme desenvolvimento
das forças produtivas, que se iniciou a partir dela, que tornou claro, desde então, que a
desigualdade social, como todo o seu cortejo dos chamados “problemas sociais”, já não
era uma questão de escassez de conhecimentos, de recursos, de tecnologia ou de bens,
mas um problema de exclusiva e total responsabilidade das relações entre os próprios
homens.
Este é exatamente o fundamento da decadência desta forma de sociabilidade.
Uma ordem social que, tendo alcançado a possibilidade de criar riquezas capazes de
satisfazer as necessidades de todos, vê-se impossibilitada de atender essa exigência. E
que, para manter-se em funcionamento, precisa impedir, de maneira cada vez mais
aberta e brutal, o acesso da maior humanidade toda no sentido de uma elevação, cada
vez mais ampla e profunda, do seu padrão de ser (ontológica e não apenas material e
empiricamente entendido), o que se vê é uma intensa e crescente degradação da vida
humana.
2. O que é decadência
Para evitar mal-entendidos, vale a pena clarificar um pouco esse conceito.
Quando falamos em decadência não estamos afirmando que, de 1848 para cá, as coisas
se tornaram piores em todos os aspectos. Tal afirmação não faria sentido, uma vez que
ela é contraditada pelos próprios fatos.
Na esteira marxiano-lukacsiana, entendemos que a sociedade é um complexo de
complexos. Vale dizer, uma totalidade (sempre em processo), articulada e formada por
inúmeras partes. Embora matrizadas ontologicamente pelo trabalho, cada uma destas
partes tem uma especificidade própria e uma autonomia relativa. Deste modo, a
natureza delas e a função que exercem na reprodução do ser social são elementos
importantes para o seu próprio desenvolvimento. Não há, pois, um evolver uniforme e
homogêneo do conjunto do ser social. O mesmo vale para o processo que se dá no
interior de cada uma das partes que o compõem. Poderá haver avanços em certos
aspectos ao mesmo tempo que, em outros, poderá haver recuos.
Contudo, assim como o desenvolvimento da totalidade é o momento
predominante em relação ao desenvolvimento de cada uma das partes, assim também
podemos dizer que a direção – positiva ou negativa – que a totalidade toma é um dos
critérios mais importantes para aferir o caráter de ascenso ou decadência de uma forma
de sociabilidade. A questão, assim, é: considerado o patamar geral atingido pela
humanidade, qual é a tendência geral em relação aos indivíduos singulares? A
apropriação, ampla e profunda, do patrimônio acumulado; a possibilidade dos
indivíduos, por meio dessa apropriação, realizarem largamente as suas potencialidades
ou a exclusão e/ou o acesso limitado, estreito, unilateralizado e deformado? Uma vida
cada vez mais digna e autenticamente humana ou uma vida sempre mais pobre e
esvaziada de sentido?
Mas, há um outro critério, também da maior importância, para esse julgamento.
Trata-se da resposta à pergunta: o que é que nos permite distinguir o que é positivo e o
que é negativo no processo geral de tornar-se homem do homem? Evidentemente, esta
resposta só pode ser dada na medida que definirmos quais são as linhas essenciais deste
processo de tornar-se homem do homem.
Sem podermos nos alongar aqui a respeito dessa questão, e tomando como base
o pensamento marxiano-lukacsiano, diremos, resumidamente, o que segue. Partindo do
trabalho como momento fundante do ser social, podemos constatar que ser homem é
(obviamente de modo sempre processual) ser criativo, social, consciente, livre e
universal. De modo que o que permitir ao homem expandir, cada vez mais, as suas
potencialidades, construir um mundo adequado a uma vida digna, criar bens que possam
atender as suas necessidades, apropriar-se (cada indivíduo) do patrimônio – material e
espiritual – comum ao gênero humano, participar, de modo cada vez mais consciente,
do processo histórico, sendo seu sujeito efetivo, terá um caráter positivo. Tudo que se
transformar em obstáculo a esse andamento, terá um caráter negativo.
Se articularmos esses dois critérios, poderemos com facilidade confirmar, sem
cair numa homogeneização simplificadora, a decadência que marca a atual forma de
sociabilidade.
Sem dúvida, não há como negar que, de 1848 para cá, houve um enorme
desenvolvimento das forças produtivas. E que houve inúmeros avanços científicos e
tecnológicos, que resultaram no melhoramento da vida de um número significativo de
pessoas.
Vale ressaltar, contudo, já aqui, que não é por acaso que é no conhecimento e na
transformação da natureza ou daqueles setores sociais que mais podem contribuir para a
reprodução do capital que se fizeram sentir esses progressos. Exatamente porque aí se
trata dos aspectos que mais contribuem para a produção de mercadorias, o que é uma
exigência da própria dinâmica interna do capital.
Contudo, também não há como negar que, mesmo esse desenvolvimento
científico e tecnológico não tem contribuído para melhorar a vida de toda a humanidade.
Mas, não só não tem contribuído para melhorar como, sob certos aspectos, tem sido um
fator de degradação profunda da vida humana. Basta lembrar dos avanços no campo da
medicina. Sob o aspecto científico e tecnológico são enormes, enquanto sob o aspecto
da socialização desses benefícios as coisas andam em sentido contrário.
O agravamento crescente dos problemas sociais de toda ordem está aí para
confirmar que a dinâmica desta ordem social não vai no sentido de ampliar, mas
diminuir – relativamente – o universo daqueles que têm acesso ao patrimônio da
humanidade. Se houve, ao longo desses últimos cento e cinqüenta anos, ilhas e períodos
de elevação do padrão de vida (sem levar em conta que mesmo esse conceito de padrão
de vida é muito questionável), da maioria da população de alguns países (welfare state),
também houve, do ponto de vista do conjunto espaço-temporal da humanidade, um
crescente retrocesso.
Mas, não é apenas no âmbito da produção e do acesso à riqueza material que se
verifica essa decadência. É na degradação do conjunto da vida humana, na crescente
mercantilização de todos os aspectos da realidade social; na transformação das pessoas
em meros objetos, e mais ainda, descartáveis; no individualismo exacerbado; no
apequenamento da vida cotidiana, reduzida a uma luta inglória pela sobrevivência; no
rebaixamento do horizonte da humanidade que leva a aceitar, com bovina resignação, a
exploração do homem pelo homem sob a forma capitalista, como patamar mais elevado
da realização humana.
Vale a pena relembrar, aqui, o que dissemos acerca da importância da revolução
industrial para a história da humanidade. Ela significou a possibilidade de a humanidade
produzir riquezas suficientes para atender as necessidades de toda a humanidade. Se,
apesar disso, se verifica uma tendência geral no sentido da degradação da vida humana,
então pode-se dizer que estamos vivendo um momento de decadência e não de
progresso.
Sabemos que a exploração do homem pelo homem é da natureza do
capitalismo. E que, portanto, a desumanização da vida humana está sempre presente,
independente de qual seja o momento histórico. O que distingue, porém, o primeiro
(primórdios até 1848) do segundo período do mundo moderno é que no primeiro a
burguesia representava, ainda que apenas de modo limitado, os interesses de toda a
humanidade. Ao contrário, no segundo seus interesses de classe particular colocam-se
inteiramente em primeiro plano. Obviamente, em detrimento do restante da
humanidade. Esse predomínio dos interesses dessa classe particular é o responsável
maior pela crescente decadência – em todos os setores – dessa forma de sociabilidade.
Em resumo, esta forma de sociabilidade já não tem mais como abrir novos
horizontes para a totalidade da humanidade. A concentração brutal da riqueza em
pouquíssimas mãos e o cinismo dos que a detêm são apenas os aspectos mais visíveis
desse fato.
Contudo, de algumas décadas para cá, este segundo momento (de 1848 a nossos
dias), o da decadência, ganhou contornos muito particulares. Com a eclosão da crise,
não há mais conjuntural, mas agora estrutural, do capital, aquilo que era um processo
mais ou menos lento de decadência se tornou uma perspectiva de catástrofe iminente.
Não no sentido da implosão imediata do sistema, mas no sentido de que os caminhos
pelos quais a lógica do capital está conduzindo a humanidade colocam claramente em
perigo a própria sobrevivência desta. A devastação da natureza e a violência, sob todas
as formas, cuja matriz é a absurda concentração da riqueza em poucas mãos, levarão,
fatalmente, a humanidade pelo caminho da sua destruição. Não é preciso citar os
inúmeros estudos que comprovam essa afirmação.
Ora, é verdade que nenhuma forma de vida assiste passivamente a sua morte.
Não enquanto puder lutar contra ela. Também é verdade que sua defesa face ao perigo
implicará na ativação de todos os meios de que possa dispor. É exatamente o que
acontece com a forma de vida burguesa. Sentido-se ameaçada, lança mão de todos os
meios para defender a sua existência. Mesmo que isso signifique a barbarização mais
brutal de toda a humanidade. Nesse sentido, o exemplo mais estarrecedor não é tanto o
fato do atual presidente dos Estados Unidos invocar, descaradamente, a lei da força nas
relações internacionais, mas o fato de seu cinismo ser largamente aceito sem grandes
resistências.
3. A fratura entre os valores e a realidade objetiva
Diante desse quadro assustador, o que se passa no terreno dos valores? Mesmo
entre a maioria daqueles que se pretendem comprometidos com a construção de uma
ordem social justa? Uma dissociação cada vez maior entre o discurso e a realidade
objetiva. Enquanto esta última vai no sentido acima apontado, de um aprofundamento
na degradação da vida humana, o primeiro vai para o lado oposto: ou do apelo
moralizante (solidariedade, ajuda, preocupação com o bem comum, etc.) ou das
tentativas de fundar uma ética capaz de fazer frente a essa avalanche devastadora. Não é
outro o sentido das tentativas em curso, tanto no sentido de exigir um comportamento
ético no campo da política, quanto no sentido de buscar novos fundamentos para a
justiça social ou, então, de alcançar um impossível desenvolvimento sustentável, que
tenha entre seus pilares o objetivo de uma vida realmente digna para todos.
A conseqüência disto é uma fratura cada vez mais ampla entre os valores éticos
proclamados e a lógica da realidade objetiva. Concretamente: uma é a lógica do ser,
outra a lógica do dever-ser. A um ser que vai no sentido de tratar tudo, inclusive os
indivíduos, como coisas, opõe-se o dever de tratar os indivíduos como fim. A um ser
que se move no sentido cada vez mais individualista, opõe-se o dever de ser solidário. A
uma realidade objetiva que está nucleada, cada vez mais, pelo interesse privado, se opõe
o dever de preocupar-se com o interesse público, com o bem comum. A uma lógica que,
por exigência da reprodução do capital, caminha sempre mais no sentido da devastação
e da degradação da natureza, opõe-se o dever de ter maior respeito pela natureza. E
assim por diante. Estamos diante de uma clara visão idealista da problemática dos
valores. O que leva a pensar, por exemplo, que se nos conscientizarmos de que temos de
ser solidários, justos e pacíficos, o mundo se tornará ipso facto solidário, justo e
pacífico.
No entanto, por incrível que pareça, essa relação não harmônica entre ser e
dever-ser é perfeitamente coerente mais ainda, é a única maneira de articular esses dois
momentos numa forma de sociabilidade que, por sua própria natureza, impossibilita
uma articulação harmônica.
Consideremos: qual é o valor supremo que rege esta forma de sociabilidade?
Parece-nos que não há dúvida de que é a produção de mercadorias e, portanto, a
reprodução do próprio capital. Qual é o valor supremo proclamado pela ética
dominante? A vida humana, na sua forma mais digna possível. É evidente que entre
esses dois valores há uma incompatibilidade radical. A produção de mercadorias
implica, necessariamente, a transformação do próprio homem em mercadoria e,
portanto, a manutenção da exploração do homem pelo homem. A conseqüência disto é a
completa destituição do sentido mais genuíno da vida humana.
Ora, admitido esse pressuposto, a única possibilidade de fundar uma ética é a
dissociação entre o reino da realidade objetiva e o reino dos valores. Estes,
transcendentalmente fundados, teriam por missão orientar a transformação da realidade.
Foi este o grande feito de Kant e é por isso que ele é, ao nosso ver, o autor que
deu a contribuição mais genial, no terreno da ética, mas não só, para a sustentação dessa
ordem social. E não é por outro motivo que todos os pensadores pós-Kant, que não
questionam radicalmente o capital, têm retornado a esse mesmo autor como fonte
inspiradora. É o caso de H. Arendt, de Rawls, de Habermas e outros. O que Kant fez foi
elaborar uma ética fundada transcendentalmente e não de modo objetivo e imanente.
Com isso, ele apenas realizou, de modo intelectual, aquilo que é uma exigência do
processo social regido pelo capital. Com efeito, a matriz ontológica do processo social é
inteiramente regida pelo princípio do interesse particular. Coisa, aliás, reconhecida pelo
próprio Kant quando diz que o homem tem uma natureza “socialmente insociável”. Ao
contrário, o universo dos valores pretende-se voltado para o interesse universal. Salta
aos olhos a radical inconciliabilidade desses dois universos. Como, ao nosso ver, o
primeiro é o fundamento do ser social na sua totalidade e, portanto, também do universo
dos valores éticos, então o segundo só pode comparecer sob a forma de uma dimensão
abstrata. Vale dizer, o universo dos valores éticos só pode aparecer como um discurso
vazio, que jamais pode ser efetivado praticamente. Trata-se, então, de um discurso
vazio, mas socialmente necessário. Como argumento adicional, este discurso vazio se
apresenta com um caráter de “princípio regulador”, ou seja, como algo necessário, mas
configurado como um horizonte que jamais pode ser alcançado.
4. O alargamento da fratura
Já vimos como é da natureza da sociabilidade capitalista a existência de uma
fratura insuperável entre a lógica da realidade objetiva e o universo dos valores. E que
essa fratura existiu e existe mesmo nos espaços e nos momentos menos brutais do
capitalismo. Porém hoje a crise estrutural do capital confere a esse fato um caráter novo.
Ou seja, essa dissociação não só existe, como tende a se tornar cada vez maior e a
assumir um caráter sempre mais perverso. Como falar em respeito à vida, em tratar as
pessoas como fins e não como meios, em preocupação com a natureza e o bem-comum,
em desenvolvimento integral do homem quando a realidade objetiva se encaminha a
passos largos em rumos totalmente opostos?
Argumenta-se, muitas vezes, que nunca, como hoje, houve tanta preocupação
com os direitos humanos, com as questões ecológicas, com a problemática ligada à
qualidade de vida e ao espaço público. Isso é verdade. Contudo, em vez de tomar isso
como sintoma de decadência, considera-se como uma demonstração de positividade. Ao
contrário, ao nosso ver, a ênfase em todos esses aspectos é uma clara demonstração de
decadência dessa forma de sociabilidade. Ela constitui a expressão de que quanto mais a
realidade objetiva evolui no sentido da desumanização, mais o universo dos valores
ganha um estridente caráter de discurso vazio e até de moralismo barato. Ou seja,
quanto menos se vai no sentido de mudar a realidade objetiva, tanto mais se acentua o
discurso sobre a necessidade de mudar a realidade. Como esse discurso não aponta em
direção às causas mais profundas – a própria existência do capital -, mas apenas em
direção aos efeitos – o neoliberalismo -, ele se perde no vazio. Se forem necessários
exemplos, veja-se a reunião realizada recentemente na África do Sul, denominada
Rio+10, sobre questões ambientais. A constatação, quase unânime, foi de que não só
não houve avanços significativos, como houve, de modo geral, um retrocesso muito
claro. Ditado por quem? Pela lógica de reprodução do capital.
Talvez um dos aspectos mais trágicos dessa decadência seja o fato de que a
oposição a essa ordem social, que impossibilita uma vida efetivamente digna, se
expresse, no universo dos valores, sob uma forma que, não obstante a intenção em
contrário, é aquela que interessa à reprodução dessa própria ordem social. Vale a pena
acentuar: essa ética abstrata, não só não se opõe à desumanização da vida, como é um
elemento funcional a ela. Isso pode parecer absurdo. Como, então, a ênfase naqueles
valores universais acima mencionados pode contribuir para a desumanização da vida
humana? É fácil demonstrar isso. A lógica do capital, tomada na sua pura dimensão
econômica, é tão perversa que, em pouco tempo, levaria à destruição do próprio capital.
Como se sabe, o “desejo” mais profundo do capital, o seu “sonho dourado” seria
destruir aquele que o produz, mas é necessariamente seu antagonista, o próprio
trabalhador. Além das lutas dos que se opõem ao capital, são as outras dimensões
sociais, entre as quais a ética, abstratamente posta, que impedem que essa lógica se
realize de modo direto e brutal. Constituem elas uma espécie de freio, que, como no
caso de veículo, não impede que este se mova, mas lhe impõem um certo ritmo.
Contudo, à diferença dos freios do veículo, que podem alterar radicalmente o seu
movimento e a sua direção, esses freios, por terem naquela lógica e o seu fundamento,
não podem impedir nem mudar integralmente esse movimento desumanizador. Quando
muito, contribuem para amenizar, e mesmo assim de forma bastante tópica e
epidérmica, os aspectos mais gravosos e perversos. Ora, é exatamente nisso que reside a
sua funcionalidade para a reprodução da ordem do capital. Permitir que ela funcione
sem perder a sua natureza essencial, mas também sem deixar que as suas contradições
internas emerjam com toda a sua força.
5. É sanável a fratura?
Milhões de pessoas de todos os quadrantes e de todos os níveis intelectuais,
acham que é possível realizar o impossível, mas não o possível. Desejando, no entanto,
que esse último se torne realidade. Eis um dos aspectos mais trágicos desse momento de
decadência. O que é possível? Construir uma autêntica comunidade humana, um mundo
onde os valores universais tenham realidade objetiva sem questionar a lógica do capital.
Portanto, humanizar o capital. Ora, sob esta lógica nem mesmo um mundo “mais justo,
mais livre e mais igualitário” é possível, dada a dinâmica intrínseca do próprio capital.
O que é possível? Erradicar o capital e então construir uma autêntica comunidade
humana, na qual os indivíduos possam transformar em prática cotidianaos valores
universais, encontrando nisso a realização de uma vida verdadeiramente digna e cheia
de sentido.
Como se pode ver, a distinção que fizemos, aqui, foi entre possível e impossível
e não entre fácil e difícil ou entre mediato e imediato. O que não pode ser realizado tem
a aparência de factível, ao passo que o que não pode ser realizado (embora seja apenas
uma possibilidade), aparece como não efetivável. Parece mais fácil realizar o que é
impossível e mais difícil realizar o que é possível. Como se explica isso? Em primeiro
lugar, porque há uma inversão de sentido entre o primeiro e o segundo. O que é
intrinsecamente impossível – a humanização do capital – é visto, dado o
desconhecimento de sua lógica mais profunda e o peso esmagador de sua realidade
imediata, como realizável, ainda que de modo lento e gradual. O que é possível – a
erradicação do capital – é tido, dado o desconhecimento da lógica mais profunda e
imanente do processo histórico e a enorme dificuldade de visualizar as mediações
necessárias, - como de fato irrealizável. Em segundo lugar, por que no primeiro caso, a
ação imediata e tópica pode mostrar um sucesso visível. Como, porém, a conexão dessa
ação com o objetivo maior pode ser apenas suposta, mas não demonstrada porque, de
fato, não existe, sua possibilidade passa, imperceptível e sorrateiramente, para o âmbito
da fé e não da racionalidade. Non intelligo, sed credo (não entendo, mas acredito). Ou
seja, não posso demonstrar a relação que existe entre o que estou fazendo e a
humanização do capital, mas mesmo assim acredito!
No segundo caso, uma ação imediata e tópica, que pretenda estar voltada para a
alteração radical da atual ordem social, não apresenta, nesse momento histórico,
nenhum sucesso visível. E sabe-se como é importante sentir que se está realizando algo
de positivo. A conexão pode existir, mas é praticamente impossível de ser percebida. Só
um conhecimento profundo da realidade social, orientado por uma perspectiva teórica
revolucionária, que permita apreender o seu movimento integral e não paenas
superficial ou parcial, pode, de algum modo, possibilitar a captura dessa conexão. E
mesmo assim, sem nenhuma garantia sólida, até por que se trata de uma questão
eminentemente prática, ou seja, que diz respeito ao movimento da realidade social como
totalidade. Daí porque, aqui, a questão se coloca assim: non intelligo et non credo (não
entendo e não acredito). Vale dizer, não compreendo que se possa fundamentar a
possibilidade de erradicação do capital e por isso não creio nisso.
Baseados numa compreensão ontológica do ser social e numa análise da
sociedade capitalista, cremos que é possível afirmar, com tranqüilidade, que a
dissociação entre a realidade objetiva e o mundo dos valores é superável. Mas, somente
na medida em que houver uma radical transformação da atual ordem social. Ou seja, na
medida em que, eliminado o capital, com todas as suas decorrências, for instaurada uma
outra forma de sociabilidade fundada no trabalho livre. Somente a superação da
propriedade privada e a instauração de uma forma de sociabilidade cujo fundamento
seja o trabalho associado possibilitará ao discurso ético deixar de ser apenas um
discurso abstrato para se tornar vida real.
Considerando, pois, a impossibilidade de um mundo verdadeiramente humano
sob a regência do capital e a possibilidade desse mundo para além dele, toda discussão
sobre valores éticos tem que, necessáriamente, ter como ponto de partida o
questionamento radical do capital, da propriedade privada. Toda lógica do capital é o
fundamento ontológico dessa forma de sociabilidade, é uma discussão estéril, falseadora
e fadada ao fracasso. É compreensível que os gregos, medievais e modernos pré-1848
buscassem como viver justamente numa sociedade injusta (isto é, numa sociedade
fundada sobre a propriedade privada). Isto por que eles não tinham como compreender a
matriz que se constituía no fundamento da cidade injusta e muito menos a conexão
ontológica entre essa matriz (o trabalho sob a forma de propriedade privada) e o
universo dos valores éticos. Mas, depois que Marx desvendou estas questões não há
mais como deixar de tomá-las como ponto de partida. Qualquer exemplo mostra isso
com meridiana clareza. Basta um: como discutir acerca do respeito à vida humana,
acerca de uma vida realmente digna e cheia de sentidos em por em questão o ato
fundante dessa sociedade, responsável final por tornar esse respeito e essa vida
impossíveis?
De modo que antes de qualquer discussão ética é preciso responder a pergunta: é
possível e, portanto, constitui-se num valor decisivo para a humanidade, a superação da
sociabilidade regida pelo capital? Se a resposta for negativa, então não haverá como
superar a fratura entre o mundo da realidade objetiva e o mundo dos valores. Deste
modo, a ética jamais poderá deixar de ser abstrata, no sentido de dissociada da vida real.
Se, como pensamos, a resposta for afirmativa, então estará aberto o caminho para pensar
uma ética que possa vir a tornar-se concreta.
O mais interessante, e isto convém salientar, é que nos dois casos a ética é, hoje,
necessariamente abstrata. Ou seja, não pode se tornar vida cotidiana real. Mas, há uma
enorme diferença entre a abstração da ética pensada no interior da sociabilidade do
capital e daquela pensada em direção a uma futura sociabilidade do trabalho. No
primeiro caso, a abstração é o outro lado da moeda da concretude da matriz do capital.
Situa-se, portanto, no interior da ordem do capital. Por isso, jamais poderá deixar de ser
uma ética alienada e alienante.
No segundo caso, tendo (a reflexão ética) por base o processo torna-se homem
do homem e compreendendo os obstáculos postos pelo capital à autêntica realização
humana e as possibilidades apontadas pelo trabalho, a abstração é apenas um momento
que aponta para além de si mesma, ou seja, para uma forma de sociabilidade onde ela
possa se tornar concreta. Por isso mesmo, um caráter revolucionário. Por que, ao fundar
os valores na objetividade do processo histórico-social e ao evidenciar a impossibilidade
de realizar esses valores universais no interior da ordem social do capital, ela se
inscreve no movimento de luta pela superação dessa mesma ordem.
A guisa de conclusão
Em resumo, podemos dizer que ética e capitalismo se excluem radicalmente. Se
por ética entendemos aqueles valores que elevam o indivíduo a superar a esfera da
particularidade para conectar-se com a universalidade do gênero humano, e se a
sociabilidade regida pelo capital está fundada no interesse particular, então não há como
conciliar estas duas dimensões. Se isto é verdade, duas constatações se impõem.
Primeira: toda tentativa de fundar uma ética no interior desta forma de sociabilidade só
pode resultar numa ética abstrata e contribui, não obstante intenção em contrário, para a
reprodução dessa ordem social essencialmente injusta. Mais ainda: a ênfase dada, hoje,
à questão dos valores, sem um questionamento radical da matriz fundante desta ordem
social, não tem nada de positivo. Pelo contrário, é a expressão do extravio e da
impotência de uma consciência que, ignorando a dinâmica da realidade objetiva,
pretende ditar normas do alto de um pedestal transcendental. Segunda: a fundamentação
de qualquer ética autêntica tem de ser precedida, necessariamente, pela demonstração da
possibilidade e da necessidade – ontológicas – da superação da exploração do homem
pelo homem. Somente assim o discurso ético deixará de ter apenas uma coerência lógica
para ter uma coerência ontológica, vale dizer, terá a possibilidade (ainda que só a
possibilidade) de se transformar, em outra ordem social, em prática cotidiana.
Referências Bibliográficas
ARENDT, H. A condição humana. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BOBBIO, N. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
HABERMAS, J. La teoria de la acción comunicativa. Madrid: Taurus, 1987.
HOBSBAWN, E. A era do capital. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
LUKACS, G. Ontologia dell’Essere Sociale. Roma: Riuniti, 1976.
KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e outros escritos. São Paulo:
Martin Claret, 2002.
MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2001.
_______. El Capital. México: Fondo de Cultura Econômica, 1995.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo/Ed. Da Unicamp, 2002.
RAWLS, J. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
Produção de sujeitos, apassivização de campos coletivos e constituição de
horizontes emancipatórios
Maria Lídia Souza da Silveira1
“Se corre El peligro de que los árboles impidam ver El
bosque, perseguindo la quimera de realizar El socialismo com
la ayuda de lãs armas melladas que nos legada El capitalismo
(la mercancia como célula econômica, la rentabilidad, El
interes material individual como palanca, etc.), se puede
llegar a um callejón sin salida. Entretanto, la base econômica
adaptada há hecho su trabajo de zapa sobre El desarollo de la
consciência. Para construir El comunismo, simultaneamente
com la base material, hay que hacer El hombre nuevo”.
(Ernesto Che Guevara)
Uma indagação inicial se impõe. Tem sentido ainda se refletir sobre o homem
novo, formas distintas de subjetividade, novo projeto societário, fundados numa real
emancipação dos sujeitos humanos, quando a sociabilidade reinante afirma a
indispensabilidade do conformismo, as vantagens da indiferença perante as perdas e
dores humanas, a diluição das diferenciações de classe e, portanto, da consequente
superação do sentido de um outro ordenamento social?
No intuito de iniciar uma reflexão em torno destas questões, entendo que um
primeiro cenário precisa ser explicitado. Trata-se de considerar, na concretude da
formação social brasileira, o que tem sido evidenciado nas últimas décadas: uma intensa
crise econômica – corolário natural no âmbito dos processos de acumulação predatória
presentes na atualidade do movimento do capital - , concomitantemente a permanência
de processos refinados de dominação e uma profunda crise de fragmentação social.
Este quadro vai explicar na cotidianidade da vida das classes trabalhadoras, em
recessão, acesso restrito aos serviços de saúde, educação, assistência, desemprego,
aumento dos que vivem abaixo da linha da pobreza, além do brutal crescimento da
1
Professora adjunta da USS/UFRJ e Doutora em Ciências Sociais
violência; no universo dos que trabalham vai se ampliando – e de certa forma sendo
naturalizada – a desregulamentação do trabalho e a contínua perda de direitos, produto
de lutas sociais travadas. Ao mesmo tempo, do ponto de vista da resistência e
ofensividade destas classes, constata-se visível retração, o que significa dizer que
componentes estratégicos, constituintes de um outro ordenamento social, tendem a se
refazer.
Nessa direção é inegável e cada vez maior a perda do sentido de
compartilhamento, a ausência de gestos de solidariedade e de campos coletivos, com
potencialidade de conformação de sentidos para os experimentos das diferenciadas
expropriações continuamente vividas.
O que se está a verificar é a manutenção e estreitamento por parte do Estado
brasileiro, da relação de associação e subordinação à ordem internacional, em nítido
adensamento e conformação à lógica capitalista, cujo esteio essencial se mantém: o da
acumulação privada. Concomitantemente a estes procedimentos, os setores dominantes
elaboram uma barragem ideológica de tal monta, que mais que incidir na conformação
do consenso, funciona, sobretudo, como elemento de brutal apassivização, ao por a
circular na tessitura das relações sociais, para além de valores de competitividade,
consumo, individualismo, indiferença, auto-culpabilização e conformismo, entre outros,
a crença, internalizada, da inexistência de outras alternativas possíveis ao capitalismo.
Por outro lado não há como negar a evidência de uma ampla exclusão social,
ocasionando a imensos contingentes populacionais, extrema miséria com padrões
ínfimos de existência material, lhes reservando a quase que impossibilidade de
desenvolvimento de suas habilidades, inteligência, sensibilidade, enfim, de sua
humanidade.
A dominação político-econômica em andamento se reveste de domínio racial,
cultural, sexual, entre outros, operando num infinito universo ideológico, no interior do
qual é essencial forjar uma rede sutil e competente que incorpore a todos, na qualidade
de iguais, direcionada a legitimar as formas de dominação em curso.
Nesse contexto de movimentação do capital, para além de suas determinações na
ordem da materialidade, precisa ser perscrutada a sua capacidade de potencializar um
singular ideário, deslocando contradições, estruturando valores, demarcando territórios
de pensamento, interiorizando culpas, ampliando a sua racionalidade já em curso;
movimento esse simultaneamente tensionado, ainda que de forma extremamente frágil,
pela presença operativa do trabalho.
Ponto de partida real do processo de humanização do ser social, o trabalho, na
sua objetivação no interior da sociedade capitalista, precisa ser degradado e transmutado
em mero meio de subsistência e fonte de acumulação. Assim, conforme assinala
Ricardo Antunes2,
“A força de trabalho torna-se, como tudo, uma mercadoria,
cuja finalidade vem a ser a produção de mercadorias. O que
deveria ser a forma humana de realização do indivíduo reduzse à mera possibilidade de subsistência do despossuído. Esta
é a radical constatação de Marx: a precariedade e
perversidade do trabalho na sociedade capitalista.”
Nesse percurso, a teoria do valor mercantil recupera esse conjunto de fazeres e
significações das quais os sujeitos produtores – imersos em relações concretas de
produção e circulação – encontram-se apartados. Uma das constatações feitas é a de que
no processo de troca de mercadorias vai se verificar um duplo movimento de abstração;
durante o ato de troca, a abstração do caráter concreto e particular da mercadoria,
reduzida que é à entidade abstrata, na medida em que seu “valor de uso” passa a ter o
mesmo valor da outra mercadoria pela qual foi trocada.
Dessa forma, os sujeitos transacionam essas mercadorias “como se” estas
estivessem autonomizadas nesta relação, o que não implica que na consciência dos
sujeitos elas sejam efetivamente autônomas. Até porque é corrente no próprio senso
comum, o fato de que as mercadorias não se reproduzam sem o trabalho.
O caráter abstrato presente no ato da troca, de forma alguma pode ser transferido
mecanicamente à consciência de seus agentes. Esse desconhecimento que efetivamente
faz com que os agentes envolvidos desconsiderem as distintas dimensões presentes em
seu ato, o reduz, de uma certa forma, “num encontro casual de indivíduos atomizados
no mercado” (Zizek)3, a produzir, por assim dizer, uma dimensão social “recalcada”
presente no seu ato, e que vai emergir, na qualidade de seu contrário, como razão que
universaliza esses gestos. Assim, o paradoxo dessa relação entre a efetividade social da
2
Ricardo Antunes, Adeus ao Trabalho? Ensaios sobre metamorfoses e a entralidade do mundo trabalho.
São Paulo: Cortez, 1955, p. 124.
3
Slavoj Zizek. “Como Marx inventou o sintoma” in O Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto,
1996, p., 309.
troca da mercadoria e a “consciência” dela, reside no fato de que o desconhecimento da
realidade, em verdade é seu componente constitutivo. Em outras palavras, o fetiche é
parte da própria mercadoria e não seu atributo.
Este fetichismo existente precisa ser compreendido e denominado corretamente.
Evocando ainda Marx, Zizek vai ressaltar que sob o capitalismo, as formas
intersubjetivas de dominação e servidão se disfarçam "sob a forma de relações sociais
entre coisas, entre os produtos do trabalho "4, deslocando dessa maneira, das relações
entre os homens para a do fetichismo entre as coisas.
Portanto, com a sociedade burguesa, as relações que a conformam de servidão e
dominação, ainda que existentes, são recalcadas. A aparência é a de que presentes nas
relações sociais estão sujeitos livres. E o sintoma que vai emergir desse conjunto de
relações existentes, subvertendo essa aparência construída de liberdade e igualdade,
consiste exatamente nas 'relações sociais entre coisas'.
Tal desequilíbrio presente no ordenamento capitalista, ao invés de ser revelador
da realização incompleta destes princípios e, portanto, o marco de uma insuficiência a
ser aperfeiçoada com o tempo, vai de fato existir na qualidade de seu componente
constitutivo.
Fundamental se faz situar nesse movimento do capital, certas medidas essenciais
à manutenção de todas estas relações, voltadas mais diretamente para o mundo do
trabalho, centradas na conformação de um novo padrão de acumulação, e que terá
repercussões, seja na ordem da materialidade, da subjetividade dos sujeitos, ou ainda no
processo de organização e luta dos trabalhadores.
Assim, o que vai prevalecer é a reversão de suas conquistas fruto de lutas sociais
travadas, fazendo eclodir o desemprego, a desregulamentação e terceirização do
trabalho, a implementação de novas formas de gerenciamento e controle sobre a
produção. O esforço capitalista, voltado para a obtenção de maior lucratividade, vai
implicar na assunção de novos padrões de concorrência assentados no avanço
tecnológico e na premissa da "qualidade" e "produtividade", procedimentos voltados à
menor utilização do trabalho vivo.
4
Idem, p. 310
O que está em andamento nada mais é, portanto, que o próprio itinerário do
capital na sua necessidade de gestar um novo padrão de acumulação. A acumulação
flexível, segundo David Harvey5, é marcada
"por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se
apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados
de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se
pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos,
novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos
mercados e, sobretudo taxas altamente intensificadas de
inovação comercial, tecnológica e organizacional."
Ao se introduzir a "flexibilização" na organização do trabalho, busca-se criar a
aparência de que não há mais divisão entre concepção e execução no processo
produtivo, face à nova figura do trabalhador polivalente. Graças a polivalência - ao
contrário da especialização típica do fordismo-, o trabalhador passa não só a operar
várias máquinas, mas participa, igualmente, de grupos de trabalho, com capacidade de
opinar sobre a produção dos processos e rotinas.6
Esta moderna gestão coletiva supõe competição de grupos entre si visando maior
produtividade, a partir de metas previamente definidas pela empresa, O trabalhador não
só se integra ao processo de trabalho, mas, principalmente, se sente responsável pelo
alcance dos objetivos da empresa.
Do ponto de vista mais diretamente ligado aos trabalhadores, estas alterações no
mundo do trabalho, e em especial, a flexibilização, veiculam num certo sentido a idéia
de que as classes trabalhadoras estão mortas como força ativa da história, Tende a ser
construído um apartamento da memória social de suas lutas e conquistas da sua recente
história coletiva.
James Petras7 realiza estudo inquietante, no qual analisa nesse processo em
curso, a contínua transitoriedade da experiência do trabalho por parte dos trabalhadores.
Ressalta as relações no seu interior constituídas, marcadas pelo sentido de
provisoriedade, para o qual não vale a pena investir em profundidade, seja através de
laços com os companheiros, patrões, ou ainda para as demais esferas de convivência.
5
David Harvey, A Condição pós-moderna, São Paulo: Loyola, 1993, p. 140.
6
Antunes, Idem, p,134
7
James Petras, Armadilha Neoliberal, São Paulo: Editora Xamã, 1999, p,14.
Assim, diz o autor, "a transitoriedade se torna um estilo de vida, no qual não há
comprometimentos profundos e onde existe pouca base para a solidariedade social. O
resultado é o declínio dos sistemas de apoio social, a atomização e um crescente
sentimento de vulnerabilidade individual.”
Esta subordinação à lógica mercantil que vai sendo conformada, esta direção
intelectual e moral constituída, embasada na economia, na política e num determinado
campo cultural e ideológico, vai afetar as formas de sociabilidade existentes,
produzindo marcas profundas nos sujeitos individuais e coletivos.
Esferas de produção de subjetividade e emancipação
Penso ser da maior importância inscrever a reflexão em torno da educação e
formação das classes subalternas, ao se considerar as possibilidades de emancipação
humana.
Nessa perspectiva não se pode prescindir de uma referência, ainda que breve, às
formas através das quais se conhece - compreendendo e interpretando - a realidade.
Assim como desconsiderar a presença da educação na sua variedade de sentidos e
componentes agregadores, estabilizadores e transgressores, ou ainda, potencializadores
de práticas individuais e sociais.
A concepção de conhecimento adotada supõe a idéia basilar de Antonio
Gramsci8 de que todos os homens são filósofos, e mesmos os mais simples, interpretam
e elaboram a sua vida, tendo, portanto, para o presente algum princípio orientador de
seu experimento cotidiano. Nesse processo, misturam de forma absolutamente
desordenada, contraditória e acrítica, um conjunto variado de concepções de mundo.
Coexistem, portanto, nessas formas de conhecimento e reconhecimento de si
mesmos e da vida, um caldo cultural conformado por determinantes de classe próprios,
operando na qualidade de esteio para a organização das vidas dos sujeitos, a partir das
transformações que vão se operando no campo da ciência, arte, filosofia, economia,
política e nas relações em geral, alterando costumes e visões do mundo.
Nesse quadro, a apropriação destes elementos pelos indivíduos se coloca como
contínua possibilidade, se refletindo não só na linguagem como igualmente na sua
8
Antonio Gramsci. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1978.
personalidade e subjetividade, enfim, no conjunto das relações sociais. Esta apropriação
individual e coletiva segundo Emílio Gennari 9 "é um dos fatores que a cada momento
tende a consolidar, atualizar ou superar os limites dessa mesma ordem".
A reflexão em torno da emancipação, na sua complexidade, não pode prescindir
da consideração de conjunturas históricas no interior das quais o protagonismo humano
vem sendo continuamente subsumido a uma "atualizada" lógica mercantil, acoplada à
égide ao consumo e a uma dimensão de historicidade, cristalizada no plano da
imediaticidade e de um tempo presente eternizado.
Trata-se, portanto, de pensar os processos subjetivos a partir dos registros de
interioridade presentes em cada sujeito, tensionados e interpelados através das
expressões concretas da sociabilidade hegemônica. Assim, a subjetividade não é
imanente ao indivíduo, mas vai se constituir a partir do intercruzamento destas
dimensões, não existindo, portanto, a separação entre o plano individual e o coletivo,
entre os registros de indivíduo e sociedade.10
Nesse sentido, um pressuposto que se impõe diz respeito à consideração de que a
subjetividade é socialmente produzida, operando numa formação social determinada,
sob o crivo de um determinado tempo histórico e no âmbito de um campo cultural.
Marx vai organizar esta vinculação a partir da análise do homem inserido no
processo produtivo, produzindo e produzindo-se:
"O trabalho não produz só mercadorias, produz a si mesmo e ao trabalhador
como uma mercadoria, e isto na proporção em que produz mercadorias em geral”.11
Trata-se, portanto, de um processo que implica em sujeição real, desapropriação
da própria condição de indivíduo perante um poder que, para além de tornar estranho o
produto do trabalho, torna igualmente estranho o trabalho para o trabalhador,
internalizando esta relação. Tal poder que se institui despoticamente, se evidencia não
só objetivamente, mas também no campo simbólico, ao processar o desenvolvimento da
forma mercadoria em fetiche.
9
10
Emílio Gennari. Senso Comum e Bom Senso. São Paulo:Editora Vergueiro, 1995,p.05.
Maria Aparecida Cassab. Jovens Pobres e o Futuro: a construção da Subjetividade na instabilidade e
incerteza. Rio de Janeiro: lntertexto, 2001, p. 33.
11
Karl Marx. O Capital: crítica da Economia política. São Paulo:Editora Abril, 1985,
p.148.
Leon Rozitchner12 efetiva uma síntese desses registros ao ressaltar que “a
própria subjetividade vive também em um mundo de objetos cuja forma reproduz, de
algum modo, a mesma estrutura do sujeito: a mercadoria também é um objeto cuja
forma reproduz uma cisão fundamental em seu modo de aparecer: valor de uso, por um
lado, valor de troca por outro".
Há, portanto, uma determinação geral a partir da qual tanto os sujeitos quanto os
objetos são produzidos: a forma mercantil.
O desafio de desvendamento desta questão aponta para a aparente contradição
que se estabelece entre as condições subjetivas do homem trabalhador e as condições
objetivas, dele apartadas, que o enfrentam na qualidade de capital. Assim, na relação
mercantil, em particular através de seu valor de troca, transmuda-se a natureza da
própria relação criada: de relação entre pessoas em relação encoberta por coisas. Ou
ainda, como enfatiza Lucien Sève13 "coisificação de pessoas e, ao mesmo
tempo, personificação das coisas ".
O acesso às formulações de Marx, permite a percepção de como a
individualização do homem e sua personalidade se constituem na concretude da vida
social, no interior de um determinado processo histórico que interpela e marca o sujeito.
A sua análise vai desvendando como um objeto exterior, a mercadoria, atua como um
sujeito mistificador que, ao encobrir o lugar real do sujeito produtor, encobre em
verdade, o poder de sua atividade que permanece obliterada no próprio processo de sua
objetivação.
Dessa forma expropria-se o trabalho coletivo - produto da força humana num
movimento singular de cooperação - secundariza-se a experiência do trabalhador, ao
mesmo tempo em que é forjado um outro tipo de perda: desenvolve-se um certo campo
subjetivo imaginário que, usurpado objetivamente no seu 'fazer individual' e na
'cooperação', transfere ao capitalista o poder que lhe foi subtraído.
Marx vai revelando como através do processo de intercâmbio de mercadorias,
vai sendo constituída uma relação que aparece entre objetos, sendo obliterado o pano de
fundo da relação determinante - entre os próprios sujeitos -. Esta aparente
desvinculação, essa 'ignorância' invisível socialmente, determinará produções subjetivas
particulares nos homens que vivenciam este processo.
12
Léon Rozitchner. Freud e o problema do Poder. São Paulo: Editora Escuta, 1989, p. 65.
13
Lucien Sève. Marxrxisme et Théorie de la Personalité. Paris: Editions Sociales, 1974, p. 65.
Este mecanismo é considerado por Rozitchner e pelos psicanalistas brasileiros
Joel Birman 14e Jurandir Freire Costa15, ao enfatizarem esta condição trágica do sujeito
no mundo via formas de subjetivação hoje produzidas, calcadas num enorme mal-estar
que pode ser compreendido em várias frentes. Seja pelo retraimento do Estado, em
relação aos agenciamentos assumidos, que, como destaca Birman (2000), atuavam na
produção de formas de subjetivação e de gestão de laços sociais, através de instituições
que operavam, não só como centro de ordenação social, mas também de
disciplinamento; seja pela fragilização dos partidos na qualidade de 'universais
relativos', que funcionavam como campos ideológicos e de força no âmbito das
diferenciações de classe e nos antagonismos sociais; seja nos sindicatos e movimentos
sociais que vêm perdendo tanto em ofensividade, como na qualidade de campos
coletivos que referenciem os setores subalternizados na sociedade. Há, portanto, não só
uma fragmentação social imensa, mas esta é acompanhada de fragilização de valores
substantivos referenciais coletivos.
Estas ponderações auxiliam no reconhecimento de como a presença da
globalização e do neoliberalismo conseguiram, através da recriação contínua de formas
de acumulação de capital, de um lado, desconectar ainda mais os caminhos da economia
dos registros do social, e de outro, subsumir os componentes de nosso psiquismo e
subjetivação à ordem mercantil.
Entre outras dimensões, esta condição revelaria um conjunto de impossibilidades
com as quais os sujeitos estão se defrontando, em especial a de identificar e realizar
ações fundamentais, portadoras potenciais de alternativas de alteração significativas do
curso de sua vidas.
Superá-las implicaria em multiplicidade de acessos, tanto na ordem da
materialidade - o que significa introduzir as questões relativas aos componentes sóciopolítico-históricos -, quanto no sentido de percebê-los vinculados às dimensões do
corpo e do afeto.
14
Joel Birman. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1999: Psicanálise
Ciência e Cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1994; Subjetividade, contemporaneidade e
educação in Cultura, linguagem e subjetividade no ensinar e aprender. Rio de Janeiro: DP& A, 2000.
15
Jurandir Freire Costa. Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1984. fr
Esse apartamento das dimensões da vida encontra em Eric Hobsbawn16 mais um
elemento explicativo. Segundo o autor, a perspectiva histórica que vem informando
majoritariamente as identificações dos sujeitos na atualidade do capital, na qualidade de
uma forma de vivência que marca este século XX, é a de um presenteísmo constante.
Seu significado é o de "uma espécie de presente contínuo, sem qualquer relação
orgânica com o passado público" vivido numa determinada época. E do ponto de vista
da cultura de um povo, esta intensificação significa a negação da memória e da história.
Este' presenteísmo' nomeado pelo autor, ao recalcar o passado cristalizando a dimensão
do tempo presente, no hoje, retira das possibilidades existentes no presente, os seus
componentes transgressores, a sua dimensão de porvir.
Um elemento central na busca de sua compreensão se refere à contínua produção
de desigualdades sociais no âmbito de nossa formação social, assentadas num
ordenamento fundado no reinado mercantil. No seu interior, os códigos de convivência
social permanecem enraizados na acumulação privada de riquezas, em hierarquias
sociais produzidas em contextos de antagonismos II sociais, fundadas na exclusão da
maioria dos indivíduos. Evidencia-se, igualmente, uma imensa apropriação ideológica
das movimentações de resistência de segmentos que questionam a ordem - sendo
transmudados estes gestos em banditismo -. Todas estas situações e relações vão
interferir decisivamente nos processos de constituição dos sujeitos.
Estes códigos, por sua vez, fazem circular valores, formas de relação, bem como
a presença de certos modelos identificatórios.
Nessa direção, Birman (1999) destaca nos processos de subjetivação em curso,
as moldagens impregnadas pela cultura do narcisismo e pela sociedade do espetáculo,
que vão enfatizar a exterioridade e o autocentramento.
Este referencial naturaliza a brutal desigualdade humana e, do ponto de vista da
ordem vigente, contribui para o enrigecimento dos componentes de tensão presentes na
sociedade, fortalecendo o congelamento da memória histórica e refreando a dimensão
de porvir.
16
Eric Hobsbawn. O presente como história: escrever a história de seu próprio tempo in Novos Estudos
Cebrap, São Paulo: n.43, novembro 1995, p. 22.
Esta racionalidade que preside as relações sociais através da reificação do
presente, não só reforça a perspectiva de manutenção do ordenamento capitalista, como
investe na destruição de vínculos que possam vir a ocasionar a humanização dos
sujeitos. Ao fazê-lo, busca um tipo de formatação das subjetividades numa perspectiva
de imediaticidade, na qual o efêmero e o fragmentário, a produção de curto prazo e a
insensibilidade perante o outro são componentes fundantes.
Assim, o projeto societário hoje hegemônico - ainda que tenha como base
essencial a acumulação privada - se reforça através de hierarquias, normas e legislações
legitimadoras de uma igualdade anunciada, ainda que formal, para a qual se atribuem
regulações e disciplinamentos democráticos que irão dar sustentabilidade legal à
desigualdade instituída. E este projeto, o do capital, majoritariamente é aceito e, mais
que isto, internalizado pelos sujeitos. Ao se reproduzir, assegura também a permanência
do modo de produção capitalista, da sociedade capitalista.
A concepção de subjetividade com a qual o marxismo vai romper, e que está
presente no âmbito da hegemonia burguesa, é a que supõe o indivíduo na qualidade de
ente abstrato e idealizado, por conseguinte, exterior às suas efetivas relações sociais.
Marilena Chauí17 ressalta o fato de que esta visão de subjetividade plasmada no interior
do capitalismo, se sustenta menos nas relações intersubjetivas e mais numa
subjetividade conformada pela mass media e pela publicidade, apresentando uma
incapacidade de simbolização, de transcender ao dado, de relacionar-se com o possível
e, sobretudo, com a marca de uma certa infantilidade que se expressa perante a
promessa de satisfações imediatas. Banaliza-se a competição e a violência, sucumbindose, assim, "à velocidade e fugacidade das imagens, sem passado e sem porvir".
Antonio Gramsci18 auxilia na junção de outros componentes de análise, ao
destacar que uma nova civilização só teria condições de se afirmar, através da presença
na história das classes apartadas continuamente do poder político e do efetivo
desenvolvimento de suas condições "intelectuais e morais", - as classes subalternas -, o
17
Marilena Chauí. Subjetividades Contemporâneas: Comentários. São Paulo: Instituto
Sedes Sapientiae, ano 1, 1997, p.20.
18
Antonio Gramsci. Os Intelectuais e a organização da Cultura. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira, 1982.
que implicaria na possibilidade de constituição de uma outra forma de sociabilidade,
com a marca da emancipação aludida por Marx.
Esta dimensão repõe com qualidade nova o lugar das classes trabalhadoras neste
processo em termos de sua efetiva participação e, mais que isto, sinaliza para a
importância do desenvolvimento de uma consciência histórica da realidade, com
capacidade de fecundar as possíveis ações políticas. Tal concepção histórico-crítica
impõe em sua singularização, a inclusão de um conjunto de componentes que possam
favorecer a formação da personalidade dos trabalhadores. Esta vai supor, portanto, uma
construção histórica dos processos subjetivos.
Esta relevância dos sujeitos históricos, explicitada por Gramsci, vai implicar na
valoração da própria constituição desses sujeitos na qualidade de personalidade, vontade
e processo organizativo, num movimento real de construção de um novo "bloco
histórico".
Em verdade, Gramsci retoma o potencial educativo do próprio marxismo.
Salientará,
portanto,
não
a
autonomia
ou
prevalência
dos
campos
de
objetividade/subjetividade, mas o seu mútuo engendramento.
Há uma aproximação conceitual a ser feita e que consiste em vislumbrar neste
sujeito fragmentado, imerso em situações particulares, crenças, símbolos, vontades
dispersas - características do senso comum -, a presença, ainda que recalcada, de outros
componentes valorativos, práticas, percepções e intuições, situações vivenciadas que
podem ser decifradas e compreendidos - tornadas bom senso, nos termos gramscianos-.
Há potencialidades que podem se espraiar a partir de um outro OUTRO: um campo
coletivo, referência distinta ao entorno dominante, com capacidade de possibilitar a
criação de laços de solidariedade e de partilha, substituindo o conformismo e a
indiferença das subjetividades abstratas, descontextualizadas e fundadas no prisma do
autocentramento dos indivíduos; campo que pode 'produzir,' também, uma subjetividade
coletiva, contextual, a repor como dimensão possível da existência individual-social, a
perspectiva de uma outra sociabilidade, na necessária afirmação da emancipação dos
sujeitos humanos.
Pensando-se em termos de uma configuração destas situações sociais
vivenciadas pelos sujeitos, Vera Telles19 ressalta as significações que passam a ter nesse
processo de subjetivação, as próprias lutas sociais travadas. Assim,
“a importância das lutas sociais, enquanto abertura de espaços
públicos nos quais as experiências diversas podem ser
tematizadas, problematizadas e, por essa via, desprivatizadas
enquanto condição comum que interpela a sociedade na
formulação e exigência de direitos. É nessa articulação entre o
privado e o público que identidades são construídas e
reconstruídas, definidas e redefinidas, criadas e recriadas, num
espaço de conflito em que as práticas de resistência, abertas ou
surdas e cotidianas nas suas vitórias e derrotas, sucessos e
insucessos, para além de seu significado material em cada
momento específico, redefinem e refundam tradições, reafirmam
e reorientam práticas, elaboram e reelaboram valores e
referências por onde homens e mulheres, em situações
concretas de vida, percebem o seu lugar na sociedade e
sobretudo percebem a eficácia de suas ações e de suas palavras
na produção de fatos e acontecimentos que afetam ou podem
afetar as circunstâncias de suas vidas.” (p.59)
Encontra-se, pois, na totalidade social, a presença não de um sujeito único,
marcado por um processo de obliteração do real, produzido por formas ideológicas
oriundas do capital, que o alienam e o impedem de desvelar a gênese da exploração. A
absolutização desse sujeito alienado poderia sugerir que na vida social, o capital na
qualidade de efetiva chefia, unificaria e implementaria seu ideário de tal forma que
forjaria sempre subjetividades subalternizadas ao seu ordenamento.
A radical contestação desse processo de naturalização da alienação poderia,
também, fazer supor, em contrapartida, a existência no interior da dinâmica social de
um 'não lugar' da alienação, um certo ponto protegido ou até mesmo não vulnerável às
influências da ideologia dominante, o que sem dúvida é impossível.
19
Vera Telles. "Pobreza e Cidadania: duas categorias antinômicas" in Mínimos de Cidadania. São Paulo:
Programa de Estudos de Pós Graduação de Serviço Social n. 4, PUC, 1993.
Neste contexto vale registrar que ainda que a apreensão de si e do mundo se
apresente aos sujeitos de forma fragmentada, confusa, fatalista, gestada a partir dos
valores hegemônicos, isto não se constituirá empecilho à emergência de outros
interesses individuais e coletivos, outros sentimentos, valores, interpretação diversa da
conjuntura ou ainda de outro projeto societário. No entanto, isso não ocorrerá
espontaneamente nem automaticamente no interior das relações sociais. Supõe um
investimento na criação de espaços coletivos, espaços formativos, instâncias
organizativas com enraizamento social, campo através do qual possa ser exercitado o
aprendizado de construção de referências identificatórias e de diferenciação de classe. A
formulação de Antonio Gramsci20 ajuda a melhor esclarecer este sentido:
"Deve-se insistir sobre o fato, existe realmente uma forte
atividade volitiva, uma intervenção direta sobre a "força das
coisas", mas de uma maneira implícita, velada, que se
envergonha
de
si
mesma;
portanto
a
consciência
é
contraditória, carece de unidade crítica, etc. Mas quando o
"subalterno" se torna dirigente e responsável pela atividade
econômica de massa, o mecanismo revela-se em certo ponto um
perigo iminente; opera-se, então, uma revisão de todo o modo
de pensar, já que ocorreu uma modificação no modo de ser
social. Os limites e o domínio da "força das coisas" são
restringidos. Por quê? Porque, no fundo, se o subalterno era
ontem uma coisa, hoje não mais o é: tornou-se uma pessoa
histórica, um protagonista; (...)
Estes elementos desagregados, incoerentes, não críticos e episódicos que vão
compor a concepção de mundo do conjunto das classes subalternas, consistem no senso
comum, ponto de partida e ao mesmo tempo, produto do devenir histórico. O
movimento de fazer a crítica desta visão de mundo reside num dos elementos essenciais
à conformação dessa subjetividade com a marca da maioridade histórica. Acrescenta o
autor:
20
Antonio Gramsci. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro: Editora Civilização brasileira,
1981, p. 23-24.
"O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que
somos realmente, isto é, um 'conhece-te a ti mesmo I como
produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou
em ti uma infinidade de traços recebidos sem benefício no
inventário. Deve-se fazer, inicialmente, este inventário "(Idem:
12)
Nesta mesma direção Emílio Gennari21 ressalta os distintos impactos produzidos
nos sujeitos, num amálgama de sentimentos não só diversificados mas de natureza
distinta. Assim:
"um movimento contraditório entre a coerção imposta pelas
necessidades de sobrevivência, que gera no homem-massa
sentimentos de impotência, medo, submissão ou até de dívida de
gratidão, e a busca constante de espaços de liberdade nos quais
seja possível reafirmar a subjetividade dos indivíduos negada
pela ordem dominante.”
Ressalte-se, portanto, que na dinâmica da vida social, as apreensões dos sujeitos
podem ocorrer de forma diferenciada, ainda que tenham como ponto de partida a mesma
realidade social, o que não significa afirmar nem que estão alienados dessa realidade,
nem que estão cooptados pela racionalidade que a organiza de forma hegemônica. A
presença destes distintos olhares - e lugares -, verdadeiros para cada sujeito, de per si,
introduzem de forma contundente a temática da subjetividade e de sua importância
efetiva, seja nos processos de conhecimento e reconhecimento individual, seja na
gestação de campos coletivos, a agregar componentes culturais, simbólicos, de
partilhamento com outros sujeitos os experimentos de solidariedade e conflitos, e a
experimentação de ações coletivas.
Assim, retomar este debate de forma mais substantiva sugere a sua inscrição na
agenda político-formativa dos trabalhadores, visto que a reconstrução desta forma
particular de subjetividade é componente essencial para que a perspectiva do devir se
coloque como possibilidade.
Este investimento, no plano da formação, pode permitir a constituição de elos
entre o tempo das exterioridades (imediato) - que parece adquirir uma autônoma
21
Idem, p. 6.
opacidade para quem nele está imerso -, e o tempo mediato, de compreensão do plano
que não aparece, da busca coletiva de desvendamento do "segredo das formas" que
estruturam a realidade dos fenômenos e experimentos humanos. Estes acessos são
extremamente significativos no interior desse embate de racionalidades inscritas na vida
social.
Eis parte do desafio posto às classes subalternas: afirmar sua personalidade e
subjetividade, construindo uma identidade com capacidade de potencializar os
elementos que estão postos no real, na tentativa de proporcionar um sentido novo às
condições dadas, a partir de uma perspectiva anti-capitalista, o que significa apostar
numa ordem humana emancipadora, criação histórica de uma outra sociabilidade, novos
campos coletivos, outros possíveis...
BIBLIOGRAFIA
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaios sobre as metamorfoses e a
centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 1995.
BIRMAN, Joel. Psicanálise, Ciência e Cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1994.
_________. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro: Editora
Civilização Brasileira,1999.
__________. Subjetividade, contemporaneidade e educação in Cultura, linguagem e
subjetividade no ensinar e aprender. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1991.
CASSAB, Maria Aparecida. Jovens Pobres e o Futuro: a construção da
subjetividade na instabilidade e incerteza. Rio de Janeiro: Intertexto, 200l.
CHAUÍ, Marilena. Subjetividades Contemporâneas. Comentários. São Paulo:
Instituto Sedes Sapientiae, n. 1, 1997.
COSTA, Jurandir Freire. Violência e Psicanálise, 2a Ed., São Paulo: Edições Graal,
1986
__________. `O Gozo com a destruição: in Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12/03/95.
DIAS, Edmundo Fernandes. Gramsci em Turim - a construção do conceito de
hegemonia. São Paulo: Editora Xamã, 2000.
EAGLETON, Terry. Capitalismo, modernismo e pós-modernismo, Rev. Crítica
Marxista, vol. L, nº 2, São Paulo: Brasiliense, 1995.
GENNARI,Emílio. Senso Comum e Bom Senso. São Paulo: Editora Vergueiro, 1995.
GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro: Editora
Civilização Brasileira, 1981.
__________. Obras Escolhidas. São Paulo: Martins Fontes, 1978.
__________. Os Intelectuais e a organização da Cultura. Rio de Janeiro: Editora
Civilização Brasileira,1982.
HARVEY,David .. Condição Pós Moderna. Uma pesquisa sobre as origens da
mudança cultural. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves.4aed.
São Paulo: Edições Loyola, 1994.
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX : 1914-1991; tradução
de Marcos Santarrita, São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
______________.. O presente como história: escrever a história de seu próprio tempo in
Novos Estudos CEBRAP, São Paulo: n. 43, novembro 1995, p.22
JAMENSON, Frederic. Sobre os "Estudos de Cultura". Novos Estudos CEBRAP, São
Paulo, CEBRAP, nº 39, 1994.
LASCH, Cristopher. A Cultura do Narcisismo. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda.,
1983.
MARX, K. Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844. Col. Os Pensadores, vol. 35,
São Paulo: Abril Cultural, 1974.
__________. O Capital. Vol. 1, livro 1, tomo 1, São Paulo: Nova Cultural, 1983
MOTTA, Ana Elizabete. A Nova Fábrica de Consensos. São Paulo: Cortez,1998.
PAOLI, Maria Célia et ALMEIDA, Marco Antonio. Memória, Cidadania, Cultura
Popular, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n °24, Rio de Janeiro:
IPHAN, 1996.
PETRAS,James .Armadilha Neoliberal. São Paulo: Editora Xamã, 1999.
ROZICHNER,.Leon. Freud e o problema do Poder. São Paulo: Editora Escuta, 1989.
TELLES, Vera. "Pobreza e Cidadania: duas categorias antinômicas" in Mínimos de
Cidadania. São Paulo: Programa de Estudos de Pós Graduação de Serviço Social nO4,
PUC,1993.
SEVE, Lucien .. Marxisme et Théorie de Ia Personalité. Paris:Editions Sociales,1974.
SILVEIRA, M. L. De pobre a trabalhador: uma outra visibilidade do Sujeito no
Serviço Social. Rio de Janeiro: 0& R Editores, 2000.
ZIZEK, S. Slavoj. "Como Marx inventou o sintoma" in: O Mapa da Ideologia. Rio de
Janeiro: Contra ponto, 1996.
Moral e Moralismo
Cinara Nahra22
1. Ética e Moral
A palavra Ética se originou a partir de três termos gregos. O primeiro é o Êtos
(C/epsilon e tao), que significa a cada ano, ou aquilo que se repete a cada ano. O
segundo Êthos (c/epsilon e téta) que significa costumes, hábitos. E finalmente o terceiro
é o Éthos, (c/éta e téta) que significa modo de ser, caráter.
Observe-se que entre os dois primeiros termos existe uma linha de continuidade
óbvia: aquilo que se repete a cada ano acaba formando os hábitos, os costumes, sejam
de uma pessoa, sejam de um povo. Em relação ao terceiro termo, porém, existe algo
novo, algo que não está presente nos dois anteriores. Quando falamos em caráter,
imediatamente nos vem à mente a preocupação com o bom e o mau.
Contemporaneamente, inclusive, quando dizemos .que"X é uma 'pessoa de
caráter",estamos querendo dizer que "X é, uma pessoa de bom caráter". O oposto,
evidentemente é o mau caráter, inúmeras vezes fazemos referência do tipo "y é um maucaráter", indicando que Y não é uma pessoa que possua bons valores. No terceiro termo
que dá origem a palavra ética, pois, há uma preocupação com aquilo que é bom ou mau,
que não existe nos dois termos anteriores. A ética no terceiro sentido (Éthos) remete
mediatamente a considerações sobre o que é bom e sobre o que é mau.
Essa pequena análise filosófica serve para que possamos entender alguns
problemas que enfrentamos, contemporaneamente, na aplicação da palavra ética. Se
tomarmos ética no segundo sentido, ética no sentido de hábitos e costumes, teremos que
nos render a uma concepção relativista que admite que sejam quais forem os hábitos ou
costumes de um povo eles seriam considerados éticos, porque, afinal de contas, se ética
nada mais é do que hábitos e costumes, todos os costumes e hábitos de quaisquer povos
seriam éticos. Por esta concepção deveríamos admitir, por exemplo, que o costume
ainda em voga hoje em determinadas tribos de cortar o clitóris das mulheres é ético,
porque, obviamente, são os costumes desta tribo. Ainda por esta mesma concepção
22
Prof. De filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/ Bacharel e Mestre em Filosofia
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ Doutoranda no Programa de ética, política e políticas
públicas na University of Essex/ Inglaterra.
deveríamos admitir que a escravidão foi correta, porque, afinal, foi um costume dos
povos e das épocas que a admitiram. A visão relativista, em última instância, nos diz:
quem poderia julgar os hábitos e os costumes dos povos? Ninguém. Assim, cada povo
teria os seus próprios hábitos e costumes e ninguém teria o direito de julgá-los são
éticos. Se eles são costumes, eles são, já, éticos.
Se tomarmos a ética no terceiro sentido, há de emergir, entretanto, a questão:
esses costumes, estes hábitos, este comportamento, enfim, é bom? Trata-se de bons
hábitos ou não? E aí então a pergunta: trata-se de hábitos, de comportamentos éticos ou
não? Observe-se que o uso da palavra ética neste contexto é completamente diferente do
uso da palavra ética no contexto anterior. A pergunta sobre se algo é ético ou não a
partir do segundo sentido do termo deve sempre ser respondida positivamente se
constatamos que algum comportamento ou conjunto de ações se repete quotidianamente
dentro de um determinado povo, constituindo-se em costume deste povo. Por outro
lado, a pergunta sobre se algo é ético ou não a partir do terceiro sentido do termo requer
a referência a uma outra noção, que é a noção de bom ou de ruim, de certo ou de errado.
Ainda que algo se constitua como o costume de um povo, resta a pergunta: "Mas esses
são bons hábitos"? "É certo fazer isto?" e daí "Isto é ético?". E a resposta, sim ou não,
não pode ser dada tendo como referência apenas a constatação empírica ou histórica de
que as pessoas agem assim ou tem este hábito. A resposta: sim é ético, sim é correto, ou
não, não é ético, não, não é correto, deve estar referenciada em algum padrão, em algum
princípio, que deve ser bem diferente da mera constatação de que se trata de um
costume. Dizer que algo é ético, pois, quando nos referenciamos no terceiro sentido do
termo, significa muito mais do que dizer que algo é bom ou certo, porque é praticado,
porque as pessoas agem assim. Dizer que algo é ético neste terceiro sentido do termo
significa questionar o modo como as pessoas agem, questionar os costumes, os hábitos,
seja das pessoas, seja dos povos, e perguntar: "Ok, as pessoas fazem isso, mas é certo
que elas façam isso? É bom que elas ajam assim? É ético? Elas deveriam agir assim?"
E é exatamente para apreender esta diferença que um dos maiores filósofos da
moral de todos os tempos, Imanuel Kant (1724-1804) vai introduzir uma diferença
semântica extremamente importante, exatamente para dar conta destes dois sentidos
diferentes no qual usamos a palavra ética. Kant vai nos dizer que todo conhecimento
racional é ou material ou formal. Como protótipo do conhecimento racional formal nós
temos o ramo do conhecimento chamado Lógica. Como protótipo do conhecimento
racional material nós temos os ramos do conhecimento chamados de Física e de Ética.
Neste momento Kant deixa de lado a Lógica como objeto de análise e passa a comparar
especificamente a Física com a Ética. A Física, diz ele, se ocupa das leis da natureza,
sendo chamada de filosofia natural. A Ética vai se ocupar das leis da liberdade, sendo
também chamada de filosofia moral. A Física (Filosofia Natural) vai ser composta por
uma parte empírica e uma parte inteiramente racional chamada de Metafísica da
Natureza. Do mesmo modo, a Ética vai ser composta por uma parte empírica (chamada
de Antropologia prática) e uma parte inteiramente racional, a Metafísica dos Costumes,
que nada mais é do que a Moral.
Para Kant a Ética será composta pela Antropologia Prática mais a Moral. Mas o
que é a Antropologia Prática? A antropologia prática não é nada mais nada menos do
que os costumes, os hábitos, o Êthos no seu segundo sentido. Já a Moral seria a
Metafísica dos Costumes, a parte totalmente racional do estudo da Ética. O estudo da
Moral, pois, não poderia se reduzir ao mero estudo dos costumes, e dos hábitos. O
estudo da Moral necessariamente deve ter um aporte relativo ao Dever ser, ao modo
como deveríamos agir, muito mais do que ao modo como agimos, um aporte, pois, à
racionalidade e a Razão, e, portanto, diz Kant, àquilo que é universal. E o estudo, pois,
da Moral, entendida exatamente neste sentido de estudo do dever ser, feito unicamente
através da racionalidade humana, que vai nos fornecer um princípio, chamado por Kant
de Lei Moral, que segundo ele nos fornece um critério universal para que possamos
saber se nossas ações são certas ou erradas, se devem ou não devem ser praticadas. A
Lei Moral, também chamada no campo humano de Imperativo Categórico é assim
enunciada: "Age de tal modo que o princípio subjetivo da tua ação possa sempre valer
como princípio de uma ação universal".
Foge aos propósitos deste artigo discutir a Lei moral kantiana. O que é
importante aqui, para os propósitos da nossa discussão, é que Kant apreendeu muito
bem (e talvez tenha sido o primeiro a fazê-Io ao longo da história da ética, embora não,
é claro, o último, porque depois uma série de outros filósofos trabalharam esta
distinção, alguns até de um modo totalmente diverso do kantiano) o sentido desta
diferença entre os dois sentidos do Etos. Cabe a Antropologia prática estudar o Ethos,
no sentido de hábitos e costumes, e cabe a Moral estudar o Ethos, no sentido claro de
dever ser, de como deveríamos agir. Dizer, pois, que um comportamento ou ação é ético
no sentido em que a antropologia prática concebe, significa simplesmente dizer que este
comportamento ou ação é costume ou hábito de um povo. Dizer, no entanto, que um
comportamento ou ação é ético no sentido em que o estudo da Moral concebe, significa
dizer que este comportamento ou ação é certo ou é errado, deveria ser praticado ou não
deveria ser praticado, é bom ou não é bom.
É este aporte kantiano que nos fornece a chave pra que possamos bem
compreender as noções de ética e moral. Fazer a pergunta sobre se uma ação ou
comportamento é ético, grosso modo, significa perguntar se esse comportamento ou
ação é moral, ou seja, se ele é certo ou errado, se deveria ser praticado ou não. Isto
implica necessariamente sair do ponto de vista da antropologia prática e adentrar no
campo do que Kant chama de moral, que é o
campo por excelência da racionalidade.
Isto implica e exige uma atitude de questionamento e reflexão radical. Exige que
nos questionemos sobre os motivos e os porquês de nossas ações, exige, principalmente,
que nós sejamos capazes de nos colocar no mundo a partir do ponto de vista universal.
O ponto de vista universal é aquele a partir do qual vemos as ações e as atitudes não
apenas a partir do nosso interesse pessoal, ou do interesse de nosso grupo, ou mesmo do
interesse da sociedade na qual estamos inseridos, mas a partir do ponto de vista da
humanidade, ou seja, a partir do ponto de vista da nossa condição de ser humano.
2. Moral e Moralismo
O ponto de vista universal, que é o ponto de vista efetivamente ético o ponto de
vista efetivamente moral, é completamente diferente do ponto de vista que poderíamos
chamar de "moralista". Mas o que é uma concepção moral moralista? Moralismo,
poderíamos dizer que é uma concepção deturpada em relação ao que é Moral, ao que é
certo e ao que é errado. E aquela que se pretende emitir julgamentos de valor negativos
sobre aquilo que se refere ao comportamento pessoal de indivíduos que não prejudicam
a outrem com seu comportamento ou que valora distintamente pessoas ou grupos de
pessoas em função de certas características naturais (físicas, sexuais ou geográficas) ou
opções diferenciadas. São moralistas, pois, julgamentos do tipo: "praticar sexo antes do
casamento é errado", "dissolver o casamento é errado", "usar roupas curtas é errado",
"praticar sexo com pessoas do mesmo sexo e errado", e valorações do tipo: "os negros
são inferiores", "os arianos são superiores", "os nordestinos são inferiores", "as
mulheres são inferiores".
Curiosamente uma das maiores contribuições para que possamos entender o que
é o Moralismo, vem de um dos filósofos mais controversos, e mal compreendidos da
história da filosofia, que é Friedrich Nietzsche (1844-1900). Nietzsche nunca usou a
expressão moralismo, mas foi um dos primeiros a fazer uma crítica feroz ao que ele
chamou de Moral Judaico-Cristã, e foi um dos primeiros a afirmar a necessidade de que
seja feita uma crítica dos valores
morais, uma crítica da moralidade. No prólogo do seu livro "Genealogia da Moral"
afirma Nietzsche:
"Por fim, uma nova exigência se faz ouvir. Enunciemo-Ia
esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos valores
morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado
em questão. Para isto é necessário um conhecimento das
condições e circunstâncias nas quais nasceram sob as quais
se desenvolveram e se modificaram; um conhecimento tal
como até hoje nunca existiu nem foi desejado. Tomava-se o
valor destes "valores" como dado, como efetivo, como além
de qualquer questionamento"23
Nietzsche aponta aqui, com muita clareza, um caminho para a reflexão moral
que parece se constituir no caminho certo para que se entenda o problema da Moral. Há
de se fazer uma crítica dos valores morais, há de se questionar o valor de todos os
valores, há de se avaliar quais foram os valores que vigoraram ao longo dos últimos
2500 anos, para, quando for o caso, romper com eles. Conforme. ele diz, nos chamando
para o questionamento, até que ponto muitas coisas que nos acostumamos a definir
como "boas" e "ruins" são efetivamente boas e ruins?
"Até hoje não houve dúvida ou hesitação em atribuir ao
“bom" valor mais elevado que ao "mau", mais elevado no
sentido da promoção, utilidade, influência fecunda para o
homem. E se o contrário fosse verdade? se no "bom”
houvesse um sintoma regressivo, como um perigo, uma
sedução, um veneno, um narcótico, através do qual o
presente vivesse como que as expensas do futuro? Talvez da
23
Nietzsche, Friedrich – Genealogia da Moral – Ed. Brasiliense p. 14
maneira mais cômoda, menos perigosa, mas também num
estilo menor, mais baixo? De modo que precisamente a
moral seria culpada de que jamais se alcançasse o supremo
brilho e potência do tipo homem? De modo que precisamente
a moral seria o perigo entre os perigos.”
Havemos de admitir que considerações como essa de Nietzsche, são bastante
ambíguas e problemáticas. O que estaria ele querendo nos dizer aqui? Que aquilo que
costumeiramente tomamos como bom pode ser no fundo um grande mau e que aquilo
que aprendemos que seja o mal pode ser um bem? E que, se é assim, e a medida que as
distinções entre bom e mau são por essência distinções morais, deveríamos jogar a
Moral na lata de lixo da história? Embora muitos tenham assim compreendido
Nietzsche, é necessário que sejamos mais cuidadosos nessa avaliação. Quando
Nietzsche fala de que talvez haja um veneno no bem (bem sempre entre aspas) e que
talvez a moral seja o perigo entre os perigos, não estaria ele querendo nos advertir
justamente contra uma Moral moralista? Não estaria ele justamente querendo nos alertar
que há alguns julgamentos padrão a respeito do que é certo e do que é errado que
fazemos quase que automaticamente, mas que, se parássemos para refletir sobre eles
com mais calma, teríamos que admitir que podem não ser assim tão certos? Em outras
palavras, será que muitas das coisas que admitimos como sendo moralmente certas são
efetivamente certas e muitas das coisas que admitimos como sendo moralmente erradas
são efetivamente erradas?
Por exemplo, é moralmente admissível nos dias de hoje que convivam no
mesmo mundo pessoas miseráveis, como muitos que encontramos mendigando, e
homens que ganham milhões por dia num único jogo bem feito na bolsa. Mas será que
isto é efetivamente certo? Por outro lado, é considerado imoral que as pessoas andem
nuas pelas ruas. Mas será que isto efetivamente imoral? Claro que não vou discutir aqui
se estes certos são certos e estes errados são errados, o que importa aqui é que nos
questionemos sobre se efetivamente certas coisas que temos introjetadas como certas
são efetivamente certas, são efetivamente morais, e sobre se coisas que temos
internalizadas como erradas são efetivamente erradas, são efetivamente imorais.
Saindo já, da terminologia Nietzscheana, podemos perguntar: ate que ponto
muitos dos valores morais que construímos ao longo dos séculos, não seriam valores
moralistas? Aqui Nietzsche também pode dar luzes a nossa investigação. Ele afirma que
a moral ocidental está baseada nas idéias de culpa, má consciência e nos ideais
ascéticos. Os ideais ascéticos, diz ele, estão baseados nas noções de humildade, pobreza
e castidade. Ao se perguntar, posteriormente, sobre "o que significa o ideal ascético?"
Ele afirma:
"O pensamento em torno do qual aqui se peleja é a
valoração de nossa vida por parte dos sacerdotes ascéticos:
esta (juntamente com aquilo a que pertence natureza, mundo,
toda a esfera do vir a ser e da transitoriedade) é por eles
colocada em relação com uma existência totalmente outra , a
qual exclui e à qual se opõe, a menos que se volte contra si
mesma, que negue a si mesma: neste caso, o caso de uma
vida ascética, a vida vale como uma ponte para esta outra
existência. O asceta trata a vida como um caminho errado,
que se deve, enfim, desandar até o ponto onde começa; ou
como um erro que se refuta- que se deve refutar com a ação:
pois ele exige que se vá com ele, e impõe, onde pode a sua
valoração da existência. Que significa isso? Um tal
monstruoso modo de valorar não se acha inscrito como
exceção e curiosidade na história do homem: é um dos fatos
mais
difundidos
consideremos
e
com
duradouros
que
que
existem...
regularidade,
com
Pois
que
universalidade, como em quase todos os tempos aparece o
sacerdote ascético; ele não pertence a nenhuma raça
determinada; floresce em toda parte; brota de todas as
classes”24
O ascetismo, pois, característico da moral ocidental, implica na negação do
pathos, da paixão, do sentimento, do instinto, do prazer. Implica, enfim, na negação de
tudo aquilo que no homem é animal. Se for assim, não poderíamos dizer que o
ascetismo é uma das características de uma moral moralista? Se uma concepção
moralista é aquela que "se pretende emitir julgamentos de valor negativos sobre aquilo
que se refere ao comportamento pessoal de indivíduos que não prejudicam a outrem
24
Ibid p. 131
com seu comportamento ou que valora distintamente pessoas ou grupos de pessoas em
função de características naturais (físicas, sexuais ou geográficas) ou opções
diferenciadas", não poderíamos deduzir que muitas vezes estes julgamentos de valor
negativos são emitidos exatamente em função de uma postura ascética que quer estender
a sua concepção ascética do mundo a todo mundo? Em outras palavras, será que muitas
vezes o moralismo não surge em função de uma postura ascética?
3. A Moral invertida: O Moralismo
Conforme já vimos, a Moral exige necessariamente um aporte ao universal. O
aporte moralista, porém é um aporte deturpado. Deturpado, em primeiro lugar, porque
os julgamentos moralistas, embora se pretendam universais, não se qualificam para uma
pretensão à universalidade quando os analisamos mais profundamente. Ao contrario,
exatamente por não respeitar a diferença e o diferente, os julgamentos moralistas são
extremamente subjetivistas. Afinal de contas, em que nos basearíamos para fazer, por
exemplo, um julgamento do tipo "ter filhos fora do casamento é errado", ou "as
mulheres devem restringir-se às atividades do lar?" Estes julgamentos não atendem ao
critério da universalidade. Se todas as mulheres resolvessem a partir de agora ter filhos
sem serem casadas, nada de catastrófico aconteceria no mundo. Do mesmo modo, se
todas as mulheres resolvessem a partir de hoje trabalhar fora o máximo que isto geraria
seria uma grande dor de cabeça para alguns maridos machistas. A universalização
destes comportamentos não gera nenhuma conseqüência nefasta para a humanidade, ou
mesmo para a sociedade na qual estamos inseridos. Isto mostra que o que é errado não
são estes comportamentos. O que e errado e julgar que estes comportamentos (por
exemplo, ter filhos sem ser casado; mulher trabalhar fora de casa) são errados, julgar
que estes comportamentos são imorais.
Observe que algo bem diferente se dá em relação a atos ou comportamentos
relativos à corrupção, a mentira, ao roubo, a exploração. Se todas as pessoas do mundo
resolvessem mentir, ou agir corruptamente, ou roubar ou explorar o semelhante seria o
caos. As conseqüências, pois, para a sociedade e para a humanidade seriam
extremamente
negativas,
extremamente
nefastas,
o
que
mostra
que
estes
comportamentos (praticar a corrupção, mentir, roubar, explorar) são errados, são
imorais.
A grande questão, porém, é a seguinte: porque muitas vezes muitas pessoas
estão dispostas a aceitar, ou pelo menos a serem condescendentes com atos e
comportamentos do segundo tipo (corrupção, roubo, mentira) e a condenar prontamente
os comportamentos do primeiro grupo (mulher trabalhar fora, ter uma produção
independente)? É extremamente importante que estejamos dispostos a fazer uma
profunda reflexão sobre este comportamento (ser condescendente com comportamentos
do segundo grupo e condenar os do primeiro). Esta reflexão pode nos Ievar a
compreender que muitos dos julgamentos que fazemos do ponto de vista moral, nada
tem de moral, são totalmente moralistas.
Esta consciência implica em compreender que fazemos parte de uma sociedade
cujos valores estão profundamente invertidos, uma sociedade moralista, e exatamente
por isto, imoral, anti-ética. Com esta consciência estamos muito mais aptos para
compreender problemas seríssimos do Brasil e do mundo contemporâneo, como falta de
ética na política, a falta de solidariedade com o outro, desumanização da sociedade, a
falta de investimento no social, o egoísmo. Uma moral moralista é uma moral invertida.
É uma moral que diz ser certo o que é errado e diz ser errado o que é certo. É uma moral
imoral. É, talvez, a expressão máxima da imoralidade.
4. Preconceito
Para seguir adiante na análise do que é o moralismo vamos analisar o que é o
preconceito. A mera análise da palavra nos diz digo sobre o significado do termo: pré +
conceito. Pelo dicionário temos três definições:
1. Um conceito formado antecipadamente e sem fundamento razoável.
2. Um estado de superstição. Superstição que obriga a certos atos ou impede que eles
sejam praticados.
3. Um estado de cegueira moral.
Vamos inicialmente analisar a definição 1. O que é um conceito formado
antecipadamente e sem fundamento razoável? É basicamente um conceito injustificado,
ou seja, um conceito para o qual não se consegue dar boas razões. Se por exemplo, um
indivíduo X afirma que as mulheres são intelectualmente inferiores aos homens e ao ser
questionado sobre os motivos desta sua afirmação ele não consegue dar uma
justificativa, este indivíduo está sendo preconceituoso em relação às mulheres, e isto
está ainda de acordo com a definição. Suponhamos, entretanto, como hipótese adicional,
que este mesmo indivíduo X tem, em mãos, uma pesquisa na qual se observa que os
resultados obtidos por mulheres em testes de QI são, em geral, inferiores aos resultados
obtidos pelos homens. Neste caso, pela definição, o indivíduo X deixaria de estar
expressando um preconceito porque agora ele tem uma boa justificativa para sua
afirmação. O conceito deixa de ser um pré-conceito e passa a ser um conceito. Um
conceito equivocado, talvez, diríamos nós aludindo a outra série de razões para mostrar
que testes de QI, por exemplo, não servem para medir a capacidade intelectual das
pessoas. Mas aí tudo é uma questão de crença, e não poderíamos mais dizer que o
indivíduo X é preconceituoso no sentido em que é definido primeiramente preconceito.
Se ele efetivamente acredita na validade dos testes de QI ele está simplesmente fazendo
uma mera observação ao dizer que as mulheres são intelectualmente inferiores aos
homens.
Se há dúvidas sobre isso façamos o raciocínio inverso. Suponhamos que X tenha
em mãos uma pesquisa na qual se mostre que os resultados obtidos pelos homens em
testes de QI são inferiores aos das mulheres. Neste caso nosso X teria que admitir a
afirmação: os homens são intelectualmente inferiores às mulheres. Esta seria uma
observação do mesmo tipo de Y é homossexual, para alguém que se descobrisse que
mantém relações com pessoas do mesmo sexo, ou do tipo Z é amarelo, para alguém que
tenha a cor de pele amarela. Não há aí nenhum preconceito. O problema, o grande
problema, é que afirmações como estas, muitas vezes, vêm carregadas de um conteúdo
que transcende a mera observação, e passa-se, então, a se atribuir à observação um
caráter valorativo geralmente depreciativo, e aí está o preconceito. São os casos em que
as observações encerram já em si um julgamento de valor negativo, mas que só se
consegue descobrir no contexto. Neste caso dizer que Joana é mulher tem muito mais
implicações do que a mera observação sobre o gênero a qual pertence; Joana é negra
significa muito mais do que uma mera constatação sobre a cor de sua pele; Joana é
homossexual não significa uma simples referência a sua opção sexual, Joana é prostituta
é muito mais do que uma observação sobre a sua profissão,
É por isto que acredito que a boa definição sobre preconceito passa
necessariamente pela definição 3, Preconceito tem a ver com moralidade. Na realidade o
preconceito é fruto de uma concepção moral deturpada, ou se quiserem, uma concepção
moral moralista.
Na realidade o preconceituoso é antes de tudo um "negador de diferenças". O
preconceituoso acha que tudo aquilo que é diferente de si próprio, pelo mero e único
fato de ser diferente de si próprio, é inferior. Existe aqui um forte componente narcísico
e egoísta. O preconceituoso não aceita a diferença e vaiara como ruim tudo aquilo que
não é feito a sua imagem e semelhança.
O preconceito pode se manifestar de diversas formas. Na sua forma mais rude
ele toma o nome de discriminação. O que é discriminação? É a negação de direitos que
são reconhecidos como sendo direitos de todo ser humano à determinados grupos ou
pessoas em função de pertencerem a determinado gênero, determinada raça,
determinada região ou terem determinada preferência sexual ou de crença que é
perfeitamente compatível com a liberdade alheia. A discriminação se apresenta sempre
de forma manifesta, dos mais diversos modos, passando desde a proibição de freqüentar
determinados locais, até a hostilização pública e chegando a discriminação na própria
legislação,
Mas o preconceito pode ser também dissimulado, e talvez nesta sua forma de
apresentação ele seja tão ou talvez ainda mais nefasto do que a que ocorre na
discriminação. O preconceito dissimulado é aquele que se esconde, que opera não
ostensivamente, aparecendo nos bastidores e não nos palcos, é aquele que escorrega ... É
possível aqui estabelecer uma analogia entre esta manifestação do preconceito e as
estratégias do poder autocrático. Conforme nos diz Norberto Bobbio:
"Como já afirmei o poder autocrático não apenas esconde para
não fazer saber quem é e onde está, mas tende também a
esconder suas reais intenções no momento em que suas decisões
devem tornar-se públicas. Tanto o esconder-se quanto o
esconder são duas estratégias habituais do ocultamento.
Quando não se pode evitar o contato com o público coloca-se a
máscara. Nos escritores da razão de estado o tema da
"mendacidade" é um tema obrigatório assim como é obrigatória
a referência à nobre mentira de Platão ou aos discursos
sofísticos de Aristóteles. Torna-se communis opinio que quem
detém o poder e deve continuamente resguardar-se de inimigos
externos e internos tem o direito de mentir, mais precisamente
de simular, isto é, de fazer aparecer o que não existe e de
dissimular, isto é, de não fazer aparecer o que existe “25
A simulação e a dissimulação são características do poder autocrático como
afirma Bobbio. Podemos ir além dele afirmando que o preconceito que se dissimula
também é uma das estratégias deste poder; poder este que se manifesta nas diversas
instâncias da sociedade. Este preconceito que não discrimina ostensivamente, mas que
25
Bobbio, Norberto - o Futuro da Democracia: Uma Defesa das Regras do Jogo - p.96
opera nos bastidores, tenta produzir como resultado de seu operar uma discriminação
muito mais fina, refinada e talvez por isso mais perversa. E sua perversidade está
justamente no seu mascaramento. É como se ele produzisse resultados discriminatórios
sem, entretanto fazer aparecer sua fonte. Ao operar deste modo ele se torna
extremamente difícil de ser combatido.
Pra continuar nossa análise, vou fazer aqui uma discussão em relação a dois
preconceitos clássicos, o preconceito contra os homossexuais e o preconceito contra as
prostitutas.
5. O preconceito contra os homossexuais
Como se apresenta o preconceito contra os homossexuais nos dias de hoje? Aqui
no Brasil neste fim de século os gays e lésbicas estão realmente sendo aceitos pela
sociedade ou trata-se apenas de uma aceitação aparente?
Há vários elementos que devem ser analisados para que se compreenda mais
profundamente o que está acontecendo em nossa sociedade no que se refere a esta
questão. No plano relativo aos direitos observe-se que houve e há uma resistência
enorme a aceitação do projeto de Martha Suplicy que permite a ampliação dos direitos
relativos a homossexuais que vivem juntos e constroem patrimônios em comum. Por
outro lado há uma série de decisões judiciais que são favoráveis aos homossexuais. No
mês de junho de 2000 (só pra dar um exemplo), a Oitava Câmara Cível do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul decidiu por unanimidade que um casal de lésbicas poderia
resolver a partilha do patrimônio numa Vara de Família. A decisão desfez o
entendimento anterior de que Varas de Família deveriam tratar apenas de questões
envolvendo uniões estáveis entre marido e mulher.
Estes dois fatos refletem o que está acontecendo na sociedade brasileira em nível
de aceitação do homossexualismo. Na realidade está sendo travada uma luta surda e
quotidiana entre aqueles que são partidários, ainda que não se dêem conta, de uma
moral preconceituosa que não aceita gays e lésbicas e aqueles que entendem que o
direito de se relacionar sexual e afetivamente com pessoas do mesmo sexo é um direito
inalienável de todo ser humano. Observe-se, entretanto, e é basicamente para isso que
quero chamar atenção, que os partidários desta moral preconceituosa são em muito
maior número do que se supõem. Há uma minoria que expressa seu preconceito e
muitas vezes até discrimina, mas há também um outro contingente de pessoas, aquelas
que não tem coragem de assumir seu preconceito e praticam o que chamamos de
"preconceito dissimulado". Esse preconceito, hipócrita por excelência, acaba se
revelando em vários momentos: quando os pais que tem em suas relações amigos
homossexuais desabam quando descobrem que seu próprio filho é gay ou quando um
casal homossexual centrado, bem resolvido e bem sucedido visita a sua sala de jantar
toda noite através das imagens transmitidas pela maior rede de telecomunicações do
país em novela no horário nobre, e o público mostra nas pesquisas que prefere a retirada
dos personagens da novela.
São estes fatos, estas atitudes e muitas outras, que se manifestam no dia-a-dia
que mostram o quanto é grande o preconceito contra os homossexuais, o preconceito
que não se revela, o preconceito que não ousa dizer o seu nome. Surge, então, uma outra
questão a ser abordada posteriormente que é a questão da dissimulação: porque as
pessoas dissimulam o preconceito? Porque elas dizem não ter aquilo que elas de fato
tem?
6. O preconceito em relação à prostituição
E o preconceito em relação as prostitutas, como se apresenta? Na realidade
temos aqui uma das maiores expressões da hipocrisia humana. As mesmas pessoas que
utilizam da prostituição são as primeiras a condená-la. A questão básica em relação a
prostituição é a seguinte: porque a comercialização do sexo deve ser vista como imoral,
se ela é consentida tanto por quem está vendendo seu corpo quanto por quem está
comprando? A prostituição só deve ser condenada em dois momentos:
a) quando a pessoa que está se prostituindo está sendo obrigada por alguém ou por
alguma condição exterior a ela a fazê-lo, ou seja, não é de sua livre e espontânea
vontade (que é a maioria dos casos relativos ao comércio internacional do sexo).
b) quando a pessoa que está se prostituindo é menor de idade, e deste modo, não tem
condições de compreender todas as conseqüências de seu ato.
Nestes dois casos a prostituição se torna imoral (a prostituição, claro, e não
quem a pratica) Em qualquer outro caso, entretanto, a condenação moral a prostituição é
uma condenação moralista e preconceituosa, já que não há nenhum motivo para que se
condene a prostituição e não se condene outras profissões que são exercidas sem a
vontade legítima de quem a exerce. Na realidade, em todas profissões há os que a
exercem porque necessitam, os que a exercem porque gostam e os que a exercem
porque necessitam e gostam. Se há algo a ser condenado, este algo deve ser a sociedade
em que vivemos que permite e é conivente com a dissociação entre trabalho e realização
pessoal. Mas porque os moralistas de plantão nunca pensaram em salvar os bancários,
os médicos, os professores, enfim, todos aqueles que estão descontentes com suas
profissões exercendo-as apenas por necessidade e conscientizá-los de que devem
procurar outras atividades? Porque se pensa que apenas as prostitutas é que estão
exercendo suas profissões por mera necessidade e que, portanto, devem ser salvas da
perdição?
A questão da prostituição é extremamente complexa. Muitos afirmam que a
prostituição é fruto do processo de exclusão social, e que elas(eles) são jogadas(os)
neste mercado pela falta de oportunidades de emprego. Obviamente que isto ocorre, ou
seja, o desemprego contribui com a prostituição, mas ele não é o único fator a
influenciar a prostituição. Há um elemento último fundamental que é a escolha de quem
se prostitui e não há como fugir a isto. Em grandes centros urbanos a possibilidade de
auferir ganhos com a prostituição para um determinado tipo de mulheres ou de homens
(geralmente com juventude e beleza) é muito maior do que a possibilidade de auferir
ganhos com empregos que exigem nível de escolaridade médio. E neste caso, ainda que
exista a possibilidade concreta do emprego, muitos preferem a opção da prostituição.
Trata-se de uma escolha e não de uma imposição.
Este é um dos tipos de prostituição. Há, evidentemente, uma outra situação em
que as pessoas se prostituem única e exclusivamente em função de condições
econômicas totalmente adversas (o que é o caso de muita gente no Brasil e em países
muito pobres em que a prostituição é uma das únicas opções de sobrevivência). Nestes
casos há uma espécie de imposição social. A prostituição, que é fruto deste tipo de
condição social, tende a diminuir drasticamente a medida em que houver melhor
distribuição de renda e adoção de políticas públicas efetivas nos países em que ela
existe.
Mas seja qual for o motivo que leva as pessoas a se prostituírem, o fato é que a
sociedade é extremamente preconceituosa e cruel com as prostitutas. Apesar de como se
diz, ela ser uma das mais milenares profissões, a sociedade atual muitas vezes não
concede a ela nem este status, ou seja, o status de ser uma profissão.
Uma das formas de manifestação deste preconceito e desta crueldade é através
da violência. Classicamente dividimos a violência em violência física, sexual e
psicológica. Os profissionais do sexo são vítimas diárias e quotidianas destes três tipos
de violência. A violência sexual muitas vezes ocorre no próprio exercício da profissão,
quando alguns clientes se sentem tentados a violar qualquer acordo que tenha sido feito
sobre o que é admissível ou não na relação. A ausência do acordo também é motivo
para a violação, sob a alegação de que o pagamento significa o poder total sobre o corpo
da profissional, o que obviamente é uma visão imoral. Mas a condição a que o
profissional do sexo, principalmente a prostituta, se encontra é, infelizmente,
extremamente favorável a este tipo de abuso. Não só porque, em função de sua
inferioridade física, a possibilidade de uma reação é muito pequena, mas principalmente
porque a chance de uma prostituta ver aceita uma reclamação por violência sexual
durante o exercício da sua profissão, diante de um tribunal, é praticamente nula.
A violência física a que os (as) profissionais do sexo estão sujeitos (as) também
é preocupante. O preconceito é tão forte que faz com que muitos não os (as) vejam
como cidadãos (ãs), como pessoas que são sujeito de direitos, exatamente como muitas
vezes acontece com os mendigos, homossexuais, travestis etc... E ao não reconhecê-los
(as) como cidadãos (ãs), imediatamente há a caracterização do diferente e do inferior. E
ao inferior não se respeita, se humilha, se maltrata. Essa é a perversa lógica dominador.
A perversa lógica da violência.
Mas a violência psicológica, que no caso eu chamaria de violência
moral/psicológica, parece ser a pior, pois se manifesta a todo o momento. A sociedade
parece disposta a condenar, a todo momento, as prostitutas e a prostituição. O termo
chulo para designar prostituição é usado para designar, nos mais diversos contextos,
algo ruim. Conviver com este estigma, como se, a todo momento, a sociedade dissesse
ao(à) profissional do sexo que ele está fazendo algo errado é um fardo pesado demais. O
que as pessoas e o sistema social como um todo fazem com as prostitutas, condenandoas, é uma maldade, uma violência, uma imoralidade. Uma imoralidade que está
diretamente ligada ao preconceito.
7. A Dissimulação e a Hipocrisia
Quando fizemos a análise sobre o preconceito em relação aos homossexuais e as
prostitutas apareceram os conceitos de dissimulação e de hipocrisia. Dissimular vem do
latim dissimulare que significa não revelar os seus sentimentos ou desígnios. Significa,
também, obrar dissimulada mente, afetar, não perceber ou não ouvir o que se faz e diz.
Não deixar aparecer, cobrir, disfarçar. Não dar a perceber, calar. Fingir, apresentar
como escusa. Tornar pouco sensível ou notável; atenuar o efeito de. Ocultar-se,
esconder-se. Já hipocrisia vem do latim hypocrisis que significa declamação, ato de
representar. Hipocrisia pode significar também a manifestação de qualidades ou
sentimentos bons que na realidade não se tem.
A dissimulação e a hipocrisia são alguns dos sentimentos mais perversos do ser
humano. O dissimulado mente, engana, finge. Trata o outro sempre como meio, nunca
como fim, trata o outro sempre como meio para atingir seus objetivos, não vendo o seu
semelhante como um sujeito de direitos, como alguém que tem o direito à verdade,
alguém que tem o direito de não, ser enganado. André Comte Sponville escreveu o livro
chamado Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Entre estas virtudes ele cita a
fidelidade, a coragem, a justiça a temperança, a tolerância a doçura. Se fosse escrito um
pequeno tratado dos grandes vícios, a dissimulação, junto com a hipocrisia, estaria entre
eles. Curiosamente vem da literatura, através de Shakespeare, as apresentações mais
perfeitas sobre o comportamento dissimulado, tanto nas suas obras trágicas, como, por
exemplo, no Rei Lear, em Mac Beth, quanto nas comédias como Muito Barulho pra
Nada e Medida por Medida.
O comportamento dissimulado está diretamente associado a moral moralista. Se,
conforme já vimos, os julgamentos moralistas não são universalizáveis, sendo
subjetivistas, o moralista não tem como justificar racionalmente sua atitude. Esta
impossibilidade de justificação, em última instância, é a prova de que estamos diante de
um modo de valoração errado, imoral. O moralista, pois, não tem como argumentar
racionalmente em relação a sua convicção, no fundo ele sabe que ela não se sustenta.
Exatamente por isto ele finge. Ele disfarça, esconde e opera na surdina. Ele dissimula.
Quando ele não age com dissimulação ele age com autoritarismo. Ele tenta impor a sua
concepção, impor o seu modo de valorar. O autoritarismo é a outra face da
dissimulação, é a outra face de uma mesma moeda. O que há de comum entre ambos é
que eles se distanciam do espaço da argumentação, da racionalidade. Exatamente
porque este espaço, o espaço da racionalidade, exige a justificação, e é exatamente esta
que não pode ser dada pelo moralista, exatamente porque os julgamentos de valor
moralistas não são racionais.
O comportamento hipócrita apresenta um passo a mais em relação ao do
dissimulado. O dissimulado finge não acreditar no que acredita, não julgar como julga,
já o hipócrita finge não fazer o que faz. A hipocrisia, como podemos ver pela própria
origem latina da palavra, traz o elemento da encenação. O hipócrita apresenta-se como
sendo quem ele não é e exigindo de todos um comportamento que ele não tem. A
hipocrisia também é característica do moralismo, sendo talvez uma de suas expressões
máximas. O hipócrita é uma vítima do seu próprio moralismo. Ele mostra através da sua
existência as contradições do moralismo. A hipocrisia é um monumento vivo
mostrando, através dos séculos, a que ponto podem chegar as manifestações 'da
irracionalidade humana.
8. A Moral do egoísmo e do individualismo
A postura moralista, como vimos, caracteriza-se, então, pela irracionalidade e
pela inversão de valores. A irracionalidade pode ser vista através da impossibilidade de
que universalizemos julgamentos de valor moralistas. A inversão de valores caracterizase, justamente, por declarar como certo, como bom, aquilo que é errado ou ruim e como
errado ou ruim aquilo que nada tem de ruim ou errado. São característicos deste modo
de valoração: o preconceito, a negação das diferenças, a postura ascética, a dissimulação
e a hipocrisia, entre outros.
O modo de valoração moralista tem, como sua outra face, a "Moral do
Egoísmo". A Moral do Egoísmo tem origem na Grécia Antiga entre os Sofistas.
Trasímaco, um dos mais radicais sofistas, dizia que justiça nada mais é do que a
representação dos interesses dos mais fortes, e encorajava seus pupilos a seguir
unicamente seus próprios interesses, dizendo que a única coisa que interessa aos
indivíduos em uma sociedade é adquirir força e poder. A Moral do egoísmo, sob o nome
de Objetivismo, tem na sua versão contemporânea Ayn Rend, (1905-1982) como sua
maior defensora. Ayn Rend é uma das responsáveis pela formulação dos princípios
"morais" que fundamentam o neo- liberalismo. Ayn Rend nos diz:
"Somente direi que todo sistema político está baseado e se
origina em uma teoria ética... e que a ética objetivista é a base
moral requerida por este sistema econômico-político que é
destruído em todo o mundo, destruído precisamente porque lhe
falta defesa e validez moral e filosófica: o sistema
norteamericano original, o capitalismo. Se morre, terá sido por
abandono, por não ter sido descoberto nem identificado;
nenhum outro assunto foi jamais ocultado através de tantas
distorções, conceitos errôneos e más interpretações. Hoje em
dia, muito poucas pessoas sabem o que é o capitalismo, como
funciona e qual sua história. Quando digo capitalismo me refiro
ao capitalismo de "laissez-faire" total, puro, sem controle
algum, sem regulamentações, com uma clara separação entre
Estado e economia. Um sistema de capitalismo puro assim não
existiu jamais nem nos Estados Unidos, já que desde o começo
houve uma série de controles governamentais que o limitaram e
distorceram. O capitalismo não é um sistema do passado; é o
sistema do futuro... se é que a humanidade há de ter um
futuro”26
Ayn Rend descreve como ninguém a moral do egoísmo, um dos sustentáculos do
capitalismo neoliberal. Entre outras pérolas temos:
"Não existe tal coisa como direito a um emprego - somente
existe o direito ao livre contrato, quer dizer, o direito de um
homem empregar-se se outro homem o escolher para ocupá-lo.
Não existe o direito a uma habitação, unicamente o direito a
trabalhar em liberdade para construir uma casa ou comprá-la.
Não existe o direito a um salário justo ou a um preço justo se
ninguém está disposto a pagá-lo, a encontrar colocação para
um homem ou comprar seu produto. Não há direitos de grupos
especiais, não há direitos de camponeses, de operários, de
homens de negócio, de empregados, empregadores, de idosos,
jovens ou de ainda não nascidos. Somente existem os direitos do
homem, direitos que são propriedades de cada homem
individual e de todos homens como indivíduos. O direito a
propriedade e o direito ao livre comércio são os únicos direitos
econômicos do homem (que de fato são direitos políticos)"27
Por mais que Ayn Rend não queira, a sua moral do egoísmo quando aplicada
acaba descambando para uma moral altamente individualista, do descompromisso total
para com o outro, do "o que me importa é que eu me dê bem". Trata-se do coroamento
da máxima maquiavélica de que "os fins justificam os meios". Através da moral do
individualismo estamos autorizados a fazer qualquer coisa que esteja a nosso alcance,
26
Ayn Rend - La Virtud Dei Egoismo - Plastygraf - P.38
27
Ibid p. 111
com muito poucos limites, para atingir nossos objetivos. E aí se passa por cima do
outro, engana-se, mente-se. Vale tudo e tudo é válido desde que venhamos a nos dar
bem. E o "se dar bem" nada mais é do que conseguir dinheiro, bens (às vezes até não
muito). Não nos enganemos. É a moral do individualismo que está por trás tanto do ato
do adolescente que ataca o outro, chegando a cometer o assassinato, para conseguir o
tênis da moda, até o Lalau que desvia o dinheiro da construção de um prédio público
para seus bolsos. Entre um extremo a outro, entre o extremo do menino que rouba o
tênis até o do grande corrupto, está uma sociedade inteira atônita, onde muitos, nos mais
diversos graus, cometem atitudes que derivam da mesma lógica, da lógica do egoísmo,
e não percebem.
A moral do individualismo acaba sendo profundamente imoral, exatamente
como o moralismo. O que ambas tem em comum é exatamente a sua irracionalidade,
mostrada pela impossibilidade total de sua universalização. O moralismo quando
universalizado revela-se contraditório, e o egoísmo, universalizado, provoca o caos
social.
9. A Transvalorização de todos os valores
Se, como vimos, o modo dominante ocidental de valoração, através do
moralismo, da moral do egoísmo e de suas variações é tão perverso e pernicioso, tão
imoral, nada mais resta a quem tem consciência da sua perniciosidade senão combatêlo. Este combate nos remete necessariamente a Nietzsche e ao início de nosso artigo.
Nietzsche nos fala de uma nova exigência, que é a necessidade de criticar os valores
morais, colocando em questão o próprio valor destes valores.
Fazer uma crítica dos valores, colocar em questão o valor dos valores, implica
em primeiro lugar em tomar uma atitude de profunda pesquisa e reflexão sobre a
sociedade ocidental e sobre o comportamento dos indivíduos. Quais são os princípios de
nossas ações? Como julgamos? Será que o que costumeiramente tomamos como certo é
efetivamente certo? Uma análise inicial nos remete a tomada de consciência de que a
Moral ocidental é profundamente perversa e deturpada. Se aceita a miséria e condena-se
o prazer. Quando não se condena o prazer deriva-se para o extremo oposto e em nome
dele pratica-se todo o tipo de ações, inclusive aquelas que prejudicam e desrespeitam o
outro. Desrespeita-se a diferença e o diferente ou, ao contrário, descambamos para o
extremo de aceitar, em nome do respeito a diferença, práticas e comportamentos que
desrespeitam profundamente os direitos individuais. Já em nome do respeito aos direitos
do indivíduo (como o direito a propriedade e ao livre comércio) admite-se práticas
profundamente danosas para o bem comum (como prejudicar o meio-ambiente,
estabelecer condições indignas de trabalho). A lista é infindável!
Há de se fazer uma reflexão profunda sobre as práticas recorrentes em nossa
sociedade, sobre os nossos valores, sobre a nossa Moral enfim. Esse é o primeiro
momento de um processo cujo nome tomamos emprestado de Nietzsche, um processo
de transvalorização de todos os valores. O segundo momento deste processo é
justamente classificar estes valores em bons valores, ou seja, valores que devem ser
mantidos, e maus valores, valores que devem ser recusados e combatidos. Dos valores
que assumimos quais realmente deveríamos adotar? Será que os julgamentos que
fazemos sobre o que é certo e o que é errado, sobre o que devemos ou não fazer,
realmente refletem o que é certo, o que efetivamente deveria ser feito, como
efetivamente deveríamos nos comportar. E a nossa prática, como é nossa prática?
Estamos sempre dispostos a criticar a imoralidade dos outros, mas será que muitas
vezes também não nos comportamos de modo totalmente egoísta e imoral? O terceiro
momento deste processo é justamente a construção de novos valores, e, portanto, a
mudança da ação, uma mudança de atos, uma nova prática.
Obviamente que estes três momentos do processo de transvalorização não se dão
de forma estanque. Acontecem ao mesmo tempo, com vitórias e reveses como em todo
processo de transformação. A sua efetivação, entretanto, é imprescindível ainda que
mais não seja para a manutenção da vida sobre o planeta Terra. Faz parte da construção
de um novo mundo. Um novo mundo que é possível e que mais do que possível é
necessário. Mas não nos enganemos. O processo de transvalorização dos valores, de
construção de valores novos, valores que efetivamente promovam a vida e a qualidade
de vida é longo, penoso e infelizmente exige muitos atos que poderíamos chamar quase
de heróicos. Não tenho dúvidas que devemos começar esse processo por nós próprios,
ou seja, cada um por si próprio. Que cada um de nós faça uma profunda reflexão sobre a
nossa própria prática, nossos mais pequenos atos, nossas atitudes diárias perante nossos
familiares, nossos colegas, nossos amigos. Será que nós não agimos muitas vezes de
modo moralista ou egoísta? Trata-se de um processo doloroso e duro, no qual corremos
o risco de ser mau interpretados e de sofrer. Mas o dia em que cada um de nós tiver
transformado a si próprio, teremos, enfim, transformado o mundo!
Elementos reflexivos sobre a
insustentabilidade do desenvolvimento
sustentável na sociabilidade do capital
Andréa Lima28
"Não nascemos livres: a liberdade é uma conquista – e mais: uma invenção".
(Octávio Paz)
Estamos vivenciando mais do que nunca os efeitos sintomáticos do
desenvolvimento econômico sem limites que desencadeou um processo de degradação
ambiental no mundo inteiro. São crises de ordem econômica, política, social e ecológica
assentadas na racionalidade capitalista da produção e consumo que intensificou a
degradação ambiental em todo o mundo, considerando que a "pedra filosofal" do
capitalismo maduro está na produção pela produção - o produtivismo.
Este produtivismo ilimitado/que se utiliza, cada vez mais, do advento de novas
técnicas para aumentar a produção, provoca, necessariamente, o aumento da pobreza.
Isto ocorre em virtude da concentração de riqueza que aumenta, substancialmente, as
taxas de desemprego no mundo inteiro e implica na degradação do meio ambiente,
surgindo, assim, uma questão social e uma questão ambiental a ser entendida e
enfrentada como faces de uma mesma moeda. Sobre isto, Bihr (1991:129) adverte: "é
então exatamente o modo de produção capitalista em seu conjunto que, ao submeter a
natureza aos imperativos abstratos da reprodução do capital, engendra a crise
ecológica".
Não é de estranhar o fato deque os maiores poluidores do planeta sejam os
países industrializados. Os EUA29 lideram o ranking perverso da poluição no mundo. Se
hoje temos uma "economia global", temos, também, inevitavelmente, uma degradação
ambiental planetária. No entanto, as conseqüências dessa degradação assumem
28
Assistente Social, mestranda em Serviço Social do Programa de pós-graduação/UFPE; membro do
GEPE-UFPE.
29
Os EUA representam 29% das emissões mundiais de carbono, o que significa um aumento de 18%
entre os anos de 1990 a 2000. As emissões per capita dos Estados Unidos são as mais altas do mundo,
cerca de cinco toneladas por habitante. Representa o dobro do segundo emissor, que é a China, cujas
emissões apesar do acelerado aumento de produção caíram em cerca de 20% entre 1995 até hoje.
particularidades. Uma questão se impõe: como chegamos a esta racionalidade
econômica na qual o sentido e a essência da natureza foram devorados, usurpados e
transformados em mercadoria? Como chegamos a este modelo de desenvolvimento
capitalista perverso, homogeneizado e destruído do meio ambiente?
Nas sociedades primitivas, o uso e a exploração da natureza pelo homem era
realizado numa espécie de simbiose perfeita, retirando da natureza apenas o que
necessitava para a sua subsistência.
A partir do uso e da transformação da natureza, os primeiros hominídeos
inventaram as ferramentas simples de pedra, depois aprenderam a usar o fogo. Com o
passar dos tempos, imersos no processo evolutivo, passaram a elaborar ferramentas
mais sofisticadas para facilitar a atividade da caça, inventando assim, as lanças com
pontas. No Paleolítico Superior, os instrumentos eram feitos com ossos. É neste período
que se registra o início da arte. Tempos depois construíram o arco e a flecha, e, com as
formações das aldeias e também do começo da agricultura (economia doméstica) têm-se
as premissas para o desenvolvimento da propriedade privada.
No final da Idade do Bronze, inaugura-se a época da produção de metais e das
diferenças sociais, pois os indivíduos se distinguiam pelo cobre e pelo ouro que
possuíam. A cada passo da evolução, o homem se viu diante de novas necessidades e é
esta busca permanente pela satisfação de suas necessidades que definiu um novo sentido
para o uso da natureza: os recursos naturais não seriam usados somente para as suas
necessidades básicas, mas serviria para "sustentar" novas necessidades e toda base de
produção material.
Para Marx, a relação homem - natureza era antes de tudo, uma relação de
transformação. O homem consciente do que a natureza poderia porvir retirava dela o
que necessitava, e esta ação era para ambos, transformadora.
“A própria primeira necessidade satisfeita, a ação da satisfação
e o instrumento já adquirido da satisfação, conduz a novas
necessidades - e esta produção de novas necessidades é o
primeiro ato histórico" (Marx e Engels, 1984: 32).
As necessidades humanas são precisamente históricas, pois elas se alteram, se
diluem para consolidação de outras, não há, portanto, um único caminho para resolução
destas necessidades, pois elas se diferem, divergem, elas caminham entre o requinte e a
brutalidade, entre o que explora e o que é explorado, das necessidades materiais mais
básicas de uma classe ao consumo do supérfluo da outra classe.
Se antes, nas sociedades "primitivas", a produção era voltada para a satisfação
das necessidades humanas, na aurora da modernidade o ato de produzir se volta para a
produção da valorização do capital.
Com o surgimento do sistema capitalista, aliado ao pensamento mecanicista da
época, o sentido da dominação e apropriação da natureza ficou mais latente, tornou-se
implacável e ilimitado. A natureza, vista como mero objeto de manipulação e
dominação, tornou-se fonte de riqueza e de lucro para o desenvolvimento das forças
produtivas.
É imperativo ressaltar que a aceleração do processo produtivo que tem sua base
na acumulação do capital provocou crises em todas as esferas da sociedade, porém, o
uso predatório e sistemático da natureza alertou para um fato por muito tempo ignorado:
a natureza não é uma fonte inesgotável de recursos e deste fato emerge um problema a
ser enfrentado: a degradação do meio ambiente.
A degradação ambiental não é um problema contemporâneo, ela se arrasta
secularmente, sendo agravada ao longo de toda história. No entanto, o grito silencioso
da natureza só seria escutado na década de 60, no paroxismo da Guerra Fria; na aurora
dos movimentos que pediam o desarmamento nuclear; sob bombas de Napalm que
caiam no Vietnã; da linha dura do Governo de Kruschev; da construção do muro de
Berlim; no triunfo da Revolução Cubana; do assassinato de John F. Kennedy; no nascer
da Primavera de Praga; das ditaduras latino-americanas; do AI-5 brasileiro; do Maio
Francês.
Uma década efervescente, sobretudo no cenário político, uma década em que o
autoritarismo fora contestado e combatido, sob variadas formas, em várias partes do
mundo, a exemplo dos movimentos de contra-cultura e dos movimentos que pediam
uma chance para paz (peace and love). É, portanto, neste cenário histórico que surgem
as primeiras inquietações públicas sobre a degradação do meio ambiente, provocada,
substancialmente, pelo industrialismo.
Na década de 60, o livro da jornalista Rachel Carson30, intitulado "Primavera
Silenciosa", causou verdadeira celeuma no mundo inteiro por denunciar as agressões
sistemáticas que a natureza vinha sofrendo por parte dos setores industriais.
30
Rachei Carson (1907-1964) nasceu na Pensilvânia/EUA e estudou biologia rnarinha, trabalhou como
editora para o Us fish and Wildlife Service. A publicação do livro "Silent Spring" levou uma indústria
química a denunciá-la como alarmista - acusação que ela sempre negou (Cf: Burnie: 1999).
O sentido e a ação da preservação moderna do meio ambiente tem seu início
com o poético e instigante alerta do Best seller de Carson, no qual mencionava que o
canto dos pássaros seria apenas uma lembrança no mundo envenenado por pesticidas
sintéticos.
O
livro
"Silent
Spring”
foi
considerado
um
clássico
pelas
idéias
preservacionistas que continha, instigando a criação de novos movimentos
ambientalistas e ecológicos e fortalecendo os movimentos já existentes, publicizando,
assim, a complexidade da crise ambiental.
No final dos anos 60, as organizações e movimentos sociais saíram na frente dos
órgãos oficiais do governo e deram visibilidade para a crise ambiental, que há muito
tempo se instalara no planeta, mas só naquele momento os efeitos desta crise estavam
sendo sentidos em larga escala e os problemas advindos da crise postos em debate no
mundo inteiro.
A publicação do relatório "The limits of grawth" (Os limites do crescimento
econômico)
31
e o fortalecimento dos movimentos ambientalistas possibilitaram uma
série de encontros e fóruns internacionais para a discussão das questões ambientais e do
desenvolvimento. Este histórico documento denunciava a pilhagem da natureza pelo
crescimento econômico ilimitado e irresponsável. O relatório criticava terminantemente
o aumento do consumo provocado pelo modelo de desenvolvimento capitalista.
Incentivado
por
estas
e
outras
denúncias,
surge
o
conceito
de
ecodesenvolvimento, utilizado em 1973 pelo canadense Maurice Strong, que apresenta o
ecodesenvolvimento como proposta alternativa de política de desenvolvimento.
Entretanto, foi Ignacy Sachs (1976-1986) que ampliou e formulou os princípios básicos
deste conceito, colocando a satisfação das necessidades básicas dos seres humanos
como uma meta a ser alcançada; o uso prudente e limitado dos recursos naturais;
promoção da gestão participativa e a preservação do meio ambiente natural e
construído; a salvaguarda dos valores éticos, da cultura e a criação de um sistema social
em que estivesse assegurado emprego, saúde, educação.
31
Relatório encomendado pelo Clube de Roma. Fundado em 1968, o Clube agregava trinta especialistas
de diversas áreas cujo objetivo era discutir o futuro da humanidade. Esta entidade foi criada e financiada
por grandes incorporações como a Fiat, Wolkswagen, Ford, Olivetti.
De acordo com Leff (2001: 18), antes que qualquer tentativa de efetivação da
proposta do ecodesenvolvimento fosse efetivada na prática, o potencial crítico desta
proposta foi dissolvido pelas estratégias do poder hegemônico.
Em junho de 1972, aconteceu a antológica Conferência de Estocolmo, que
contou com uma delegação de 113 países, que objetivavam a discussão da preservação
do meio ambiente e a melhoria do ambiente humano. A "Conferência das Nações
Unidas sobre Desenvolvimento Humano" levou a UNESCO, juntamente com o
Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente - PNUMA, a criarem, no ano de
1975, o Programa Internacional de Educação Ambiental.
A Recomendação nº 96, desta conferência, apontava a Educação Ambiental
como elemento estratégico e crítico para o enfrentamento da crise ambiental e, também,
serviu de base para promover a I Conferência sobre Educação Ambiental em 1977, em
Tibilisi (URSS), momento em que foram definidas estratégias para nortear e difundir a
Educação Ambiental no mundo inteiro. Em Tibilisi, foi referendada a necessidade de
incorporar todos os aspectos ambientais, como o político, o social, o cultural, a
dimensão ética e a ecologia para a promoção do desenvolvimento ambiental.
Ainda na década de 70, foram produzidos dois importantes documentos: a
Declaração de Cocoyok de 1974 e o Relatório de Dag-hammerskjold - este último foi
imprescindível para pensar o político, o econômico-social e a cultura como elementos
ambientais que, também, sofrem degradações. No documento de Dag-hammerskjold são
indicados como problemas ambientais o autoritarismo, o extermínio de etnias e a
desvalorização da cultura.
Enquanto relatórios, acordos, protocolos eram criados no marco destas históricas
conferências, a população do mundo inteiro e o planeta sofriam com os efeitos
catastróficos da degradação do meio ambiente natural e construído. Os países de
economia periférica aumentavam o seu endividamento financeiro com as agências
internacionais' (FMI, BID, Banco Mundial); as taxas de desemprego aumentaram
praticamente em quase todos os países do mundo; a fome crescia nos países do Sul, na
África e Ásia; o agravamento da pobreza tornava-se irreversível; o problema da
escassez de água aparecia em várias partes do globo terrestre; o chamado efeito estufa
aumentou excessivamente o aquecimento do planeta; a população mundial produz
bilhões de toneladas de lixo provocado pelo consumo excessivo; o descuido com o
humano e com o meio ambiente produziu acidentes como o de Chernobil; o acidente
com o Césio-137 em Goiás; o ambiente tornou-se cada vez mais inabitável,
insustentável e desumano.
Para a manutenção de uma sociedade cada vez mais consumista tornou-se
oportuno construir uma proposta eficaz para assegurar o crescimento econômico de
forma menos destrutiva para o meio ambiente, um desenvolvimento ecologicamente
sustentável.
A urgência de soluções para os graves problemas ambientais e as pressões dos
movimentos ambientalistas para o enfrentamento da questão ambiental impulsionaram a
ONU a criar, no ano de 1984, a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente(CMMAD)
para avaliar as agressões ambientais e os progressos alcançados na resolução destes
problemas. Depois de três anos de intenso trabalho, a referida comissão produziu um
relatório que propunha uma estratégia de desenvolvimento sustentável menos radical, se
contrapondo às propostas da vertente que difundiu uma concepção de ecologia, digamos
assim, mais democrática e menos mercadológica.
O Relatório Burtland, também conhecido como "Nosso futuro Comum", envolto
ao projeto neoliberal, lançou a proposta e o conceito do Desenvolvimento Sustentável
como um "processo que permite satisfazer as necessidades da população atual sem
comprometer a capacidade de atender as gerações futuras", confluindo assim, a
produção e o acúmulo do capital com o caráter da preservação, do crescimento
econômico com "limites".
É imperativo ressaltar que, nas entrelinhas deste relatório, está o discurso da
política neoliberal e da defesa da globalização. A proposta do Desenvolvimento
Sustentável foi forjada no transformismo32, comumente usado pela classe dominante.
Apesar do Relatório Burtland identificar fossos sociais enormes entre os países,
de relatar que a dívida dos países do terceiro mundo agrava ainda mais os seus
problemas ambientais e que as estratégias de desenvolvimento dos países
32
Transformismo: categoria Gramsciana que assinala a capacidade que tem as classes dominantes de se
apropriarem das reivindicações, categorias e expressões identificadas historicamente com a classe
trabalhadora, dando uma direção social conforme os interesses dominantes. No caso do Desenvolvimento
Sustentável, embora não seja um conceito identificado com a classe trabalhadora, o discurso critico do
ambientalismo que mostrava a contradição entre crescimento econômico e preservação ambiental fora
substituído por um conceito de "ecologização do mercado".
industrializados são insustentáveis para o meio ambiente; a comissão propõe uma
política de consenso com saídas diplomáticas e sem radicalidade para o enfrentamento
da pobreza nos países de economia periférica. Propõe, tão somente o empenho das
Nações Unidas para melhorar a qualidade de vida no planeta. Para Leff, "O discurso da
'sustentabilidade' leva, portanto, a lutar por um crescimento sustentado, sem uma
justificação rigorosa da capacidade do sistema econômico de internalizar as condições
ecológicas e sociais (de sustentabilidade, equidade, justiça e democracia) deste
processo" (2001: 19).
A partir desta nova concepção acerca do Desenvolvimento Sustentado proposto
pelo Relatório Burtland, foi decidido na XLIV Seção da Assembléia Geral das Nações
Unidas, através da resolução 44/228, que a Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento aconteceria no Rio de Janeiro em Junho de 1992 (Rio92). A resolução, também, indicava os principais pontos a serem discutidos nesta
Conferência: proteção da atmosfera; proteção da qualidade da água doce; proteção das
áreas oceânicas e marítimas; combate ao desmatamento, desertificação e seca;
conservação da diversidade biológica; controle de dejetos, principalmente químicos e
tóxicos; erradicação da pobreza e melhorias da qualidade de vida e de trabalho no
campo e na cidade; proteção das condições de saúde.
Na Rio-92 foram reunidos 114 Chefes de Estados; 170 Delegações Oficiais;
representantes do FMI e do Banco Mundial e mais de 3000 ONG’s 33 para discutir sobre
a Questão Ambiental e o Desenvolvimento. Além dos muitos acordos entre os países,
foi aprovado durante a conferência dois importantes documentos: a carta da Terra e a
Agenda 21.
A Declaração do Rio, conhecida também como Carta da Terra, é um belíssimo
texto que versa sobre os anseios, desejos e vontades de todos os povos do mundo,
colocando na centralidade da discussão sobre o Desenvolvimento Sustentável, o ser
humano, além de consagrar o direito dos países pobres ao desenvolvimento. É sem
33
Enquanto os representantes oficiais se reuniam no espaço principal da cúpula, "as ONG's e os
movimentos sociais cumpriam uma movimentada agenda nos estandes armados na praia do Flamengo,
estabelecendo uma nova base de articulação mundial. Destas reuniões resultaram dezenas de declarações
de compromisso e tratados entre as ONG's e movimentos sociais de todo o mundo" (Cf:
www.ongbrasil.org.br).
dúvida um incentivo à paz, à cooperação e à participação. Trata-se, na verdade, de um
tratado para o presente e para as gerações futuras.
A Agenda 21 é o chamado produto central da conferência, "trata-se de
documento político com compromissos assumidos pelos Estados, traduzidos em ações
concretas, sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Será uma espécie de guia da
cooperação internacional para as próximas décadas, pois as ações que estiverem nela
contempladas terão melhores condições de receber cooperação internacional para a
sua realização?34.
A Conferência do Rio de Janeiro marcou historicamente as discussões acerca
dos problemas ambientais pelo fato de trazer, para o debate sobre o meio ambiente, o
problema da fome, as disparidades econômicas e sociais entre os Países do Norte e do
Sul; a dívida externa dos países pobres e dos Estados em Desenvolvimento. Realizada
num caleidoscópio multi-racial, multicultural, de etnias, crenças, ideologias e interesses
distintos, tinha de tudo: dos "ecochatos" às organizações comprometidas com a
degradação humana e ecológica, das propostas que sinalizavam para erradicação da
pobreza ao jogo de impobridades das forças políticas hegemônicas para a manutenção e
funcionamento do mercado.
Das várias sessões de debates, ocorridas durante a Rio-92, merecem destaque
dois acontecimentos: a recusa dos EUA (representado pelo ex-presidente George Bush)
em não assinar o acordo que obriga os países a reduzirem em 20% a emissão de gases
poluentes e o momento da discussão sobre Diversidade Biológica, em que alguns países
ricos, liderados pelos EUA, lançaram a proposta de que a Diversidade Biológica de um
país fosse "patrimônio comum da humanidade", o que causou uma divisão entre os
países que defendiam a soberania do seu território, entre eles o Brasil.
Sem tirar o mérito da Conferência, a sua importância, relevância e contribuição
histórica para a discussão da questão ambiental e da construção de possibilidades para
um mundo realmente sustentável, é importante ressaltar que houve também na Rio-92
propostas absurdas de internacionalização da biodiversidade em nome do mercado
consumidor. Na sessão que tratava da erradicação da pobreza não vimos, por exemplo, a
34
Cf: Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento: Relatório da Delegação
Brasileira. Brasília, 1993.
construção de um protocolo com objetivo de colocar um fim na dívida externa dos
países pobres.
As propostas e os acordos de cooperação, firmados na Rio-92 sobre
desenvolvimento econômico sustentado; mudanças climáticas e biodiversidade foram
condensados como plano de ação que deveria ser executado pelos países que
referendaram a Agenda 21. Mas o que mudou depois da implantação da Agenda 21?
Quais as mudanças substanciais alcançadas na melhoria da qualidade de vida nos países
periféricos? O que mudou no continente africano? Houve empenho dos países
desenvolvidos para a erradicação da pobreza? Os direitos humanos foram ampliados
para promoção do desenvolvimento humano?
Estamos distantes, exatamente, uma década da Conferência das Nações Unidas
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento ocorrida em 1992 e as indagações feitas
anteriormente sobre as possíveis mudanças que ocorreriam com a efetivação da Agenda
21 são dúvidas elementares que podem ser respondidas através da complexidade que a
realidade expõe quanto à situação dos países pobres que estão cada vez mais pobres; da
destruição das florestas tropicais em mais de 2,5% só nos anos 90; através da
pauperização cada vez mais crescente de milhões de pessoas no mundo inteiro. A
resposta para saber se houve empenho e concretude das ações contidas na Agenda 21
para um ambiente mais "limpo", sustentado e humano é necessariamente histórica e
objetiva.
Apesar de importantes, as estratégias preservacionistas, as micro-ações
cotidianas, os esforços da implementação das Agendas 21 Locais, os protocolos e
acordos firmados, o trabalho das ONG's e da sociedade civil organizada, não surtiu o
efeito desejado, ansiado e construído de forma coletiva no que confere ao combate à
pobreza; à mudança no padrão de consumo; à proteção e promoção da saúde humana;
do comprometimento dos países ricos em doar 0,7% do PIB para ajudar no
desenvolvimento dos países pobres. Transcorridos dez anos, passamos do simulacro "do
muito ter sido feito" para o real e o que a história nos mostra, algo que o projeto
capitalista foi capaz de realizar ao longo do seu intenso processo produtivo: uma
degradação ambiental continuada e a decrepitude dos valores éticos e morais do ser
humano.
É imperativo saber, que não houve imobilismo no enfrentamento dos problemas
ambientais, mas mudanças no alvo a ser atingido. O modelo de desenvolvimento
hegemônico que de fato é o maior responsável pelos impactos que o meio ambiente vem
sofrendo, tornou-se a partir do conceito e da ilusão do discurso do Desenvolvimento
Sustentável algo conciliável com o patrimônio comum da humanidade: a natureza. O
que subordinou, fragmentou e destruiu a natureza para a reprodução do capital,
apresentou-se como um caminho conciliador entre a economia, o equilíbrio ecológico e
melhoria das condições de vida da população mundial.
Minha crítica transita os espaços das centenas de ações "ecológicas reformistas"
que não tocam no ponto nevrálgico do problema ambiental: o produtivismo. A racional
idade produtiva não é atingida, pelo contrário, é reinventada, renovada com práticas e
idéias de um ambientalismo mercadológico que abre o caminho para a (re) apropriação
da natureza na "nova" ordem econômica. Segundo Bihr (1991: 133),
um reformismo ecológico é possível. Pode-se, de fato, conceber
muito bem que os movimentos sociais e/ou os Estados
conseguem impor aos industriais e às administrações normas e
controles obrigatórios em matéria de ocupação das paisagens e
do uso da exploração das riquezas naturais de modo a
favorecer modos de produzir e de consumir que não só sejam
mais ecológicos, mas, além disso, abram novos caminhos para
acumulação do capital. Isso já acontece no que diz respeito à
indústria de reciclagem de resíduos industriais que prometeria
um belo futuro na perspectiva do desenvolvimento de um
capitalismo ecologicamente reformado.
Sabe-se hoje que os efeitos danosos do neoliberalismo e da "globalização" no
campo da política e da economia contribuíram, também, para intensificar a degradação
do meio ambiente no decorrer dos anos 90, agravando, assim, os problemas ambientais
discutidos na Rio-92.
Pela via do neoliberalismo e pelo fenômeno da globalização, têm-se o advento
de novas técnicas para gerar investimentos, suprir e ampliar o mercado que é cada vez
mais competitivo, temos um Estado cada vez mais forte para atender aos interesses das
corporações transnacionais e das agências multilaterais e um novo ethos social,
construto da mundialização capitalista. Um ethos perverso, individualista, fragmentado
e que vê, ainda, a natureza como mais uma ferramenta a ser manipulada, subjugada,
coisificada, mercadorizada.
Segundo dados do Fundo Mundial da Natureza (WWF), divulgados no
"Relatório Planeta Vivo 2002", o ser humano está usando 20% a mais dos recursos
naturais do que o planeta é capaz de repor e em 2050 estaremos consumindo o dobro da
capacidade dos recursos provenientes da terra. A exploração da natureza pelo modelo de
desenvolvimento passou do limite que o planeta pode suportar, de acordo com o
relatório.
O retrocesso no âmbito da questão ambiental foi geral, tanto no que confere ao
ecológico quanto nas outras dimensões da vida social. A poluição atmosférica causa
mais de três milhões de mortes por ano no mundo; as emissões do gás carbono
aumentaram consideravelmente nos anos 90, talvez pelo fato dos países industrializados
estarem motivados com a campanha dos EUA contra o Protocolo de Kioto35. Estamos
diante de um fato que vai marcar profundamente esta década, a produção de alimentos
que nunca foi capaz de saciar a fome, (em virtude dos interesses econômicos-políticos
da burguesia) será possivelmente diminuída nos próximos anos. Estudos recentes da
ONU colocam a questão do aquecimento global numa relação direta com a produção de
alimentos, "os países mais pobres serão os mais afetados, pois poderão perder seus
potenciais de produção em razão das mudanças climáticas36”.
Os acordos multilaterais sobre Meio Ambiente no que se refere ao combate à
pobreza, à transferência de tecnologia e da redução dos níveis de poluição nos países
industrializados foram completamente ignorados, pois a resolução destes problemas
remete necessariamente, à extinção do modelo de desenvolvimento predatório
hegemônico.
A Conferência de Johannesburgo, intitulada de Rio+10, foi uma tentativa de
validar o que tinha sido discutido e acordado na Rio- 92, se constituindo em mais uma
busca das Nações unidas em (re)estabelecer metas para a promoção do
Desenvolvimento Sustentável.
A maioria das ONG's presentes na, Cúpula da Terra criticaram o Plano de Ação
Global construídos na Rio+ 10, pois não fixava metas ou avanços fundamentais sobre o
desenvolvimento dos países pobres, como a questão da dívida externa; a transferência
de recursos e de tecnologia; dos subsídios para a exportação agrícola etc. De acordo
35
Acordo internacional para a redução dos gases que contribuem para o efeito estufa. Na Cúpula de
Johanesburgo a China e a Rússia ratificaram o protocolo, o Canadá ficou só na promessa e os EUA
permaneceram na sua empáfia.
36
Informações no site: wwf.org. br
com Andrew Hewett da ONG inglesa Oxfan, o encontro foi "o triunfo da ganância e do
interesse pessoal, uma tragédia para os pobres e para o meio ambiente37".
As discussões acerca da energia foi um ponto de impasse da conferência. Como
já era de se esperar, os EUA como maior consumidor de petróleo do mundo, tratou de
derrubar as iniciativas que ampliaria as fontes renováveis de energia, como a solar e a
eólica38, descartando qualquer mudança mais radical no uso dos combustíveis fósseis.
Os impasses ocorridos na Cúpula da Terra, a falta de soluções concretas para o
desenvolvimento dos países periféricos e o descumprimento dos muitos acordos
firmados anteriormente nas antológicas conferências sobre Meio -Ambiente são velhos
pleonasmos que descambam para um mundo cada vez mais degradado, pauperizado,
estranhado, espoliado, no qual a liberdade humana é solapada pelos acordos ambientais
subservientes às regras do jogo da ordem societal, das regras da OMC, FMI, do Banco
Mundial e do unilateralismo americano.
O que se viu foi uma reunião acontecer num clima tenso de uma nova guerra: a
guerra "preventiva" de Bush. Os acontecimentos do 11 de Setembro nos EUA
respingaram no mundo inteiro. Em nome da "guerra contra o terror", direitos políticos,
civis e sociais foram cerceados em quase todos os continentes. O etnicismo, o racismo,
a xenofobia e o genocídio são símbolos desta nova guerra nociva ao gênero humano e
ao planeta. A Rio+ 10 é contemporânea ao momento em que os EUA e países da União
Européia intensificam a campanha de internacionalização da Amazônia.
Tudo isso acontece em plena crise do Oriente Médio, mediante o provável
ataque americano ao Iraque. Os Chefes de Estados, delegações e participantes da
conferência assistem a derrocada do Estado de Direito, vêem o autoritarismo triunfar,
presenciam a redução da qualidade de vida das populações pobres. Assim, a Rio+ 10
aconteceu no cenário insustentável do projeto de Desenvolvimento capitalista para o
meio ambiente.
37
38
Cf: http://globonews.globo .corn/componentes/articles
Com o uso sistemático e predatório dos combustíveis fósseis o uso de energia renovável é
imprescindível para a produção viável e sustentável de energia. Alguns especialistas afirmam que se
existirem pesquisas e investimentos a participação do consumo destas energias aumentará em 20%,
podendo, ainda reduzir as emissões de dióxido de carbono em mais de um bilhão de toneladas por ano
(Burnie: 1999).
A incompatibilidade entre o atual padrão de produção e consumo e o
Desenvolvimento Sustentável é visível. Somente com o passar de uma década frustrada
para o meio ambiente, temos a clareza de que a trilha percorrida para a sustentabilidade
ambiental fracassou, se perdeu na ideologização do discurso do Desenvolvimento
Sustentável globalizado e na sua artificialidade de preservação ambiental, equidade,
justiça e de direitos para os povos do presente e para as gerações futuras. E este fracasso
não está somente assentado na ação predatória dos indivíduos em suas vidas cotidianas,
mas ancorado ao mercado mundializado e aos seus instrumentos eficazes de produção e
reprodução da ordem vigente.
O discurso ideológico de cunho neoliberal do Desenvolvimento Sustentável que
propõe a "satisfação das necessidades da população sem comprometer a capacidade de
atender às gerações futuras "foi devorado pelo consumismo voraz dos países
industrializados. Hoje estamos além da capacidade de recursos que a biosfera pode
prover. As promessas de combate à pobreza e de promover o desenvolvimento dos
países pobres propagadas nos fóruns internacionais não têm condições objetivas de
efetividade frente aos interesses do capital internacional.
Os acordos comerciais internacionais como o NAFTA, a OMC e o projeto
estratégico de ordem político, econômico e militar para as Américas - ALCA e o Plano
Colômbia são indiscutivelmente destrutivos para o meio ambiente. Tanto estes, como os
protocolos, os acordos de cooperação para o meio ambiente tirados nas conferências da
ONU são, na maioria das vezes, instrumentos para anexar, regular e aumentar a
dependência dos países periféricos e em desenvolvimento.
Estes acordos multilaterais mercadorizam a natureza, promovem o genocídio de
etnias, segregam os povos ameríndios, põem em risco a segurança alimentar da
população mundial, criam barreiras comerciais, definem regras que impedem a
autonomia dos países do Sul. São metas de um desenvolvimento que compromete o
direito às necessidades mais básicas da população: o direito de comer e beber água
potável; o direito à saúde, educação, ao saneamento. Compromete o direito à liberdade
de orientação sexual e coloca em xeque a possibilidade da efetivação dos direitos
humanos e coletivos.
Desta forma, a proposta de Desenvolvimento Sustentável, mergulhado no caldo
sexista; privatista; de massificação cultural; do novo colonialismo imposto aos países
periféricos; da política de desemprego e aniquilamento das leis trabalhistas contidos no
caldeirão do neoliberalismo, surge com o objetivo de "ordenar" o ambiente,
promovendo seu "equilíbrio" em consonância com o mercado "global". Portanto, esta
proposta é funcional à hegemonia sócio-econômica que degradou o ambiente, tornou a
natureza um mero objeto da produção e do consumo, dilacerando, de forma cada vez
mais intensa, os valores morais da socialidade humana.
É urgente a unificação das lutas em torno da construção de propostas alternativas
anti-capitalistas. E preciso subverter esta (des) ordem mundial, pois os movimentos
ecológicos e ambientais por si só, não apresentam mudanças significativas para o meio
ambiente, uma vez não explicitam a necessidade das transformações na estrutura
complexa da sociedade. Sobre isto, Benjamim(1990:21) comenta:
o movimento ecológico não conseguirá impedir que se renovem,
nessa fase expansiva do capitalismo, os velhos traços que
determinaram a nossa exclusão: o aumento da dependência, o
controle da tecnologia de ponta e da capacidade de inovação, a
homogeneização artificial de padrões de produção e consumo, a
internacionalização da economia sobre o controle de empresas
oligopolistas e assim por diante. Dentro do novo, renova-se o
velho, que é a concentração de riqueza e poder, em detrimento
da maioria dos homens, mesmo num mundo um pouco mais
limpo.
A crise ambiental deixou de ser uma preocupação exclusiva da Ecologia e dos
movimentos
ambientalistas
para
ser
entendida
como
uma
problemática
econômica/política e social. É preciso inserir o movimento ambientalista numa agenda
sócio-política que busque uma nova sociabilidade humana, não limitando sua
intervenção num campo reformista de propostas que perpetuam o projeto burguês.
Diante da produção em larga escala da escassez, da desigualdade social e da
insustentabilidade ambiental, o florescer da inconformidade é eminente. Há sinais de
resistência no mundo inteiro, há um leve cheiro de rebeldia no ar.
Os protestos anti-globalização dão indícios de uma longa batalha a ser travada
contra o grande capital. É imperativo a articulação entre os movimentos: sindicatos,
partidos políticos de esquerda, trabalhadores(as) rurais, sem-terras, sem-tetos,
organismos de defesa dos direitos humanos, movimentos feministas, movimentos
ecológicos etc. O Fórum Social Mundial, as manifestações em Seattle, em Praga, em
São Paulo são prelúdios que anunciam que os movimentos sociais estão vivos, estão
tecendo novos sonhos, redesenhando utopias, outra sociabilidade é possível, é urgente.
Desta forma, qualquer proposta de desenvolvimento que venha conciliar meio ambiente
e mercado é inviável, inverossímil. A proposta para um ambiente sustentado não pode
ser pensada fora de alternativas emancipatórias.
BIBLIOGRAFIA
BENJAMIN, César. Nossos verdes amigos. In: Teoria e Debate. Nº 12, 1990.
BIHR, Alain. Da grande noite à alternativa (O movimento operário europeu em
crise). São Paulo: Boitempo, 1998.
CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.
Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento: Relatório
da Delegação Brasileira. Brasília: Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais,
1993.
DAVID, burnie. Fique por dentro da ecologia. São Paulo: Cosac & Naife edições,
200l.
FOLADORI, Guillermo. A questão ambiental em Marx. In: Crítica Marxista nº 04.
São Paulo: Xamã, 1997.
LEFF, Enrique. Saber ambiental: sustentabilidade, racional idade, complexidade,
poder. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: teses sobre Feuerbach. São
Paulo: Moraes, 1984.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000.
Crítica à teoria da justiça como
equidade de John Rawls
Maria Alexandra Monteiro Mustafá
1. Considerações preliminares sobre a teoria da justiça como equidade
A teoria da justiça como equidade, elaborada por John Rawls, surge num
contexto liberal, como proposta ético-política que põe em discussão a questão da
desigualdade social, sem considerar as bases de fundamentação do modo de produção
capitalista.
A concepção de sociedade, presente na teoria rawlsiana, é de que a sociedade é
uma cooperativa onde todos produzem e todos ganham neste processo de “cooperação".
No entanto, para Rawls, nesta sociedade existem desigualdades que podem ser
minimizadas graças ao "princípio da diferença" que regularia uma sociedade futura,
desde que as vantagens obtidas por um grupo social não impliquem em desvantagens
para o outro grupo social. Com isto, ambos os grupos – os menos avantajados e os mais
avantajados – sairiam ganhando e isto se constituiria num processo de "justiça como
equidade".
Esta pretensão se consolidaria a partir de uma proposta neo-contratualista que
resgata o pensamento de Kant, numa perspectiva a - histórica, numa tentativa de
oferecer alternativas ao utilitarismo clássico de Bentham e ao neo-utilitarismo,
amplamente disseminado nas sociedades capitalistas.
Rawls contrapõe a sua contundente crítica ao utilitarismo e a J autores
notoriamente liberais, tais como Nozick e Ackerman, numa tentativa de constituir-se
como alternativa ao liberalismo /1 disseminado por estes dois pensadores. No entanto, a
discordância entre tais pensadores e Rawls não se constitui uma questão de caráter
fundamental, visto que, como afirmado anteriormente, todos se posicionam no âmbito
do liberalismo, havendo entre eles uma divergência conceitual, mas não de

Professora do Departamento de Serviço Social da UFPE. Doutora em Filosofia pela Universidade
Salesiana de Roma. Coordenadora do Grupo d'e Estudos e Pesquisa sobre Ética (GEPE) – UFPE.
posicionamento político. Para uma melhor compreensão da teoria rawlsiana, faz-se
necessário um resgate das teorias contratualistas e de sua reatualização nos dias atuais,
especialmente no que concerne ao contratualismo kantiano. É isto que tentaremos fazer
a seguir.
2. O Neocontratualismo
O neo-contratualismo floresce neste século como tendência filosófico-política
que retoma os conceitos fundamentais da tradição das teorias do contrato desenvolvidas
entre o início dos '600 e o fim dos '700, tendo como principais representantes: Tomás
Hobbes, John Locke, Jean Jacques Rousseau e Emanuel Kant.
A idéia básica desta tendência é que o contrato está na origem da sociedade e é o
fundamento do poder político. O contrato marca a passagem do estado de natureza ao
“estado” social e político. Mesmo se todos os teóricos contratualistas convergem com
esta base comum, as suas perspectivas são diversas com relação à natureza do contrato,
à definição do estado de natureza e à proposta ideal de organização sócio-política que
deve emergir do contrato, dando origem a posturas diversas no interior do próprio
contratualismo.
Para os fins deste ensaio, interessa-nos mais de perto, a perspectiva
contratualista kantiana na qual o contrato originário, ou pacto social, segundo Nedel
(2000:30), "enseja a passagem do estado de natureza, onde qualquer posse é tão
provisória, para o estado civil em que posse e propriedade são peremptórias, com a
finalidade de possibilitar o exercício do direito natural, através da coação. A
constituição do estado civil é dever moral, porque o estado de natureza é de injustiça
permanente, de liberdade desenfreada, sem lei externa. Pelo contrato opera-se a
renúncia de toda posse particular e liberdade exterior, bem com a união de todas as
vontades particulares e privadas de um povo numa vontade comum e pública. Embora
seja idéia pura da razão, tem uma realidade objetiva,' a de obrigar cada legislador a
instituir leis como se derivassem da vontade comum de todo um povo, e de considerar
cada cidadão como se tivesse dado seu consentimento".
A retomada das idéias contratualistas conserva a linha teórica de fundo, mas
reformula e atualiza os conceitos, no sentido de propor um novo pacto que possa
refundar as estruturas da organização política, sublinhando o papel das leis e das
constituições. Tomando como referência a teoria dos jogos, o neo-contratualismo se
preocupa em estabelecer as regras que deverão orientar o comportamento dos
contratantes nas suas relações sociais e políticas que constituem a dinâmica do jogo. Por
isto, o neo-contratualismo é uma teoria de caráter precisamente fictício, distante de uma
análise realística da sociedade e cria uma situação hipotética na qual sujeitos hipotéticos
deverão executar escolhas também estas hipotéticas sobre os princípios que
fundamentam as regras a serem estabelecidas.
Em oposição direta ao utilitarismo, o neo-contratualismo se define como teoria
deontológica, que reconhece no contrato o procedimento típico, através do qual se
constituem os princípios que devem reger a vida comum.
John Rawls, enquanto um dos principais seguidores desta teoria filosóficopolítica, confere ao neo-contratualismo um caráter ético, através da introdução de
princípios de justiça que estão na base das escolhas das regras sociais. Com efeito, a
justiça se torna o objeto central da teorização de Rawls que a define em termos de
equidade. Graças à importância que tal teoria assume no debate filosófico-político atual,
e à originalidade que caracteriza a vinculação ao pensamento kantiano- especialmente
por aquilo que se refere às inovações de conceito como “posição originária” e “véu de
ignorância” como condições exigidas para assegurar a imparcialidade do sujeito moral a tomaremos em análise, renunciando assim a outras teorizações da mesma corrente de
pensamento.
3. A teoria da "justiça como equidade" de John Rawls
O debate político-filosófico intensificou-se nos ano (2Q) com a teorização feita
por John Rawls, através da sua obra mais famosa - Uma teoria da justiça. A postura do
autor é definitivamente contratualista e resgata o pensamento de Locke, de Rousseau e
especialmente de Kant, mesmo se podendo encontrar aí elementos de uma figura de
ética inspirada em Hobbes.
A influência hobbesiana pode ser identificada quando se entende que a teoria da
justiça se insere no âmbito das teorias éticas que privilegiam a discussão não da melhor
vida possível para o homem, mas a escolha das regras de colaboração para a
convivência social. Em outras palavras, o contratualismo de Hobbes é entendido "como
o pacto social celebrado pelos indivíduos entre si onde todos renunciam cabalmente
seus direitos naturais e os atribuem a um terceiro. Assim, supera-se o estado de
natureza e institui-se o estado social, com a escolha de quem há de representar as
pessoas, ou seja, soberano" (Nedel, 2000: 29). Segundo esta interpretação, Rawls teria
transformado a teoria do contrato de teoria política em teoria moral, na qual "O contrato
se torna apenas mais um artifício lógico, um método construcionista,para esclarecer,
explicitar, e aplicar as intenções comuns acerca da justiça” (Abbà, 1995: 115). Em
outras palavras,visão contratualista, pelo fato de ser essencialmente de natureza ética,
utiliza o artifício contratual para determinar e justificar as regras de justiça, escolhidas
por sujeitos racionais e livres.
Aqui se pode perceber uma outra dimensão da tradição hobbesiana, isto é, a
preocupação da definição das características dos sujeitos contratantes. Todavia, Rawls
recupera claramente de Kant o conteúdo desta definição, quando descreve os sujeitos
como racionais,livres e iguais, e considera estas condições como indispensáveis à
realização do acordo ou contrato na posição originária. A posição originária, portanto,
não é somente um conceito de base kantiana, mas reflete exigências, derivadas da
postura hobbesiana, de definir as condições ideais para que sujeitos entrem em acordo
sobre consideradas justas. A idéia mesma de posição originária pode ser entendida
como aquela do estado de natureza em Hobbes. Todavia, Rawls sobre este aspecto se
aproxima muito mais ao pensamento de Locke39 e de Rousseau40, já que não se
preocupa em analisar a situação do homem antes do contrato especificamente de
assegurar condições iguais para que o contrato aconteça e seja estabelecido em comum
acordo com todos.
Rawls define a sua teoria como essencialmente deontológica, segundo a qual a
ação moral é conforme as normas, de justiça, e se opõe a teorias teleológicas, realizando
em modo especial uma forte crítica ao utilitarismo que vem entendido por ele como a
39
“De acordo com John Locke, mediante o contrato social, os indivíduos saem do estado de natureza e
ingressam no estado civil, ou político. Cria-se, assim, uma autoridade superior, para a proteção dos
direitos naturais fundamentais dos indivíduos - direito à vida, à liberdade e à propriedade, não
renunciados. Os participantes só renunciam o direito de fazer justiça por si mesmos." (Nedel, 2000: 29).
40
“De acordo com Jean-Jacques Rousseau, o contrato social é ato coletivo de renúncia dos direitos
naturais e de sua transferência à comunidade ou ao corpo político, constituído por todos. Cada um
renuncia seus direitos e os transfere a si mesmo na qualidade de membro do todo social. Em outras
palavras, todos põem em comum sua pessoa e seus bens sob a direção da vontade geral. Troca-se a
liberdade natural pela civil, e o ilimitado direito a tudo pela propriedade do que se possui, Gera-se, assim,
um corpo moral coletivo, a cidade, a república ou o estado e se constitui o soberano”. (Nedel, 2000: 2930).
teoria cujo critério de Justiça, das escolhas e do agir, sendo maximização de um valor
ou de um fim,se constitui como critério não moral, mas reduzido ao útil ou ao bem-estar
social.
As motivações filosóficas e éticas extraídas do pensamento de Kant reconduzem
à idéia de que os princípios morais são objeto de escolha racional, de pessoas livres e
iguais e, por isto, não e encontram em uma situação de heteronomia, ou seja,
condicionadas por desejos ou movidas por interesses particulares. Só nesta condição de
autonomia, as pessoas estão em grau de definir as regras morais que devem guiar a sua
conduta na comunidade.
A adoção do conceito kantiano de autonomia induz Rawls a idealizar uma
situação hipotética por ele entendida como posição originária, caracterizada por um véu
de ignorância, isto é, pela completa desinformação sobre suas posições na sociedade e
sobre os fatores históricos ou sociais que possam condicionar os seus interesses. Em
outros termos, a posição originária constitui o ponto de vista do qual o eu noumênico41
vê o mundo e pode escolher em' modo imparcial e livre os princípios para a formação de
uma sociedade bem ordenada sobre princípios da justiça como equidade.
Rawls justifica sua interpretação sobre o pensamento de Kant nestes termos:
"Creio que Kant defende a idéia de que uma pessoa age autonomamente, quando os
princípios da sua ação são escolhidos por ele como a expressão mais adequada
possível da sua natureza de ser racional, livre e igual. Os princípios em base aos quais
age não são adotados em função da sua posição social ou dos seus dotes naturais, ou
em função do particular tipo de sociedade em que vive, ou daquilo que lhe ocorre
querer. Agir em base a estes princípios significaria agir em modo heterônomo. O véu
de ignorância priva a pessoa na posição originária do conhecimento que a mantém em
grau de escolher princípios heterônomos" (Rawls, 1983: 216).
A posição originária é uma situação hipotética que poderia representar, como já
dissemos, a substituição do “estado de natureza” nas teorias contratualistas modernas e
a pretensão de assegurar a imparcialidade, já que desvinculamos os sujeitos dos seus
41
Em Kant o noumeno é o objeto inteligível contraposto ao objeto da sensibilidade, “O objeto da
sensibilidade é o sensível; aquilo que não contém nada que não possa ser conhecido pela inteligência é
inteligível. O primeiro pelas escolas dos antigos era chamado fenômeno, o segundo noumeno" (Critica da
razão pura in Enciclopédia Garzanti di Filosofia, 1993).
condicionamentos históricos, isto é, pressupondo a ignorância sobre as suas posições na
sociedade, admite a possibilidade da escolha de princípios universais, não
correspondentes a interesses particulares.
Com este artifício, Rawls se distancia de uma visão realista e fundamenta sua
teoria sobre a base de uma concepção abstrata de homem desvinculado da vida concreta,
do concreto sócio-político-cultural e econômico das suas relações de classe e dos
vínculos comunitários e familiares. Pode-se dizer, antes de tudo, que esta concepção de
homem abstrato e a - histórico vai de encontro a suas pretensões de consideração da
pessoa moral como pessoa racional, já que na sua concepção, a capacidade de planejar a
própria vida vai acontecer sem o referimento à realidade.
Além disto, a própria concepção de sujeito moral está comprometida no sentido
de que se o véu de ignorância pressupõe a ausência de qualquer concepção de valor e
qualquer noção de bem, isso priva as pessoas da capacidade de realizar uma verdadeira
escolha; as pessoas não colocam em ato a sua faculdade de decidir à base de convicções
éticas e por isto não se percebem como sujeitos de conduta moral, capazes de serem
virtuosos e não somente de agir segundo as regras estabelecidas. Ao privilegiar a
imparcialidade como condição capaz de assegurar a igualdade e como forma de alcançar
princípios universais, Rawls despreza a realidade objetiva e subjetiva, descuida da
história e, sobretudo, do homem na sua globalidade, na sua identidade e na sua
consciência de ser historicamente situado.
A este propósito, convém ressaltar as reflexões de M. Toso que se pergunta:
"Como é possível, partindo do 'véu de ignorância' dos contraentes, desprovidos de
qualquer sistema de valores e de bens sociais objetivos para superar a heteronomia e o
utilitarismo, conseguir a adesão de uma figura de sociedade assim qualificada e
caracterizada como aquela liberal social? Só confundindo o plano da ética geral, dos
princípios fundamentais e gerais, com o plano da ética particular" (Toso, 1989: 72).
Estas considerações nos conduzem à discussão sobre os aspectos mais
controversos na teoria rawlsiana: aquele do primado do justo sobre o bem e aquele da
separação entre ética pública e ética privada.
Os autores, que dão sustentação à crítica do primado do justo sobre o bem,
apresentam pontos de vista diversos: alguns entendem que o neo-contratualismo
rawlsiano afirma o primado do justo sobre o útil e não sobre o bem; outros reconhecem
uma concepção implícita do bem no interior da justiça como equidade, a qual se revela
na idéia de uma justiça substantiva; e, finalmente, outros ainda admitem a recusa total
por parte de Rawls de defender uma teoria do primado do bem, dada a dificuldade de
alcançar um consenso sobre as concepções de bem nas sociedades modernas,
caracterizadas pelo pluralismo.
Antes de tudo, Rawls admite que o justo e o bem são os dois conceitos da ética.
Todavia ele considera que somente as teorias teleológicas têm o primado do bem sobre
o justo e, entre estas, o utilitarismo é aquela que coloca em relação às duas noções na
forma mais simples, na medida em que identifica o justo com a maximização do bem. A
crítica contra o utilitarismo incide sobre o fato de que este, ao definir o bem como
satisfação de um desejo racional, toma em consideração o conceito de bem como valor
pertencente ao senso comum e assim generaliza a concepção daquilo que poderia ser a
escolha racional de um só homem.
Além disto, ao afirmar que a justiça requereria a condivisão do maior bem
possível à maioria, o utilitarismo justifica a perda da liberdade de poucos para
compensar a maior vantagem de outros, o que é inconcebível na teoria de Rawls que dá
a prioridade ao direito à liberdade como primeiro princípio da justiça.
Ora, aqui se pode constatar que Rawls leva em consideração uma noção
redistributiva de bem, como sinônimo de útil, e desconsidera todas as outras teorias
teleológicas entre as quais a heudaimonia aristotélica, que defende a idéia do bem como
realização de um fim, como felicidade ou a vida boa. Todavia, como reconhece Antonio
Da Re, "sempre em 'uma teoria da justiça' a separação entre justo e bem vem
ulteriormente reproposta com uma intencionalidade que vai além da polêmica com o
utilitarismo e da simples identificação do bem com o útil" (Da Re, 1998:46).
Como dissemos anteriormente, Rawls define a sua teoria como teoria substantiva
da justiça e, neste sentido, se pode falar de uma concepção implícita do bem. Com
efeito, a idéia de justiça como equidade se fundamenta sobre dois princípios básicos que
se inspiram nos valores de liberdade (prioritariamente) e da igualdade. Os dois
princípios, segundo Rawls, são o fruto de um acordo entre pessoas morais, cujo
interesse comum "não é o de entrar a fazer parte de uma dada sociedade ou o adotar
uma determinada forma de governo, mas o aceitar certos princípios morais" (1981:
31). Estes são apresentados nos seguintes termos: "1- cada pessoa tem um igual direito
à mais extensa liberdade fundamental compativelmente com uma liberdade similar
para os outros; 2- as desigualdades sociais e econômicas devem ser combinadas em
modo de ser a) racionalmente previstas em vantagem de cada um, b) relacionadas a
cargos e posições abertas a todos "(1981: 66).
Entre estes princípios o primeiro tem prioridade sobre o segundo e se refere aos
direitos civis e políticos entendidos como as liberdades fundamentais que se traduzem
politicamente como direito ao voto - ativo e passivo - liberdade de palavra e de reunião,
de consciência e de pensamento, ·direito à propriedade pessoal, inadmissibilidade de
prisão e detenção arbitrárias. O segundo princípio tem como objeto a distribuição da
riqueza e da renda, a estrutura dos organismos caracterizados por diferenças de
autoridade e responsabilidade e pressupõe que as diferenças e desigualdades na
distribuição de renda não devem provocar dano a ninguém, porque em tal caso seriam
injustas; são, porém, admitidas se provocam vantagem não a poucos ou a muitos, mas a
todos, e em particular aos menos avantajados.
Do ponto de vista dos pensadores que se podem definir comunitaristas, isto
revela não uma concepção parcial, mas uma precisa concepção do bem, isto é uma
concepção liberal individualista. Em outras palavras, aquilo que vem apresentado como
um mero procedimento de tipo formal que torna possível a formulação dos princípios de
justiça, na realidade se baseia em uma concepção antropológica e política, na qual o
homem, enquanto ser racional, é livre de direcionar o próprio plano de vida como
melhor lhe convém, e a política constitui o nível que estabelece um status comum de
igual cidadania, através da democracia constitucional. Neste sentido, a principal tese de
Rawls consistiria em defender a idéia da sociedade liberal, através da configuração de
uma democracia constitucional. Assim não se trataria de uma teoria neutra ou ausente
de uma concepção do bem, mas de uma teoria consistentemente fundamentada em uma
antropologia e em uma filosofia política com tendência teórica bem definida e traduzida
nos termos do liberalismo individualista. Exatamente por isto, o argumento fundamental
da crítica dos comunitaristas consiste em desmascarar a ilusoriedade de uma pretendida
neutralidade do justo.
Aqueles que afirmam a inexistência de uma concepção sobre o bem se baseiam
na idéia defendida pelo próprio Rawls, de não levar em consideração as diversas
concepções de bem implícitas nas doutrinas religiosas, filosóficas ou políticas, que
constituem o mundo dos valores das pessoas na posição originária, isto é no momento
da escolha dos princípios de justiça. Estamos, portanto, diante de uma teoria
procedimental que, reconhecendo no pluralismo a dificuldade de alcançar um consenso
sobre a noção de bem, privilegia o valor da liberdade, sem, porém, dar-lhe a fundação
ética necessária, e nem mesmo uma justificativa da sua razão de ser. Trata-se de uma
liberdade entendida em sentido formal, ou como afirma M. Toso, "uma liberdade pela
liberdade, uma liberdade sem abertura e adesões a bens humanos concretos e sem
fundamento e não pode constituir, em última análise, uma base moral coerente para o
agir sócio-político construtivo de uma “sociedade justa” (Toso, 1989: 71).
Além disto vale considerar que nem estes princípios nem os critérios de
racionalidade que definem a posição originária constituem objeto de escolha por parte
dos contraentes. Este fato pode ser interpretado como uma recusa à adoção de uma
concepção de bem ou, por outro lado, como uma opção por uma teoria parcial do bem.
O fato é que, na sua obra Uma teoria da justiça, Rawls se atribui a tarefa de
elaborar uma teoria substantiva da justiça, mas se defronta com a dificuldade do
pluralismo em relação às concepções do bem, problema que tenta enfrentar no seu livro
posterior Liberalismo Político. Todavia, a sua tentativa de resolver a questão do
pluralismo se mostra insuficiente, favorecendo o surgimento de críticas que o acusam de
manter a dicotomia entre público e privado e a defesa de uma neutralidade do Estado
em relação a concepções de bem definidas como particulares.
A dicotomia entre público e privado se explicita na condição de véu de
ignorância que caracteriza os contraentes na posição originária, já que, como temos
visto, esta prescinde das concepções de valores dos indivíduos. Isto significa que as
concepções particulares de bem são excluídas no processo de escolha de princípios
universais que serão adotados pelo Estado como regra constitucional. As pessoas
privadas, enquanto seres racionais e portadores de uma própria concepção de bem, são
livres de agir conforme esta concepção, quando saem da situação de véu de ignorância,
mas têm a obrigação de respeitar os princípios universais anteriormente acordados.
Com isto, o Estado se abstém de adotar uma concepção de bem particular e
assim é salvaguardada a sua neutralidade. Em última análise, coloca em realce uma
concepção de justiça universal e pública, à qual todos devem obedecer, e uma
multiplicidade de concepções particulares de bem que regula a vida privada de cada um.
Trata-se, portanto, de uma postura ética que, na sua relação com a política, prescinde da
condição de sujeito moral, já que elimina a possibilidade de participação do homem
com os seus valores e as suas convicções morais, no momento da definição dos
princípios e deixa total liberdade para sua expressão nas relações privadas, como se
estes fossem separados da vida pública e política.
Segundo Rawls, o pluralismo se põe como problema devido à dificuldade de
encontrar um consenso sobre os princípios de justiça entre as diversas doutrinas
compreensivas. Por isto, em Liberalismo Político o autor apresenta como solução desta
dificuldade a possibilidade de um consenso por intersecção, que corresponde à aceitação
de princípios de justiça, fundados em razões não coincidentes, ao invés do consenso
strictu sensu, que pressuporia a unificação das razões que fundamentam os respectivos
princípios.
Segundo a interpretação de João Rosas, a postura rawlsiana considera o
pluralismo por razões pragmáticas, como uma problemática do contexto histórico atual
e não por razões filosóficas e isto não lhe permite chegar ao "eixo central da Filosofia
Moral contemporânea e às disputas já clássicas sobre a natureza dos conflitos de
valores e obrigações morais" (Rosas, 1997: 555), o que aconteceria se Rawls elaborasse
o estatuto teórico do pluralismo.
Com efeito, a desvalorização da filosofia é também registrada por Höffe, que
identifica em Rawls a tentativa de colocar sobre o mesmo plano a Weltanschauung
religiosa, filosófica e política. As doutrinas compreensivas articulam valores e virtudes
no interior de um sistema, mas ao subscrever todas como Weltanschauungen, Rawls
"modifica a competência (ou tarefa) de uma filosofia da democracia" no sentido que
"deve requerer aquela renúncia que está no centro de Liberalismo Político, isto é não
pode mais admitir que a filosofia vá em busca de Weltanschauengen verdadeira ( true
doctrine)". Isto significa negar à filosofia o papel de "juiz no sentido kantiano de
instância crítica" e a capacidade de refletir "sobre como uma sociedade, apesar da
presença de Weltanschauengen rivais, alcance princípios de justiça comuns e, A partir
disto, assegura a estes seja uma legitimidade, seja confins precisos". (Höffe, 1995: 47).
A ausência do fundamento filosófico na reflexão rawlsiana conduz à adoção do
consenso por intersecção sobre uma concepção política (e não mais moral) de justiça. O
consenso por intersecção se baseia na idéia de que as doutrinas compreensivas são
caracterizadas por uma racionalidade, entendida como capacidade de ordenar fins e
meios necessários à consecução dos fins, e de uma razoabilidade, que consiste na
disposição à cooperação e implica a capacidade do sentido de justiça e a aceitação do
desacordo.
Segundo Rosas é nesta base que Rawls encontra justificativas para considerar a
"justiça como equidade" objeto de um consenso por intersecção: "Na situação inicial de
escolha, as partes devem selecionar os princípios que especificam o conceito de justiça,
a partir de um menu fornecido pela história do pensamento político[...]. Tanto a
descrição da posição originária como os princípios de justiça que os representantes
escolherão devem ser avaliados por nossas convicções mais profundas. O objetivo
deste procedimento é, segundo Rawls, aquele de alcançar um equilíbrio reflexivo entre
a constituição hipotética e as nossas convicções" (Rosas, 1997: 560).
Todavia, segundo o mesmo autor, Rawls não resolve de modo satisfatório o
problema do pluralismo, no sentido de que uma sociedade bem ordenada, entendida
como sociedade democrática, deve conviver com o pluralismo e por isto admitir o
desacordo também sobre a concepção de justiça, o que é incompatível com a proposta
de justiça como equidade. Em outras palavras, o consenso por intersecção é impossível
em uma sociedade democrática que, por sua natureza é essencialmente pluralista. Além
disto, a introdução do problema do pluralismo nas sociedades democráticas requer que
se evidencie a questão do próprio conceito de sociedade bem ordenada e não apenas o
tema da justiça, isto é, exige a consideração dos fins e não só dos procedimentos ou dos
conceitos referentes aos meios necessários para alcançar estes fins. .
Para entender melhor o contexto da discussão sobre o pluralismo faz-se
necessário analisar o percurso feito entre o primeiro livro, Uma teoria da justiça e o
segundo livro, Liberalismo político. Como dissemos anteriormente, a passagem entre
uma obra e outra é caracterizada pela mudança de postura ética para uma postura
predominantemente política.
No primeiro livro, a dimensão ética' se define nas condições de escolha dos dois
princípios de justiça, e a dimensão política se refere à escolha das instituições conforme
aos respectivos princípios. Esta última se realiza com a saída dos indivíduos da posição
originária, com a eliminação do véu de ignorância e com o empenho para a construção
de formas institucionais que sejam em conformidade aos dois princípios de justiça. a
procedimento consiste em aplicar tais princípios às instituições sociais, políticas e
econômicas em maneira similar àquela adotada pelas democracias constitucionais.
Neste processo, podem ser identifica das três fases consecutivas: a fase constituinte, que
estabelece um status estável comum de igual cidadania e realiza a justiça política; a fase
legislativa, que define as políticas sociais e econômicas, em condição de igualdade de
oportunidade e de liberdade, dando a prioridade aos mesmos avantajados; e a fase
aplicativa, sob a responsabilidade de juízes e administradores que adequam as normas
aos casos particulares, o que implica o respeito da parte dos cidadãos.
O objetivo principal de Uma teoria da justiça é aquele de conciliar justiça e
liberdade, e assim responder aos problemas considerados fundamentais nas sociedades
liberais e democráticas modernas. O autor parte da idéia de que "a sociedade é uma
associação mais ou menos auto-suficiente de pessoas que, nas suas relações recíprocas,
reconhecem como vinculadas certas normas de comportamento e que, para a maior
parte, agem de acordo com isto" (Rawls, 1983: 22). Neste sentido, a sociedade é um
sistema de cooperação que tem como objetivo avantajar aqueles que dela participam.
Todavia, esta sociedade é também marcada por conflitos de interesse. Daí se deduz a
necessidade da existência de princípios de justiça que possam regular a distribuição da
riqueza, causa principal do conflito de interesses. Por isto, "uma sociedade é bem
ordenada quando não somente é voltada a promover o bem-estar dos próprios
membros, mas é também regulada em modo efetivo por uma sociedade em que 1) cada
um aceita e sabe que outros aceitam os mesmos princípios de justiça e 2) as instituições
fundamentais da sociedade satisfazem geralmente, e em modo genericamente
reconhecido, estes princípios" (Rawls, 1983: 22). Porém, segundo Rawls, as sociedades
existentes são raramente bem ordenadas, especialmente porque não existe um consenso
sobre o que é justo ou injusto.
Convém então perguntarmo-nos que coisa é justo ou injusto para Rawls. A tal
pergunta ele responde que o justo e o injusto não correspondem a situações de igualdade
ou desigualdade, porque estes são "fatos naturais"; as desvantagens econômicas, sociais,
culturais são manifestações da distribuição natural e por isto não são justos nem injustos
em si. A injustiça ou justiça se encontra no modo em que as instituições sociais tratam
estes fatos. As sociedades aristocráticas ou de castas, por exemplo, são injustas porque
as suas instituições reforçam o ordenamento injusto, mas como o ordenamento social
não é imutável, os homens podem condividir princípios eqüos que se traduzam em
benefício comum.
Tais reflexões nos induzem a pensar que a teoria de Rawls não é de forma
alguma teleológica. Com efeito, ele elabora um modelo de sociedade que pretende
resolver os problemas da injustiça nas sociedades modernas e o define "justiça como
equidade". Em tal perspectiva a "sociedade é interpretada como uma empresa
cooperativa para a vantagem recíproca. A estrutura fundamental é um sistema público
de regras que definem um esquema de atividades que induz os homens a agir juntos de
modo tal que possam produzir a maior quantidade de benefícios e que assegura a cada
um certas pretensões reconhecidas como uma quota de produtos" (Rawls, 1983: 99).
Partindo destas concepções e coerentemente com sua visão liberal, ele admite a
existência dos desavantajados como uma coisa inerente à organização social, onde o
papel da justiça consiste em "reparar" estas desigualdades, no sentido de aumentar os
benefícios a favor dos menos avantajados, para reduzir a diferença entre os membros da
sociedade.
Para alcançar este objetivo, Rawls se serve do princípio de separação e daquele
de diferença. Estes princípios são complementares e interdependentes. a primeiro se
refere às condições necessárias para que se estabeleça a igualdade de tratamento e de
oportunidade para todas as pessoas, o que significa prestar maior atenção àqueles que
são menos dotados ou em posição social menos favorável. Isto corresponde a investir
nos desavantajados, porque as desvantagens são imerecidas. Materialmente isto é
possível, por exemplo, se investe na educação dos menos inteligentes ao invés de
naquela dos mais dotados. Já que as desvantagens são imerecidas, a separação constitui
uma obrigação moral da sociedade. Neste ponto, Rawls se refere à idéia democrática da
Revolução francesa: liberdade, igualdade, e fraternidade. Ele afirma que esta última foi
subvalorizada pelas sociedades democráticas e que só um sistema de cooperação e de
reciprocidade pode assegurar o bem-estar de cada um.
O princípio da diferença "requer que as maiores expectativas dos mais
avantajados contribuam com as perspectivas daqueles que o são menos" (Rawls, 1983:
93). Aqui se trata, portanto, de colocar em ato os princípios da justiça distributiva, no
que se refere à distribuição da riqueza nas relações entre o todo e as partes, mas Rawls
se limita a especificar o dever do Estado em modo muito restrito, como garantia da
ordem pública, a segurança ou providências eficazes para a saúde e a incolumidade
pública, promovendo o interesse comum. Em síntese, compete às instituições assegurar
a todos, em modo igual, as condições necessárias para realizar os próprios objetivos. O
seu ponto de vista é de que existe uma igual cidadania, de modo a agregar as
expectativas de quem está pior e através das estruturas fundamentais da sociedade
regular a distribuição dos benefícios da cooperação social.
As modificações apresentadas no segundo livro reafirmam a idéia de uma
concepção política da justiça em termos de democracia constitucional, mas aprofundam
os princípios que podem justificar politicamente tal postura. Em primeiro lugar, ele
reafirma a autonomia desta concepção em relação a qualquer doutrina compreensiva, já
que esta assegura a adesão das diferentes doutrinas. Isto significa a reafirmação da
neutralidade do Estado, na medida em que este não adere a uma doutrina compreensiva
particular, mas adota como modelo uma concepção de justiça formulada em base a
conteúdos da cultura política comum e por isto capaz de ser aceita por todos os
cidadãos.
A natureza política do segundo livro é definida já no início, quando Rawls
apresenta as motivações básicas da sua reflexão, partindo do pressuposto da ausência de
um consenso sobre estruturas políticas nas sociedades democráticas: "A história do
pensamento democrático dos últimos dois séculos mostra claramente que não existe,
hoje, um acordo sobre o modo como se deveriam organizar as instituições de base de
uma democracia constitucional, se quer que satisfaçam equos termos de cooperação
entre os cidadãos considerados livres e iguais" (Rawls, 1993: 24).
Por isto - continua Rawls - "o liberalismo político está à busca de uma
concepção política da justiça que possa conquistar, em uma sociedade de que é regra,
o consenso por intersecção de doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis"
(Rawls, 1993: 28). Neste sentido, a concepção política da justiça se apresenta como
teoria autônoma, o que significa, para uma parte constitutiva essencial que se adapta a
várias doutrinas compreensivas razoáveis, as quais têm uma existência duradoura na
sociedade por essa regulada, e encontra nestas uma base de sustentação; e isto
significa que pode ser apresentada sem dizer ou saber ou hipotetizar a quais destas
doutrinas pertença, ou em qual encontre uma base de sustentação" (Rawls, 1993: 30).
Com isto permanece clara a tese do Estado neutro, porque não adere a uma
particular concepção de justiça e porque não interfere nas concepções particulares do
bem de cada cidadão, já que estes são livres de manifestá-las nas suas relações privadas.
A justiça, portanto, não é virtude dos indivíduos isolados, mas objeto de aplicação de
domínio público, isto é do Estado, o que confirma uma concepção de justiça
essencialmente política. Deste ponto de vista, o conceito de política se opõe
expressamente àquele da tradição filosófica clássica, que pressupõe a participação do
cidadão livre e constitui a atividade por excelência na vida da cidade. Em Rawls, a
participação se reduz à escolha dos princípios de justiça e, à obediência das regras
extraídas destes princípios. Tal participação pode ser considerada ainda mais reduzida,
se admitimos que a escolha tem as características de uma ficção, no sentido de que os
sujeitos entram em acordo sobre regras de justiça, cujos princípios estão já previamente
estabelecidos. Como afirma o próprio Rawls sobre a determinação dos princípios de
justiça; estes funcionam como imperativos categóricos, no sentido kantiano, porque
orientam o agir e são independentes dos objetivos particulares de cada um.
Os requisitos para uma concepção política da justiça consistem essencialmente
no fato de que o objeto da justiça como equidade é a estrutura básica da sociedade,
entendida como "o complexo das principais instituições políticas que combinam em um
sistema unificado de cooperação social que sé estende de uma geração à outra"
(Rawls, 1993:29). Estas estruturas básicas são responsáveis pela determinação das
oportunidades de vida dos indivíduos na medida em que regulam a distribuição dos bens
sociais primários, tais como a liberdade, as oportunidades, a renda e a riqueza. O papel
dos cidadãos é aquele de respeitar as regras acordadas e de avaliar a validade e
suficiência da concepção publicamente aceita: "Esta concepção fornecerá um ponto de
vista publicamente reconhecido pelo qual todos os cidadãos poderão examinar, um de
frente ao outro, se as suas instituições políticas e sociais são justas, o que Ihes colocará
em grau de fazê-Io invocando aquelas que entre elas são publicamente reconhecidas
como razões válidas e suficientes que esta mesma concepção tenha identificado"
(Rawls, 1993: 29).
4. Dificuldades ético-políticas da "Teoria da Justiça como Equidade"
No seu conjunto, a proposta moral e política de Rawls constitui uma resposta à
problemática por ele considerada fundamental nas sociedades democráticas, isto é, a
ausência de um consenso sobre o modo em que se deveriam organizar as instituições de
base de uma democracia constitucional de forma justa e equa.
Esta postura não leva em consideração a experiência histórica do Estado social
enquanto tentativa das respectivas sociedades ao realizar em modelo consensual de
conciliação entre liberdade e justiça. Com efeito, nas suas obras, Rawls quase nunca se
refere nem ao Estado social, nem ao socialismo enquanto tal e por isto se pode dizer que
as suas propostas se referem estritamente a um modelo de sociedade liberal. Esta recusa
em considerar o Estado social e o socialismo, ao nosso entender, indica a negação destes
modelos de Estado como proposta ideal da organização social: não se trata apenas de
uma recusa do ponto de vista histórico, isto é, da análise da experiência concreta do
Estado social e do socialismo real, em função de uma postura abstrata e idealista, mas
revela uma escolha política que se apresenta como alternativa ao modelo de Estado
social.
Antes de tudo, podemos dizer que a própria lógica do neocontratualismo,
enquanto postura teórico-filósofica, é aquela de propor um novo acordo social, um novo
contrato, em base à constatação de que a forma de organização social precedente é
insuficiente e indesejável. No caso específico da teoria rawlsiana, o modelo precedente
é aquele do Estado social, mas ele não se coloca o objetivo de reformá-Io ou de
reprojetá-lo. Com efeito, tomando como base os princípios da justiça, da democracia e
também, marginalmente, da solidariedade, o autor poderia evidenciar que estes são os
princípios já idealizados pelo Estado social. Ao invés disto, ele opta por uma
consideração abstrata e a - histórica, como se o debate sobre estas temáticas encontrasse
eco somente ao nível das teorias políticas. Mas torna presente as dificuldades do
pluralismo e aquelas de encontrar um consenso sobre as doutrinas compreensivas e,
assim mesmo, se põe como objeto de suas considerações o ponto central do debate
atual, caracterizado pela relação entre ética e política, não o contextualiza no âmbito do
Estado social.
Todavia, não se pode negar que sua reflexão teórica não discuta as problemáticas
centrais do Estado social, isto é, a justiça e a democracia. O problema que emerge então
é a natureza desta reflexão que, antes de tudo, parece ser centrada na necessidade de
reformulação dos procedimentos necessários a uma sociedade constitucionalmente
democrática, ou mesmo em uma postura ética procedimental na qual a relação com a
política vem colocada de maneira formal e não substancial.
Tomando as devidas distâncias de um referimento histórico realístico por quanto
se refere aos princípios do Estado social, o mesmo se verifica por quanto se refere ao
conteúdo do consenso, isto é, o modo como se deveriam organizar as instituições de
base da sociedade democrática. É evidente a ausência de referimento às organizações
sociais, econômicas e políticas que colocam em ato os princípios básicos do Estado
social através das estruturas administrativas e as medidas de distribuição da renda ou de
promoção da democracia.
Se tomamos em análise a postura rawlsiana sobre aquilo que consideramos os
princípios básicos do Estado social veremos que, naquilo que se refere à visão de
democracia - ponto central de sua reflexão - a chave das divergências se encontra
exatamente na conceituação. A visão defendida por Rawls se distancia daquela
idealizada pelo Estado social, entendida como valor que realiza os direitos civis,
políticos e sociais e que constitui o eixo propriamente dito das relações sociais e das
relações que se estabelecem entre cidadão e Estado. Enquanto valor, a democracia se
apresenta como modo de vida que caracteriza a convivência social e não pode ser
desvinculada do referimento aos fins, ao telos e ao ethos da comunidade. Por isto os
princípios que a fundamentam não podem ser vistos apenas como pontos de
referimentos formais, como faz Rawls, mas como conteúdo essencial do mundo vital.
Rawls tem a pretensão de assegurar a conduta moral dos indivíduos, através da
definição prévia de princípios, também estes morais, mas a dificuldade reside na não
consideração dos fundamentos, dos valores que inspiram estes princípios, na exclusão
do mundo vital e com isto na impossibilidade do homem-cidadão colocar-se como
sujeito moral.
Não existem novidades na definição dos direitos civis e políticos que
correspondem àqueles já estabelecidos nas sociedades liberal democráticas. Estes são
entendidos em termos de igual cidadania e buscam assegurar a liberdade como valor
prioritário. A liberdade é discutida no âmbito da controvérsia da liberdade positiva ou
negativa, mas especialmente em relação às restrições legais e constitucionais. Para
Rawls, a liberdade é "uma certa estrutura das instituições, um certo sistema de normas
públicas que definem direitos e deveres [. ..] É constituída por três elementos: os
agentes como seres livres, as restrições ou limitações de que são livres, e aquilo que
são livres de fazer ou não fazer" ( Rawls, 1983: 176-177).
Esta é uma compreensão da liberdade como algo formal e não enquanto valor. O
próprio Rawls estabelece a diferença quando afirma que "a liberdade e o valor da
liberdade são distintos no seguinte modo: a liberdade é representada pelo sistema
global das liberdades de igual cidadania, enquanto o valor da liberdade para as
pessoas e os grupos é proporcional à sua capacidade de promover os próprios fins no
interior da estrutura definida pelo sistema. A liberdade enquanto igual liberdade é a
mesma para todos; [...]. Mas o valor da liberdade não é o mesmo para todos. Alguns
têm maior autoridade e riqueza e, portanto, maiores meios para alcançar seus
objetivos" (Rawls, 1983: 178). Aqui se evidencia a tendência já assinalada na teoria
rawlsiana de estabelecer uma dicotomia entre público e privado. A liberdade, enquanto
valor, recai no âmbito do privado e é delimitada pelas possibilidades oferecidas pela
liberdade definida em âmbito público.
Neste sentido, o valor da liberdade é intimamente vinculado à racional idade, à
capacidade de desenvolver um plano de vida próprio, que incluem as concepções do
bem, mas ao mesmo tempo essa é determinada pelas condições objetivas que permitem
ou não a realização deste plano de vida, e aqui entram em jogo as regras de convivência,
o princípio de diferença e os procedimentos estruturais concernentes à justiça social.
Visto nestes termos, o valor da liberdade não fundamenta o direito à Iiberdade, assim
como os valores do homem livre não fundamentam a legislação do homem cidadão. A
dicotomia entre o público e privado se estende à condição do homem como indivíduo e
como cidadão. Não existindo continuidade entre um e outro, não se pode esperar na
realização de planos de vida, que pressupõem um homem como ser unitário.
Por isto, o conceito de liberdade rawlsiano não só não realiza a democracia, mas
também não se aplica à solução dos problemas das sociedades liberal-democratas,
porque não responde à necessidade de identidade que caracteriza as sociedades atuais;
não cria nem mesmo instrumentos de participação que favoreçam a inserção do cidadão
no âmbito da política em modo a transformar a política em uma atividade por excelência
da vida social.
Além disto, a liberdade ao construir o ponto de partida da sociedade idealizada
por Rawls, identificada na escolha dos princípios de justiça, apresenta dois problemas
fundamentais. O primeiro se refere à condição de autonomia, expressa no "véu de
ignorância" e requerida pela posição original, que coloca entre parênteses a condição de
seres conscientemente dotados de vontade. O segundo problema diz respeito à base
mesma dos princípios de justiça e aos sujeitos sociais que concorrem à sua definição.
Segundo as propostas do consenso por intersecção, estes princípios emergem de uma
síntese das teorias do pensamento político e sugerem a idéia de conter os pontos comuns
de uma cultura política, também esta entendida como comum. Mas a quem se pode
atribuir a tarefa da síntese? Parece que aqui se encontra o ponto fundamental de
divergência entre Rawls e Habermas, no sentido de que este último propõe um consenso
sob a base de um diálogo, no qual todos os participantes tenham igual direito à
argumentação. Rawls, ao contrário, evidencia a importância das estruturas que possam
assegurar os direitos de cidadania.
Por quanto se refere à justiça social, Rawls a considera em termos de "equidade"
e fundamenta a sua reflexão baseando-se nos princípios de separação e de diferença, os
quais orientam a determinação da divisão, das vantagens e subscrevem um acordo sobre
a correta distribuição das quotas, isto é, dos benefícios e das perdas da cooperação
social. Admitindo, porém que as desigualdades são fatos naturais e não merecidos, é
tarefa da sociedade realizar a justiça social: "É a estas desigualdades, que
provavelmente pertencem de modo inevitável à estrutura fundamental de toda
sociedade, que devem ser, antes de tudo, aplicados os princípios da justiça social. Estes
princípios regulam depois a escolha de uma constituição política e dos principais
elementos do sistema econômico e social. A justiça de um esquema social depende
essencialmente do modo em que são repartidos os direitos e deveres fundamentais, das
oportunidades econômicas e das condições sociais nos vários setores da sociedade"
(Rawls, 1983: 24).
Antes de tudo, a justiça vem considerada como "o primeiro requisito das
instituições sociais, assim como a verdade o é dos sistemas de pensamento" ( Rawls,
1983: 21), e o critério daquilo que é justo vem definido no tratamento das
desigualdades. Estas considerações definem o caráter essencialmente procedimental do
tipo de justiça de que fala Rawls. A postura adotada se distancia de uma interpretação
das desigualdades como fenômeno social e histórico, enraizado na questão social, que é
a tese central do Estado social. Assim, a justiça social não se põe como resposta aos
problemas da questão social, e toda a sua teorização se distancia de qualquer
referimento às determinações sócio-político-econômicas das desigualdades. O que
importa para Rawls é a igual cidadania e por isto a discussão se concentra nas formas
legislativas e constitucionais que garantem os direitos.
Quando fala de justiça como eqüidade, Rawls se refere exatamente a esta igual
cidadania e por isto não se refere necessariamente à teoria aristotélica da justiça,
segundo a qual eqüidade significa correção de leis não conformes à justiça: "A natureza
mesma da Eqüidade é a retificação da lei onde esta se revela insuficiente pelo seu
caráter universal" (Aristóteles, Ética a Nicomaco V, 14, 1137 b 26). Apesar disto, não
se pode negar que, mesmo se não o admite, Rawls propõe uma justiça como eqüidade
que, em última análise, é uma proposta de reparação, de correção das leis consideradas
injustas, e por isto se aproxima à concepção aristotélica.
Em conformidade ao que acabamos de afirmar, podemos dizer que ele utiliza
também os conceitos de justiça distributiva e de justiça comutativa e, por quanto se
refere à justiça social, podemos dizer que utiliza um conceito frágil. Isto se explica pelo
fato de que a sua teoria considera os objetos específicos da justiça distributiva, isto é a
distribuição dos bens comuns e as condições em que esta se verifica, ou melhor, as
relações entre o todo e as partes, e considera ainda as relações de ganho e perda entre os
privados. Considera também que os bens comuns são fruto da colaboração social, mas
não se preocupa com as relações entre as classes ou sujeitos coletivos, objeto da questão
social, e nem mesmo coloca em discussão as causas estruturais que determinam as
desigualdades, o que conduziria a uma revisão não apenas das estruturas legislativas,
mas também das estruturas econômicas e da natureza das relações sociais.
Partindo deste raciocínio, se a existência dos mais avantajados e dos menos
avantajados é um fato natural, não é necessário modificar as instituições de modo a
promover a eliminação ou evitar as desigualdades; faz-se necessário reduzir estas
últimas e favorecer a distribuição em base ao critério da reciprocidade, em
conformidade à teoria econômica (teoria dos jogos), que estabelece a regra do maximin.
Segundo esta regra "é preciso observar o sistema do ponto de vista do indivíduo
representativo mais desavantajado"; com isto "as desigualdades são permitidas quando
maximizam ou, ao menos, contribuem geralmente a melhorar, as expectativas de longo
período do grupo menos afortunado da sociedade". Em outras palavras, "a regra do
maximin indica que se deve classificar as alternativas segundo o seu pior resultado
possível: devemos adotar a alternativa cujo pior resultado é superior ao pior resultado
das outras" (Rawls, 1983:136-138).
Esta regra pressupõe que a satisfação das maiores expectativas dos mais
avantajados não resulta necessariamente na perda por parte dos menos avantajados, mas
na medida em que o sistema é visto na sua globalidade "cada aumento deste tipo vai em
vantagem destes últimos" já que "as maiores expectativas dos privilegiados cobrirão
provavelmente os custos da formação profissional, e encorajarão melhores prestações,
contribuindo deste modo para o bem-estar geral"( Rawls, 1983: 142).
Neste aspecto, Rawls não apresenta nada de novo em relação às medidas
redistributivas adotadas pelo Estado social através da atuação da medida fiscal como
elemento de socialização da riqueza, com a intervenção do Estado através das políticas
sociais voltadas à realização do bem-estar coletivo.
Um outro aspecto a considerar é que ele exclui o Estado do papel de mediador
nas relações entre os mais avantajados e os menos avantajados, visto que não vê uma
ligação causal entre ganho e perda na produção da riqueza social. Por isto, a intervenção
do Estado é indireta, se dá na distribuição da renda final e não se ocupa de regular as
relações que estabelecem ganho e perda, como as relações de trabalho. Com isto, Rawls
limita a aplicação dos direitos sociais e a noção mesma de justiça social, que requer uma
justa distribuição nas relações de trabalho, o que reformularia a condição mesma de
"desavantajados".
Neste sentido, podemos dizer também que ele se aproxima à lógica utilitarista
(tão combatida por ele) pela maximização do bem-estar, quando justifica a distribuição
em base a um cálculo generalizável e não em base a critérios qualitativos, como aquele
dos direitos sociais e da dignidade da pessoa humana. Com efeito, esta proposição é
apenas teórica e matematicamente favorável aos "desavantajados" porque permite a
continuidade das relações que produzem as desvantagens e se apresenta como ilusão de
privilegiá-los no ato da distribuição. Em última análise, a teoria da justiça como
eqüidade se revela como insuficiente para realizar a justiça social e, em muitos aspectos,
se apresenta ainda mais retrógrada em relação às propostas apresentadas a este respeito
pelo Estado social.
No tocante ao valor da solidariedade, estamos de acordo com a interpretação dos
comunitaristas, que consideram a hipoteca individualista da teoria rawlsiana
fundamentada em concepção abstrata e a - histórica do sujeito humano. O argumento
defendido pelos comunitaristas se refere às assim chamadas "circunstâncias de justiça"
que, segundo eles "evidenciam o caráter contingente, frágil das relações sociais,
expostas constantemente ao risco do conflito e da violência" e faz com que Rawls
elabore "uma teoria defensiva, na qual a justiça entra em campo para opor-se à
possível dissolução provocada pela explosão de contrastes" descuidando assim
"aquelas condições (família, comunidade, grupos de várias naturezas) [, ..] nas quais
as relações humanas são vivifica das pela solidariedade e pelo espírito de doação"( Da
Re, 1998: 49).
As circunstâncias de justiça são definidas por Rawls como "as condições
normais através das quais a cooperação dos homens é possível e necessária" (Rawls,
1983: 117). A cooperação social é vista, portanto, como a característica essencial da
vida em sociedade, mas esta última é marcada também por uma contradição
fundamental: a coexistência de identidade e conflitos de interesses. Se a identidade
torna possível uma vida melhor para todos, o conflito de interesses, originado pela
tomada de consciência da diferente repartição dos benefícios sociais, faz com que os
homens prefiram sempre uma quota maior para si mesmos. As circunstâncias de justiça
são exatamente as condições objetivas (especialmente a escassez moderada de recursos)
e subjetivas (o recíproco desinteresse pela ocupação dos outros) que exigem a aplicação
da justiça para tornar possível a cooperação social. Em outras palavras, "as
circunstâncias de justiça se dão no caso em que pessoas reciprocamente
desinteressadas apresentam pretensões conflitantes sobre a divisão dos benefícios
sociais, em condições de escassez moderada. Se estas circunstâncias não existissem,
faltariam as condições para a virtude da justiça, exatamente como, em ausência de
ameaças e danos à integridade de uma pessoa, não existiria' nenhuma ocasião para a
coragem física" (Rawls, 1983: 119). Além disto, continua Rawls, "a justiça é, portanto,
a virtude de práticas sociais nas quais existem interesses em conflito, ou nas quais as
pessoas se sentem autorizadas a impor os próprios direitos sobre os outros. Se fosse
possível uma comunidade de santos que condividem um ideal comum, esta seria isenta
de discussões sobre a justiça" (Rawls, 1983: 120).
Isto não significa necessariamente que o homem seja egoísta, mas um ser
orientado por um plano de vida próprio que o conduz a objetivos diversos uns dos
outros. Estes planos de vida estão fundamentados em concepções de bem, também estas
diversas, que refletem a multiplicidade de crenças religiosas e filosóficas, e de doutrinas
políticas e sociais existentes. Admitindo que tais concepções do bem não são levadas
em consideração na posição original, a teoria da justiça como eqüidade convida o
homem ao individualismo na medida em que cada um deve imaginar a si mesmo em
qualquer posição social se encontre. Ninguém é convidado a pensar nos outros, mas a
prever as situações ideais para a própria condição na sociedade futura. Neste sentido,
não entra em jogo virtude da solidariedade, mas se trata essencialmente de reforçar a
existência de condições que favoreçam os planos individuais de cada um. Os
procedimentos que constituirão as regras de justiça e de reciprocidade são igualmente
vazias de conteúdo de solidariedade, porque não se preocupam em desenvolver relações
solidárias, mas apenas relações formais de cooperação social.
Isto não significa que, sob este aspecto, a leitura de sociedade conflitante feita
por Rawls não seja realista. O que queremos evidenciar é que o ponto de vista moral
requer que o homem seja virtuoso, isto é, que atue segundo princípios não por
imposições ou adequação, mas por convicção e decisão pessoal. O modelo de sociedade
rawlsiano, ao invés, estimula uma convivência formal, na qual ao indivíduo não vem
requerido um comportamento solidário no confronto dos outros. Em outros termos,
Rawls elabora uma teoria da justiça partindo de aspectos negativos existentes na
convivência social (como o desinteresse pelas ocupações dos outros) e não se preocupa
em identificar as dimensões positivas (inerentes às concepções de bem), que poderiam
ressaltar as disposições morais particulares em estrita conexão com a idéia pública
expressa em uma sociedade solidária e justa.
Em última análise, podemos afirmar com Alasdair MacIntyre que não existe
muita diferença entre as teorias de Rawls e aquelas de Robert Nozick, já que "aquilo
que aproxima ambas as teorias é de um lado o desconhecimento da justiça como
virtude pública indispensável para dar consistência e identidade à estrutura da
comunidade política, e por outro lado, uma compreensão redutiva do viver social, toda
concentrada na exasperação da fragmentação e da anomia social" (Da Re A., 1998:
49-50).
Com efeito, mesmo reconhecendo que os critérios usados por Rawls e Nozick
para definir a justiça são diversos, MacIntyre consegue individuar nos seus
pensamentos, a ausência da idéia de mérito como fundamento da vida comunitária, o
que deriva da sua concepção contratualista em que a inserção do indivíduo na sociedade
se dá como ato voluntário baseado em interesses formulados anteriormente "seja para
Nozick seja para Rawls uma sociedade é composta de indivíduos, cada um com os
próprios interesses pessoais que, sucessivamente, devem se reunir e formular regras de
vida comuns. [...] Em ambas as interpretações os indivíduos são primários e a
sociedade secundária, e a determinação dos interesses individuais é precedente e
independente em relação à construção de qualquer vínculo moral ou social entre
estes". Mas, continua Maclntyre, "a idéia de mérito pode sobreviver somente no
contexto de uma comunidade cujo vínculo primário é uma concepção condividida por
todos do bem para o homem e do bem daquela comunidade, em que os indivíduos
determinem os seus interesses primários em referimento a tais bens" (Maclntyre, 1988:
298).
A teoria da justiça como eqüidade não responde aos problemas emergentes no
interior das estruturas solidaristas do Estado social; nem ao menos se apresenta como
solução possível de ser proposta para resolver a dicotomia entre ética pública e ética
privada, por quanto se refere às relações de solidariedade. Com efeito, as leis não têm o
sentido aristotélico de promover condições para formar cidadãos mais justos e
solidários, mas somente o objetivo de tornar a sociedade menos conflituosa para que a
cooperação se realize em concomitância com a realização dos planos de vida
individuais.
Segundo a interpretação de A. Da Re, em concordância com o pensamento dos
comunitaristas, aquilo que parece a solução para Rawls, pode ser exatamente o ponto
frágil da sua teoria, isto é, o não considerar a dimensão dos valores que dão fundamento
e conteúdo sólido a qualquer proposta política. Nem deriva "uma subestimação do valor
das redes das ligações familiares, comunitárias tradicionais, na qual se desenvolve a
normalidade de vida do sujeito: para os comunitaristas o risco da dissolução, ou ao
menos o risco da anomia, é presente exatamente nesta postura abstratamente
universalista, fundamentada em uma interpretação puramente procedimental e formal
da justiça. Uma comunidade política é tão mais- sólida quanto mais pode confiar em
um conjunto de valores condivididos, de tradições, de cultura, nos quais os cidadãos se
identificam" (Da Re A., 1998: 50-51).
Feitas estas considerações podemos afirmar que a postura rawlsiana se mostra
insuficiente como resolução da crise das sociedades democráticas liberais, por causa do
seu caráter deontológico que, ao privilegiar os procedimentos, se descuida dos
fundamentos que podem inspirar uma sociedade emancipada e se apega a uma análise
superficial que pode trazer modificações institucionais, mas não reformula, nem destrói
as estruturas fundamentais da sociedade, nem realiza os valores básicos da
solidariedade, justiça social e democracia. Em última instância, a sua proposta reafirma
o modelo de sociedade liberal e não acrescenta modificações substanciais à noção de
justiça, nem mesmo àquela de direito, defendendo a idéia de dicotomia entre ética
pública e privada, distanciando-se assim de uma postura centrada no homem como
sujeito moral, solidário e sujeito da história.
BIBLIOGRAFIA
ABBÀ, G. Quale importazione per Ia filosofia morale?, Roma: LAS, 1996.
ARISTOTELE, Etica Nicomachea, Milano: Rusconi Libri, 1993.
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, Brasília: DF, ed. UNB, 1992.
DA RE A., Il bene e il giusto : una panoramica delle attuali proposte eticopolitiche, in GAHL R.A. Jr., Etica e politica nella società deI Ouemilla, Roma:
Armando, 1998, pp. 45-64.
HOFFE O., Ragione publica o ragione política? A proposito di Rawls II, in
FRATTE G. D., Concezioni deI bene e teoria delia giustizia. II dibattito tra liberali e
comunitari in prospettiva pedagógica, Roma: Armando, 1995, pp. 43-53.
MUSTAFÁ, M. A .. N., La centralità def l ' etica nella riprogettazione dello stato
sociale, tesi di dotoramento Università Salesiana, Roma, 1999.
NEDEL, J. A teoria ético-política, de Jonh Rawls: Umatentativa de integração de
liberdade e igualdade, Porto Alegre: Edipucres, 2000.
RAWLS J., Una teoria della giustizia, Milano: Fettinelli, 1983.
________, Liberalismo político, Milano: Comunità, 1993.
ROSAS J., Justiça e pluralismo: o novo desafio de J. Rawls, in "Revista Portuguêsa
de Filosofia" 53, 1997 pp. 551-565.
TOSO, M., Realtà e utopia della política, Roma: Dehoniane, 1989.
Notas reflexivas sobre a concepção de
política em Hannah Arendt
Mary/ucia Mesquita42
Sâmya Rodrigues uemos43
Silvana Mara Morais Sentos44
Introdução
Hannah Arendt, filósofa e pensadora política, é identificada, comumente, com o
pensamento neo-aristotélico, apesar de sempre ter procurado fugir de qualquer
classificação no âmbito da teoria política. Preocupada com as questões de seu tempo,
relembrou os ensinamentos da polis grega ao se interrogar pelo sentido da política na
contemporaneidade. Ao formular tal questão, seu pensamento evidencia as marcas
aristotélicas, afinal, assim como em Aristóteles, para Arendt, a política é a ciência
arquitetônica da sociedade. Não temos, neste artigo, pretensão de desenvolver uma
análise exaustiva sobre o pensamento de Hannah Arendt, mas tão somente sinalizar
notas críticas 50bresua concepção de política, direcionando a argumentação para a
seguinte Questão: ao admitir que a política, entendida enquanto ação cujo sentido é a
liberdade, está na centralidade da vida' social, fica cancelada, no seu pensamento, a
possibilidade objetiva quanto à superação da ordem burguesa.
O pioneirismo de Aristóteles no entendimento da política
A liberdade para os antigos era um conceito essencialmente político, pois só na
polis alguém poderia ser livre e a liberdade era a definição mesma da cidadania, quese
realizava na esfera pública.
42
Assistente Social do Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social – CENDHEC, Mestre em
Serviço Social – UFPE e membro do GEPE.
43
Professora da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, doutoranda em Serviço Social–
UFPE e membro do GEPE.
44
Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, doutoranda em Serviço Social –
UFPE e membro do GEPE.
Há, portanto, um finalismo do Bem que unifica virtudes éticas e políticas,
enquanto atualização de uma potencialidade da natureza humana, cuja razão comanda e
orienta as paixões e as vontades.
A atividade política, enquanto experiência que se refletia na vida pessoal,
convergia com o coletivo social da multiplicidade da polis, fazendo da política grega
uma ética. Sendo éti:a, a atividade política tinha uma função pedagógica, de
transformação dos homens em cidadãos: a paidéia. Por sua vez, a atividade do
soberano, do chefe - a soberania - tornou-se atividade de uma função definida pelos
cidadãos, os "políticos".
Aristóteles foi o primeiro pensador a sistematizar uma obra sobre ética,
intitulada - "Ética a Nicômaco" - na qual explicita os fundamentos de sua concepção
ética. Neste percurso filosófico, para subsidiar as reflexões acerca da relação entre ética
e política, elabora - "A Política" - na qual tece, dentre outras questões, a noção de polis
e de cidadão.
Um aspecto fundante para o entendimento da dimensão ética no pensamento
aristotélico é que esta se baseia em uma concepção de ciência prática. Em tal
perspectiva, "o interesse teórico da ética não se elimina, pois do contrário ela não seria
ciência, mas é relativizado em benefício de um interesse prático, no sentido nãoinstrumental, mas ético da palavra" (Oliveira, 1993: 59).
O interesse prático da ética aristotélica está presente na sua pesquisa, cujo
objetivo era não só conhecer o mundo da polis (compreendida por ele como uma
"pluralidade de cidadãos"), mas contribuir para possibilitar a ação política, dos cidadãos
livres. Neste sentido, Aristóteles nas suas obras - "Ética a Nicômaco" - e - "A Política" reafirma que o fim da ciência prática "não é o conhecimento, mas a ação" (Mustafá,
1999).
Para Mustafá (1999: O 1L "esta concepção de ética leva Aristóteles a enfrentar
a questão da relação entre ética e política. De fato, se a ética se ocupa do agir humano
e se coloca como problema fundamental à identificação de que coisa seja o bem para o
homem, e se a política se interessa do homem enquanto ser capaz de agir, consciente e
livremente, em vista de um fim, não é concebível tomar em consideração a ética
isoladamente da política e vice-verse".
A visão aristotélica sobre a relação entre ética e política é influenciada, no
trajeto histórico, pela vida política na polis grega. A democracia ateniense, exemplo
típico de democracia direta, embora restrita aos ditos "cidadãos livres" (o que excluía
mulheres, escravos e crianças) propiciava um ambiente fecundo para a elaboração de
uma concepção da relação entre ética e política caracterizada pela unidade.
É nesse contexto histórico que, Aristóteles elabora a sua noção de política. Para
ele, as ações, as artes e as ciências têm um fim, A política é a
arte mais prestigiosa e que, mais verdadeiramente, se pode
chamar a arte mestra ( ... ) utiliza as demais ciências e, por
outro lado, legisla sobre o que devemos e o que não devemos
fazer, a finalidade dessa ciência deve abranger as outras, de
modo que essa finalidade será o bem humano. Com efeito,
ainda que tal fim seja o mesmo tanto para o indivíduo como
para o Estado, o deste último parece ser algo maior e mais
completo, quer a atingir, quer a preservar (Aristóteles,1991,'
9-10).
Aristóteles propõe que o bem supremo, que para ele é a felicidade, deva ser um
fim almejado pela ciência política e que este fim tem que se dar, sobretudo, no âmbito
do Estado - da polis - e não apenas da vida do indivíduo.
Na conformação da ordem política, Aristóteles (1998) define como objetivo do
Estado criar as condições de possibilidade para uma vida feliz. Essa felicidade, no
âmbito da comunidade estatal, seria garantida através da Constituição, pela qual,
necessariamente, estaria relacionada à virtude do cidadão. Neste sentido, Aristóteles
realiza uma pesquisa sobre várias constituições para descobrir qual a melhor para os
cidadãos. Segundo Mustafá (1999: 03), "a consideração sobre o fim do Estado repõe a
temática desenvolvida na 'Ética a Nicômaco ' sobre a felicidade como fim da política e
assegura a impossibilidade de romper a relação entre ética e política no seu
pensamento". Aristóteles, como vimos anteriormente, preocupava-se com - o fim - da
ação humana, ou seja, a racionalidade do fim é o que caracteriza o seu pensamento. E
nessa perspectiva, suas idéias orientam-se para a ética teleológica, ética da primeira
pessoa, nos termos de Mustafá (1999), em detrimento da ética deontológica.
A concepção de filosofia prática de Aristotéles influenciou toda a tradição
ocidental, sendo mediada pela escolástica, a qual foi moderna mente retomada por
Hegel e, contemporaneamente, tem inspirado diferentes autores(as), a exemplo de
Hannah Arendt.
A Política sob a análise contemporânea de Hannah Arendt
Para analisar a concepção de política em Hannah Arendt, vamos nos deter, de forma
breve, nas considerações que ela faz em seu livro - A condição humana sobre a - vita
activa - que congrega três atividades humanas fundamentais: o trabalho (labor), il obra
ou fabricação e a ação."
Segundo Arendt (1991:15), o trabalho (labor) "é a atividade que corresponde ao
processo biológico do corpo humano". Trata-se do empenho para satisfazer as
necessidades humanas no campo da própria sobrevivência física não apenas do
indivíduo, mas da vida da espécie. O resultado do trabalho é a produção de bens que não
permanecem no mundo, não possuem durabilidade, posto que são destinados ao
consumo imediato dos indivíduos, a exemplo da alimentação. Sendo uma atividade do
espaço privado, o trabalho limitava-se às necessidades do processo biológico, não se
constituindo espaço da liberdade, uma vez que os indivíduos aí estão no reino da
necessidade. A condição humana do trabalho é garantir a própria reprodução da vida.
A obra refere-se à produção artificial de objetos que, diferentemente dos produtos do
trabalho, adquirem permanência no mundo e não têm consumo imediato. Para a autora,
a obra traduz a "atividade correspondente ao artificialismo da existência humana"
(Arendt, 1991: 15), ou seja, é por esta atividade que o indivíduo produz um mundo
artificial de coisas. A condição humana da obra é a sua capacidade de pertencer ao
mundo.
A ação é, em Arendt (1991: 15), "a única atividade que se exerce diretamente
entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria". Na ação, os indivíduos se
libertavam do reino da necessidade e exerciam, na polis - na esfera pública, a atividade
verdadeiramente política. Liberado das necessidades, o homo agens é considerado como
igual entre iguais, sendo o espaço da ação aquele que possibilita o encontro da
comunidade de indivíduos
iguais, os quais se reúnem para a realização da liberdade, expressa na política. O
instrumento característico da ação é a palavra, o discurso e não a força ou a violência'.
Ao deter-se na análise da - vita activa - Hannah Arendt explicita com veemência
sua crítica à modernidade. Isso porque, conforme a autora, ao contrário da polis grega, a
modernidade valorizou somente o trabalho e a obra, enquanto a ação foi esquecida.
Demasiadamente voltado para a sobrevivência, o indivíduo moderno trabalha e produz,
vivendo em condições pré-políticas ou sob uma concepção tirânica de política que se
torna meio para o domínio e para a conquista do poder, assumindo na sua essência, um
caráter meramente instrumental de enfrentamento entre dominantes e dominados.
A condição humana, afirma Arendt (1991:17), "compreende algo mais que as
condições nas quais a vida foi dada ao homem, Os homens são seres condicionados:
tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição
de sua existência". Nessa perspectiva, a ação é das três atividades mencionadas
anteriormente, àquela que se encontra mais diretamente relacionada com a inteireza e
intensidade da condição verdadeiramente humana, constituindo-se numa atividade
política por excelência, que tem na pluralidade sua característica fundamental.
Cabe, então, interpelar: mas o que é política para Arendt7 A política baseia-se
tanto na singularidade como na pluralidade. Na singularidade, emana o indivíduo
enquanto ser único no mundo. No indivíduo, apresenta-se o novo, a natalidade, o
inusitado, o viver como ser distinto entre iguais. A pluralidade revela a igualdade e a
diferença presentes na convivência, no diálogo entre as pessoas, Podemos afirmar,
segundo Arendt (1999:22), que "a política trata da convivência entre diferenças". Nisto
consiste a dignidade da política e o reconhecimento do espaço público como espaço de
realização da liberdade.
No ensaio organizado por Ursula Ludz - O que é política?(1999) - que reúne
fragmentos póstumos do pensamento arendtiano, Hannah Arendt adverte para o fato de
que, ao falar de política, em nosso tempo, impõe-se o desafio de problematiza r os
preconceitos que todos têm contra a política.
O problema, para a autora, é que vigora, nos tempos modernos, uma concepção
de política circunscrita à relação entre dominantes e dominados, em detrimento da
noção de política propriamente dita, aquela designada na ação. Sob a perspectiva de
política
predominante
na
modernidade,
Arendt
(1999:26)
argumenta
que
conseguiríamos "em lugar da abolição da política, uma forma de dominação despótica
ampliada ao extremo, na qual o abismo entre dominadores e dominados assumiria
dimensões tão gigantescas que não seria mais possível nenhuma rebelião, muito menos
alguma forma de controle dos dominadores pelos dominados.”
Outro preconceito igualmente difundido contra a política reside no
reconhecimento da existência de uma política interior que seria traduzida por "uma teia
feita de velharia de interesses mesquinhos e de ideologias mais mesquinhas ainda, ao
passo que a política exterior oscila entre a propaganda vazia e a pura violência"
(Arendt,1999: 27).
Hannah Arendt elabora, assim, uma crítica contundente ao nazismo e stalinismo,
considerados, por ela, sistemas totalitários. Arendt mostra que no século XX, eles se
constituíram a forma mais definida de desnaturação da política, uma vez que
suprimiram, por completo, a liberdade humana. Para ela, na modernidade, as
atrocidades cometidas em nome da política, notada mente na edição stalinista e no
nazismo, se constituíram em heranças malditas que além de reduzir a política ao
autoritarismo, desprezaram a liberdade e desestruturaram o espaço público.
Ao apresentar a catástrofe da modernidade que dissimula o verdadeiro sentido da
política, submetendo os indivíduos a viverem sob as amarras da necessidade e no limite
da sobrevivência, Arendt, assinala a perda da liberdade como sinal evidente de que o
totalitarismo impede a presença atuante de homens e de mulheres na história.
Segundo Kurt Sontheimer (1999:09), no prefácio do livro – O que é política? –
apesar das experiências de calanidade que o homem
moderno teve com' o po itico, Arendt acredita ser evidente
que o homem é dotado, de uma maneira altamente
maravilhosa e misteriosa, do dom de fazer milagres, a saber:
ele pode agir, tomar iniciativas, impor um novo começo" e,
citando as palavras de Arendt, afirma, ainda, que "o milagre
da liberdade está contido no fato de que cada homem é em si
um novo começo, já que através do nascimento veio ao
mundo que existia antes dele e continuará existindo depois
dele.
Na verdade, Arendt não embala suas idéias em nenhuma forma de pessimismo
trágico. Ao contrário, adverte que "o ponto principal do preconceito corrente contra a
política é a fuga à impotência, o desesperado desejo de ser livre na capacidade de agir"
(Arendt,1999:28). Há, desse modo, uma crítica severa, realizada pela autora, quanto à
pseudo-alternativa de fuga à vida privada, à adoção, no cotidiano, da irresponsabilidade
com a vida social e da apatia política. Tais formas de condutas, tão correntes na
contemporaneidade, representam, para Hannah Arendt, práticas nocivas à construção da
verdadeira política.
Considerando as formas totalitárias de Estado e as conseqüências nefastas
oriundas do exercício da política no século XX, Arendt (1999:38) interroga-se de forma
radical: "tem a política algum sentido ainda?" A autora responde de modo enfático que
o sentido da política é a liberdade.
A política não é necessária, em absoluto – seja no sentido de
uma necessidade imperiosa da natureza humana como a
fome ou o amor, seja no sentido de uma instituição
indispensável do convívio humano. Aliás, ela só começa onde cessa o reino das necessidades materiais e da força
física (. ..) Falando em termos históricos, apenas poucas
grandes épocas a conheceram e realizaram (Arendt,
1999:50).
Para a autora, apesar de não ser possível reeditar as formas de organização que
deram, na antiguidade, sustentação para consolidar o que considera a verdadeira
política, uma idéia permanece atual, trata-se do entendimento da liberdade enquanto um
valor fundamental que atribui sentido à existência da política. Arendt (1999:34) vai
mais além quando diz que "na crise do mundo moderno não é tanto o mundo, mas sim o
próprio homem que saiu dos trilhos".
Considerações Críticas
Sem a pretensão de esgotar a discussão, destacaremos três aspectos na
concepção de política de Hannah Arendt que merecem considerações críticas.
O primeiro aspecto refere-se ao fato de que, para Arendt, a distinção entre
trabalho e obra foi eliminada ou ignorada na modernidade. "Todo o seu esforço consiste
em resgatar essa distinção (distinção que correspondia, na antiguidade, à distinção
entre o trabalho não produtivo do escravo e a atividade produtiva do artesão) e em
explicitar as implicações que decorrem de sua não distinção na modernidade”
(Magalhães, 1985: 133).
Ao tematizar - a vita activa - Arendt põe em relevo que o indivíduo moderno
está preso às leis da sobrevivência e critica a ênfase dada na modernidade, segundo ela,
por autores como Locke, Smith e Marx que consagraram o trabalho como a mais
relevante de todas as atividades humanas.
Para Arendt, há uma explícita contradição no pensamento de Marx que se
expressa quando ele apreende o trabalho como uma necessidade eterna na vida dos
indivíduos, ao tempo em que sinaliza a necessidade histórica de emancipar homens e
mulheres do trabalho. O problema é que ao reduzir o trabalho à reprodução da vida
biológica, Arendt, diferente de Marx, não considera que, na produção capitalista, a força
de trabalho produz mercadoria e mais-valia. Segundo Magalhães (1985: 148), "no fundo
é toda a concepção de Homem e do trabalho, em Marx, que ela recusa45". Numa lógica
de análise distinta de Arendt, consideramos que o trabalho não pode ser reduzido apenas
à mera sobrevivência ou a sua forma alienada, expressão particular que o trabalho
assume na sociabilidade capitalista, posto que o trabalho constitui, do ponto de vista
ontológico, a protoforma do agir humano, o que não significa reduzir todos os atos
humanos ao trabalho. Lessa (1996:24) refletindo sobre o pensamento lukacsiano, afirma
que "a reprodução social comporta e, ao mesmo tempo, requer outros tipos de ação que
não os especificamente de trabalho. Todavia, sem a categoria do trabalho, as inúmeras
e variadas formas de atividade humano-social não poderiam sequer existir".
Sob esse prisma, cabe-nos interrogar: de que forma o indivíduo social pode
pensar sua existência sem o trabalho?
Quando Hannah Arendt afirma que a modernidade valorizou o trabalho e a obra
em detrimento da ação, vale considerar que na Grécia antiga, os escravos e as mulheres,
que não gozavam de cidadania, estavam destinados a garantir a sobrevivência, enquanto
os cidadãos (homens livres) cuidavam do espaço público, da política propriamente dita.
Como podemos observar, isto não significa, de modo algum, que os indivíduos, na
antiguidade, tenham vivido sem o trabalho.
Temática tão corrente nos dias atuais, a crítica à centralidade do trabalho aparece
sob diferentes enfoques: desaparição do trabalho; substituição da esfera do trabalho pela
esfera comunicacional; perda da central idade da categoria trabalho etc. Além de lançar
mão de estratégias como globalização, neoliberalismo, reestruturação produtiva, o
capital propala o fim da sociedade do trabalho.
45
Para Arendt, trabalho é o que Adam Smith considerava como o trabalho improdutivo de um criado
doméstico, “ou seja, um trabalho que não deixa atrás de si uma marca durável ou valor (... )” (Magalhães,
1985:148).
Ao contrário do que se multiplica aos quatro cantos do mundo, a nova face do
capital necessita cada vez mais do trabalho, da classe trabalhadora, só que a considera
como uma força produtiva ainda "mais complexa, multifuncional, que deve ser
explorada de maneira mais intensa e sofisticada (...)" (Antunes, 1999a: 220).
Afinal, analogamente à história que Marx ilustra da melhor abelha
contracenando com o pior arquiteto, as máquinas superdotadas, com alto índice de
inteligência artificial, não podem prescindir do trabalho humano. Ou seja, a introdução
cada vez mais intensa da tecnologia exige trabalhadores (as) cada vez mais qualificados
(as), aptos (as) a lidar com as máquinas informatizadas. Consideramos que o trabalho,
mesmo em face de tantas mudanças, assume, numa perspectiva ontológica, centralidade
na vida de homens e mulheres. No entanto, o que se verifica, nos dias atuais, é a
retomada de níveis explosivos de exploração do trabalho, de intensificação do tempo,
dos ritmos e dos processos de trabalho. É preciso ter presente que esta nova gramática
social excludente traz conseqüências danosas para o interior do mundo do trabalho, mas
não cria condições para validar as teses sobre o fim do trabalho. Afinal, como diz
Antunes, "o capital pode diminuir o trabalho vivo, mas não eliminá-lo. Pode
intensificar sua utilização, pode precarizá-lo e mesmo desempregar parcelas imensas,
mas não pode extingui-lo “(1999b: 26).
Na interpretação de Magalhães (1985: 137),
"não foi a distinção entre trabalho e obra que permitiu que o
político fosse valorizado na antiguidade, e isso segundo a
própria H. Arendt, mas sim a distinção entre o privado e o
público, fica, assim difícil de compreender por que motivo essa
não distinção (trabalho e obra) na época moderna é, para ela, a
causa da perda do espaço público, espaço este que ela defende
com tanta energia".
O segundo aspecto problemático presente na concepção política arendtiana
refere-se ao uso que a autora faz da noção de totalitarismo para explicar sua crítica aos
desdobramentos da política no século XX.
O uso da noção de totalitarismo para negar e criticar as experiências do nazismo
e do stalinismo efetiva-se mediante a lógica na qual contra o terror do Estado policial
que ameaça o indivíduo e suprime sua liberdade, consagra-se o direito e a lei,
fundamentados no Estado de direito.
De acordo com Chasin (1977: 122), nesta interpretação,
"o Estado liberal vem a ser o sistema onde predominam a lei, a
razão e a liberdade, garantidas pela difusão do poder e pela
estrutura pluripartidária. E o Estado totalitário o sistema onde
prevalecem a violência extremada - o terror - e a dominação
hipertrofiada pela concentração do poder e nutrida pelo
monopólio do partido único. Um portanto, é o regime da
liberdade, regido pela lei, pela razão; o outro, o da opressão
comandada pela violência."
Desse modo, na perspectiva de realizar uma crítica radical e, em nossa opinião,
absolutamente necessária à violência e a toda ordem de desvalorização da vida humana,
ocorrida durante os regimes nazista e stalinista, Arendt, na essência, acaba por efetivar
uma contra posição entre totalitarismo e liberalismo. Nesse embate, o capitalismo se
edifica como o fim da história, portanto racionalmente insuperável. Considerando que,
na análise liberal, opera-se o ocultamento da desigualdade concreta frente à valorização
extrema da legalidade, temos como conseqüência que o liberalismo não é entendido
como expressão ria hegemonia burguesa, mas como expressão da igualdade de todos os
indivíduos perante a lei.
O pensamento de Arendt apresenta-se refém do uso do conceito de totalitarismo.
Ao utilizar esta noção na perspectiva de explicar e condenar as atrocidades cometidas
por determinados estados, acaba por reduzir toda explicação ao emprego de universais
abstratos que obscurecem a compreensão das particularidades dos fenômenos sociais.
"Donde, em lugar de reproduzir conceitualmente o concreto, evidenciando em cada
caso a particularidade decisiva, somos conduzidos, por aquela análise, a nos defrontar
com a razão em geral, a liberdade em geral, o cidadão em geral, o estado em geral, a
violência em geral etc" (Chasin, 1977: 125).
O terceiro aspecto que gostaríamos de mencionar está relacionado ao conceito
em si de política defendido por Arendt.
O pensamento de Arendt ao desconectar a esfera da política da esfera da
economia, redunda numa análise aparente quanto à explicação de porque os indivíduos
não tomam as rédeas da história e superam as condições desumanas em que vivem. Sua
concepção de política redunda na inviabilidade de alternativas para a construção de uma
nova sociabilidade, à medida que não agrega, na sua análise, a racional idade das classes
sociais e seus projetos.
Para Hannah Arendt, a dignidade da política, entendida na -ação- que se realiza
mediante a vivência da liberdade e da pluralidade é o objetivo maior da humanidade. A
política é, portanto, uma dimensão ineliminável da vida social, não se constituindo,
pois, conforme Marx, enquanto uma dimensão própria da sociedade de classes.
Sobre isto é oportuno lembrar que Gramsci chamava atenção para o fato de que,
embora a criação de um novo tipo ou nível de civilização se opere essencialmente sobre
as forças econômicas, os fatos da superestrutura não devem ser abandonados a si
mesmos, a seu desenvolvimento espontâneo. Neste sentido, define a política como a
esfera do coletivo que reúne sentimentos, aspirações e leis próprias, sendo relativamente
autônoma em relação à dimensão econômica e sofrendo, simultaneamente, influências
desta. No seu pensamento, há uma determinação da economia em relação à política, sem
apresentar, no entanto, imposições mecânicas de resultados, mas condicionando as
alternativas que se colocam para a ação do sujeito.
Ao discutir a concepção de política defendida pela Filosofia da Práxis, Gramsci
argumenta que "não é verdade que a filosofia da práxis ' destaque' a estrutura das
superestruturas; ao contrário, ela concebe o desenvolvimento das mesmas como
intimamente
relacionado
e
necessariamente
inter-relativo
e
recíproco"
(Gramsci,1999:369).
Trata-se de um fetiche qualquer tentativa, na sociedade capitalista, de desnudar
os indivíduos de suas determinações estruturais. O fosso entre economia e política pode
criar a ilusão da autonomia plena do político, mas logo é possível perceber que “a
naturalização/deshistorização da vida social é essencial na construção da hegemonia
burguesa. Reforça, por um lado o atual como o único possível da história e, por outro,
nega a possibilidade e a capacidade de existência da racionalidade das outras classes"
(Dias, 1996: 132).
Todas as reflexões, ainda que sérias e profundas, quando abstraídas das
múltiplas determinações que conformam o ser social, tendem ora para o politicismo
com ênfase no subjetivismo, ora para o economicismo, com ênfase na subtração da
subjetividade, na despersonalização dos indivíduos enquanto pertencentes a uma
determinada classe social. Desse modo, o politicismo e o economicismo acabam por
não potencializar iniciativas de formação e ação de sujeitos críticos, capazes de
identificar, nomea e se opor às atrocidades tais como a fome, a miséria, o desemprego e
a desigualdade social que, naturalizadas, conformam a vida cotidiana da maioria
subalternizada, sob o advento da sociabilidade do capital.
Na verdade, Arendt propõe uma concepção positiva de política e, neste sentido,
a ação entendida enquanto a atividade verdadeiramente política, destina-se ao
aperfeiçoamento do Estado de direito, do espaço público e da liberdade.
No pensamento de Arendt, a política está aprisionada numa trama idealista que
obscurece as relações classistas e interdita as possibilidades de compreensão da essência
da sociedade capitalista e seu sistema de exploração e opressão, não havendo, desse
modo, no seu pensamento, alternativas à ordem do capital.
Referências bibliográficas
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho - Ensaio sobre a afirmação e a
negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999 a.
________ . Crise capitalista contemporânea e as transformações no mundo do
trabalho. In Capacitação em Serviço Social e Política Social: Módulo 1: Crise
Contemporânea, Questão Social e Serviço Social. Brasília: CEAD, 1999b.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1991.
________ . A dignidade da política: ensaios e conferências. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 1993.
________ . O que é política: fragmentos das Obras Póstumas compiladas por
Ursula Ludz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
ARISTOTELES. Ética a Nicômaco. In: Os pensadores- Volume II. São Paulo: Nova
Cultural, 1991.
________ . A Política. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
BIHR, Alain. Da grande noite á alternativa (O movimento operário europeu em
crise). São Paulo: Boitempo, 1998.
CHASIN, J. Sobre o conceito de totalitarismo. IN: Revista Temas de Ciências
Humanas nº 01. São Paulo: Editora Grijalbo, 1977.
DIAS, Edmundo Fernandes. Cidadania e racionalidade de classe. IN: Universidade e
sociedade, ano VI, Nº l1,junho, 1996.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Volume 1 - Introdução ao estudo da
filosofia - A filosofia de Benedetto Croce. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
________ . Cadernos do Cárcere. Volume 3 - Maquiavel: notas sobre o Estado e a
política. Tradução de Luiz Sérgio Henriques, Marco Aurélio Nogueira e Carlos Nelson
Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
LESSA, Sérgio. A ontologia de Lukács. Maceió: EDUFAL, 1996.
MAGALHÃES, Theresa Calvet. A categoria de trabalho (labor) em H. Arendt IN:
Revista Ensaio N°14. São Paulo: Editora Ensaio, 1985.
MUSTAFÁ, Alexandra. Textos extraídos/traduzidos da tese: "A centralidade da ética
na reformulação do Estado Social" - Tese de Doutorado em Filosofia. Universidade
Salesiana de Roma,
1999.
OLIVEIRA, Manfredo A. de O. Ética e sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993.
A ética e o trabalho cotidiano do assistente social
Aione Maria da Costa Souza46
No contexto atual, onde o capital globalizado aprofunda as desigualdades
sociais, torna-se cada vez mais necessário construir formas concretas de efetivação de
valores éticos que, como fundamentos da vida humana precisam ser constantemente
construídos, reconstruídos e reafirmados.
Esse é um processo que se faz na busca cotidiana de luta pela liberdade, pelo
acesso à vida, ao trabalho, à dignidade, à participação, à justiça, à democracia, aos
direitos humanos, dentre outros.
Neste sentido, é preciso pensar a ética a partir das questões complexas e
desafiantes que se apresentam hoje no nosso cotidiano, particularmente para os
assistentes sociais que atuam diretamente com os reflexos da questão social,
convivendo' diretamente com situações aviltantes, que pela sua constância e freqüência
correm o risco de serem banalizadas, sendo necessário um certo cuidado para evitar a
naturalização das questões cotidianas.
É importante compreender essas situações, reconhecendo-as como demandas à
profissão, tendo clareza do papel profissional, e assim saber conduzi-Ias de forma ética
e estratégica. OU seja, enfrentar a situação concreta com competência, responsabilidade,
interpretando - a, qualificando e redirecionando-a, fundamentando-se nos princípios
ético-políticos do projeto profissional.
Neste texto tentaremos transmitir essa compreensão. Assim, inicialmente
apresentamos a discussão acerca da ética como componente fundamental no processo de
sociabilidade humana, referendando uma concepção de ética que está presente nas
discussões atuais da profissão, em seguida apontamos alguns caminhos que
consideramos importantes para a efetivação do projeto ético-político profissional.
1.
Ética: componente fundamental da sociabilidade humana
Os homens e as mulheres fazem a história, que é na realidade, a manifestação de
suas vidas em sociedade, das suas relações e do desenvolvimento humano e social. A
46
Professora do Departamento de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio Grande do NorteUERN, Mestra em Serviço Social pela UFPE e membro do GEPE.
constituição histórica da humanidade é um trajeto permeado por situações que muitas
vezes dificultam ou mesmo impedem que a construção dessas relações e dessa história,
seja tal como é definido ou planejado.
Heller (1985: ai), baseando-se nas teses da imanência e da objetividade em
Marx, concorda com a afirmação de que desejamos determinados fins, mas existem
circunstâncias que produzem resultados diferentes. Ou seja, existem "relações e
situações humanas que são mediatizadas por coisas" e que formam um complexo de
várias posições teleológicas, onde a circunstância torna-se uma resultante objetiva.
Assim a autora afirma que "causalidade e finalidade", em Marx, são fatos
ontológicos e sociais que se relacionam. No entanto, isso é logicamente correto quando
se refere a história da sociedade, pois na natureza, a causalidade existe sem a teleologia.
Causalidade e finalidade, portanto, são em Marx fatos
ontológicos-sociais que necessariamente se relacionam. A tese
de sua necessária inter-relação, decerto, só é verdadeira para a
sociedade, pois na natureza existe uma causalidade sem
nenhuma teleologia. Disso decorre que também o par conceitual
aparência-essência expressa uma realidade ontológico social. O
conceito de essência não tem sentido sem a finalidade, pois não
há essencialidade - nem, consequentemente, aparência - a não
ser do ponto de vista de uma colocação determinada de fins.
(idem: 02)
Na opinião da autora, a essência humana é a realização, gradual e contínua, das
suas possibilidades ontológicas. Portanto, considera que o valor é uma categoria que
possui uma objetividade social, visto que é expressão das relações sociais.
Neste sentido, Heller (idem:05) define valor como "tudo aquilo que explica o
ser" e fundamenta essa afirmação na concepção marxiana, de onde extrai como
componentes da essência humana: o trabalho, a sociabilidade, a universalidade, a
consciência e a liberdade.
Esses cinco componentes são fundamentais para o desenvolvimento da
sociedade e da constituição do próprio processo histórico. Neste sentido, relacionamos a
nossa compreensão, acerca de cada um deles.
1. O trabalho é um dos elementos fundamentais na constituição das relações entre os
homens, como também na concretização de diversas necessidades humanas e sociais. É
por meio do trabalho que se dá o processo de constituição das relações sociais.
2. A sociabilidade tem como mediação primordial o trabalho. É por esta mediação que
se reconhece a capacidade humana e a constituição dos sujeitos sociais. É, por este
mesmo percurso, que se estabelecem os valores como: o exercício da liberdade, a
manifestação de vontades e pensamentos, a constituição e a defesa dos direitos humanos
e sociais, entre outros.
É no processo de sociabilidade que as pessoas se reconhecem como sujeitos de
realização do trabalho, de construção de sua identidade, da necessidade de convivência,
de comunicação, de participação política, sujeitos de construção desse mundo e de sua
história.
Assim, se estabelecem as relações políticas, econômicas, sociais, que se
manifestam no cotidiano a partir das relações de trabalho, familiares, de amizade, de
afinidade, amorosas, de inserção em partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais,
dentre outros.
O processo de sociabilidade humana, portanto, se manifesta na criação dos
espaços de organização coletiva, que se expressam a partir do desenvolvimento das
relações econômicas, políticas, sociais e culturais, onde a ética surge como um
componente fundamental.
3. A universalidade não pode ser entendida como um ideal, distante, a ser alcançado,
mas como parte do exercício de conquista real do processo de emancipação.
4. A consciência como ato de reconhecimento de si mesmo enquanto ser singular, mas
nunca como forma de negação do outro, da coletividade. Mas entendida, principalmente
como responsabilidade no processo decisório.
5. A liberdade, como fundamento da própria existência, como possibilidade de
concretização do processo de decisão, de querer, de poder optar e escolher caminhos
que realmente sejam possíveis para todos.
É na construção da própria história, pelo processo de mediação e de intervenção
na realidade social, que se recriam as relações e valores éticos, ao mesmo tempo, em
que também são criadas e recriadas as necessidades sociais.
A ética é responsável pela compreensão da sociabilidade a partir do processo de
investigação dos princípios que motivam, distorcem, disciplinam ou orientam o
comportamento e decisões humanas, o que conduz a uma reflexão sobre a essência dos
valores da sociedade.
Como coloca Heller (1985: 01), "a história é a substância da sociedade" onde a
sua essência está na vida cotidiana, âmbito em que o Ser se faz presente em sua
particularidade e em sua genericidade. Por isso "a vida cotidiana é a vida do homem
inteiro". É no interior da vida cotidiana que surgem os valores, entre os quais os valores
morais.
Compreendendo a moral como uma relação que está no interior das atividades
humanas, Heller (idem: 06) coloca que tal relação é a conexão da particularidade com a
universalidade genericamente humana e, neste sentido, a moral é:
O sistema das exigências e costumes que permitem ao homem
converter mais ou menos intensamente em necessidade interior
– em necessidade moral - a elevação acima das necessidades
imediatas (necessidades de sua particularidade individual), (...)
'de modo que a particularidade se identifique com as
exigências, aspirações e ações sociais que existem para além
dás causalidades da própria pessoa, elevando-se até a essa
altura.
Desta forma, a elevação acima da particularidade é um ato consciente do ser
humano. E, de acordo com Heller, as necessidades tornam-se conscientes, inicialmente,
no indivíduo particular, mas o genérico também está contido nesse indivíduo, mesmo
dentro de motivos e necessidades particulares. Portanto, é através da integração, da
formação coletiva que o indivíduo toma consciência de sua condição de ser genérico,
pois como tal é produto das relações sociais. (1985:20)
A moral é, então, uma relação entre um comportamento particular e uma decisão
particular de um lado e as exigências genérico-sociais de outro.
Na interpretação de Barroco (1996: 74): "A compreensão dos fundamentos éticomorais da vida social supõe o entendimento da relação entre os níveis de existência do
ser social: universal, particular e singular." E, mesmo o indivíduo sendo singular e
genérico, não é apenas por sua singularidade que se coloca como representante do
gênero humano, pois a dimensão da vida social que é orientada predominantemente pela
singularidade na vida cotidiana, se expressa na autoconservação.
No entanto, a autora acrescenta que é neste espaço que "o indivíduo se socializa
e aprende a responder as necessidades práticas imediatas, assimila hábitos, costumes e
normas de comportamento". Incorporando tais mediações, vincula-se à sociedade
'reproduzindo a dimensão humano-genérica.
A moral é parte fundamental da vida cotidiana, pois a
reprodução das normas depende do espontaneísmo e da
repetição para se tornarem hábitos que respondem às
necessidades
de
integração
social;
a
legitimação
das
prescrições morais implica numa aceitação subjetiva, pois se
não forem intimamente valorizadas não se reproduzem diante
de situações cotidianas – onde a necessidade de escolha entre
uma ou mais alternativas se faz presente. A partir do momento
em que os indivíduos incorporam determinados papéis c
comportamentos, reproduzem-nos espontaneamente, donde a
tendência da vida cotidiana: as escolhas nem sempre significam
exercício da liberdade. (Barroco, 1996: 80)
De acordo com Silva, a afirmação de Marx de que é "o ser social que determina
a consciência" expressa que aquilo que penetra a consciência humana é, na realidade,
reflexo das relações sociais que esses homens estabelecem entre si. Portanto, a autora
acrescenta que,
(...) não se trata da consciência pura dos filósofos idealistas,
mas de uma consciência adquirida através das necessidades
materiais, do intercâmbio com os outros homens e com as
coisas situadas fora dele mesmo. É portanto a consciência da
natureza e da necessidade e estabelecer relações entre os
indivíduos, da qual nasce e se desenvolve a linguagem. Essa
consciência ultrapassa o instinto e é o início da vida social,
distinguindo a espécie humana das outras espécies animais.
(Silva, 1992: 21)
Deste modo, o que se evidencia é a concreticidade humana a partir de sua
atividade criadora, ou seja, o trabalho, que no processo de produção e reprodução
determina as relações sociais humanas.
De acordo com essa autora, a análise de Marx parte do homem em uma
sociedade específica, no caso a sociedade capitalista, onde existe a divisão em classes,
cujos interesses são antagônicos.
Assim, a moral é apreendida de forma diversa, pois os interesses são
diferenciados e as construções éticas dos sujeitos repercutem na sua condição de classe.
Os valores morais se incluem, então, como elementos que se relacionam com
esses componentes essenciais, da particularidade com a universalidade de forma a
explicar esses aspectos.
Sendo a moral uma relação entre atividades humanas, sua objetividade se
estabelece em cada dimensão da organização social: econômica, política, social,
cultural, etc. Considera-se, então, que a fundamentação dos valores está nas relações
entre os homens e que estas se situam tanto na organização familiar, como no trabalho,
ou nos espaços onde se realizam a educação, a cultura, o lazer e outros espaços de
realização da sociabilidade.
Neste processo, surgem várias formas de organização e mecanismos de
ordenamento da vida em sociedade, onde é criado o Estado, a Religião, o Direito, a
Política, a Ética, entre outros.
Neste sentido, os valores e fundamentos éticos são construídos histórica e
socialmente pelos homens através de suas ações na sociedade. São atitudes humanas,
conscientes, criativas e teleológicas.
É nessa construção social que se ampliam as alternativas e possibilidades de
escolha, onde o indivíduo social é sujeito de sua própria ação. Os valores, as normas e
os meios para a transformação da realidade, são construções desse homem social, que
quando idealiza suas ações através de uma práxis consciente, tende a buscar efetivá-Ias.
Concordamos neste sentido, com a afirmação de Netto (1999:93):
A ação humana, seja individual, seja coletiva, tendo em sua
base necessidades e interesses, implica sempre um projeto, que
é, em poucas palavras, uma antecipação ideal da finalidade que
se quer alcançar, com a invocação dos valores que a legitimam
e a escolha dos meios para atingi-la.
Sendo as concepções éticas determinadas historicamente, a partir das relações
sociais que os homens estabelecem em cada época, a forma de concepção dos valores,
também, se realiza a partir de fatos predominantes em determinado período e realidade
social. No entanto, o eixo central de construção dos valores, que são as relações
humanas e sociais, é conservado. Do mesmo modo, permanecem os desejos e projetos
de busca por uma sociedade diferente, configurada pela emancipação.
Com as transformações sociais e a complexificação das sociedades, o processo
de desumanização em face do avanço tecnológico e do aprofundamento das
desigualdades sociais, resultantes do desenvolvimento capitalista, as questões éticas
tornam-se uma necessidade cada vez mais presente.
As concepções éticas atuais têm se evidenciado pela exigência de tomada de
posição, em face de acontecimentos cada vez mais desumanizadores, bem como, pela
necessidade da concretização plena dos direitos civis, políticos e sociais e ampliação da
democracia.
A referência à necessidade de concretização da cidadania remete a um fato de
grande repercussão para o surgimento da sociedade moderna, ou seja, a falência do
feudalismo e a ascensão da burguesia, cujo vetor de movimentação assentava as bases
na luta pelos ideais burgueses da liberdade e da igualdade.
A discussão acerca da cidadania ocupa um espaço importante, quando a
compreensão da posse subjetiva da liberdade do ser humano é exaltada e revelada na
Declaração dos Direitos Humanos, onde se estabelece que todos os homens nascem
livres e iguais. Esses são alguns dos passos na direção de uma sociedade democrática e
humanizada, pela qual se luta até hoje.
A idéia de liberdade que foi estabelecida no direito formal da sociedade
burguesa e do Estado liberal, não adquire o sentido de liberdade universal e real, pela
existência da prática da desigualdade e confronto de interesses de classes divergentes.
A liberdade humana é um princípio ético fundamental que não pode ser
compreendido apenas em seu sentido abstrato. A base de sua concretização está na
superação dos limites naturais, humanos e sociais, o que representa, antes de tudo,
autoconsciência do indivíduo enquanto ser singular e genérico, para poder se constituir
em sujeito da história.
Para Barroco, a liberdade é uma capacidade ontológico-social e uma ação prática
de negação dos impedimentos e entraves à sua realização. Esses entraves estão
relacionados às necessidades humanas e às possibilidades de sua satisfação.
Liberdade e universalidade se referem à totalidade e à
diversidade de capacidades e necessidades: o ser social é mais
livre e mais universal na medida em que tem condições
concretas
de
objetivar
suas
potencialidades
de
forma
multilateral e de criar novas alternativas. (1996:56)
No seu sentido político, a liberdade se refere às capacidades e possibilidades de
escolha dos indivíduos em face das opções que se apresentam na realidade social. A
liberdade é o fundamento de todos os valores, e o homem faz parte de um universo,
onde as possibilidades de escolhas podem se tornar cada vez mais amplas.
A importância dos valores está na condução da realização dessas possibilidades
humanas. Neste sentido, os problemas éticos implicam uma tomada de posição, diante
das situações que se apresentam na realidade social. São posicionamentos que
envolvem, consequentemente, a capacidade de optar mediante situações complexas.
Sendo a essência humana a "realização gradual e contínua das possibilidades
imanentes à humanidade", o valor é tudo aquilo que contribui com esse processo de
crescimento do gênero humano.
Neste sentido, Barroco (1996:77) define ética, moral e política como meios
propiciadores da elevação do indivíduo à dimensão humano genérica:
A ética - enquanto reflexão filosófica dirigida ao humanogenérico -, a moral - enquanto ação prática voltada a
objetivação dos valores humano-genéricos - e a política enquanto práxis de superação dos impedimentos objetivos à
realização das forças essenciais do ser social - se inserem
dentre as atividades propiciadoras da elevação ao humano
genérico, na possibilidade de instauração da particularidade,
ou seja, da mediação entre o particular e o humano genérico
que corresponde à individualidade.
A moral faz parte das necessidades práticas do cotidiano da vida social, que
contribui para o estabelecimento do ethos47 e sua representação como identidade
cultural de uma sociedade, ou fração da sociedade: sendo marcada pela
contraditoriedade entre interesses econômicos, políticos, culturais e necessidades
sociais.
A ética é constituída na práxis humana concreta e relaciona-se a cada momento
histórico de desenvolvimento das condições socioeconômicas e culturais da sociedade.
A sua discussão situa-se nesse contexto político de decisão e de possibilidade de
escolha. As normas e os valores, criados pelo homem, adquirem objetividade a partir
dessa tomada de posição, porém, situados em uma sociedade de classes, são movidos
por necessidades e interesses contraditórios.
Concordamos com a afirmação de Barroco de que a contraditoriedade entre
interesses e necessidades dificulta, de certa forma, a concretização de uma concepção de
47
Ethos: termo grego que significa: caráter, modo de ser, costumes, conduta de vida. (Cf.
Fortes, 1998: 26)
bem que represente os interesses coletivos, pois adquirem significados diferentes nas
diversas classes, visto que são direcionados por interesses divergentes.
As determinações que incidem sobre a eleição de determinados
valores morais só podem ser entendidos na totalidade social.
Isto é, levando em conta a complexa rede de mediações
existentes na interação recíproca entre as necessidades e
interesses econômico-políticos e culturais e as possibilidades de
escolha e determinação dos indivíduos sociais. São os homens
que criam as normas e os valores, mas nas sociedades de
classes, as relações sociais por eles estabelecidas são movidas
por
necessidades
e
interesses
contraditórios,
donde
a
impossibilidade de existirem valores absolutos ou uma
concepção de bem que corresponda ao interesse e necessidade
de todos. Por isso, a moral é também marcada por essa
contraditoriedade; seus valores e princípios têm historicamente
diferentes significados e atendem, indiretamente, a interesses
ideológicos e políticos de classes e grupos sociais. (Barroco,
1999: 123)
Na sociedade de classes os valores estão permeados, portanto, por necessidades
e interesses contraditórios, donde muitas vezes os interesses da coletividade são
preteridos por interesses de indivíduos particulares.
A ausência de compreensão dessa realidade pode conduzir a um processo de
alienação48, onde a falta de clareza desta questão leva a uma descaracterização da ação
pelo próprio indivíduo, que não se reconhece como sujeito de sua prática.
Por conseguinte, o entendimento da dimensão ético-política da ação dos sujeitos,
está na compreensão das contradições da realidade social e da capacidade dos homens
agirem de forma ativa e consciente, no processo de transformação dessa realidade e de
construção da história.
Se o indivíduo alcança a consciência da universalidade, se reconhecendo como
ser humano genérico, assume uma atitude de reconhecimento face às questões que se
48
A alienação é um conceito amplo, de um modo geral se refere a "não apropriação, por parte dos
indivíduos, da riqueza material e espiritual produzida socialmente". Neste sentido, "os indivíduos não
reconhecem na realidade social, a sua ação, não se reconhecem como sujeitos históricos." (Barroco, 1999:
128)
referem à coletividade, podendo, portanto, comprometer-se com projetos coletivos. Esse
compromisso se concretiza pela tomada de posição, pela escolha em face de
determinada situação social concreta. Essa tomada de posição, consciente, caracteriza a
relação da ética com a política.
A adesão consciente à norma supõe a autonomia diante das
escolhas morais; o sujeito ético é capaz de deliberar diante do
possível historicamente, de forma responsável e livre. Mas a
consciência, o conhecimento crítico não são suficientes para
garantir a ampliação dessa autonomia; sua realização objetiva
supõe a unidade entre a ética e a política, pois esta se faz no
campo dos conflitos, da oposição entre projetos sociais,
caracterizando-se, pois, pela organização coletiva na luta entre
idéias e projetos que contém valores e uma direção ética.
(Barroco: 1999: 127)
Por essa práxis social, os indivíduos se elevam à sua universalidade, mas sem
perder sua singularidade. Mas, nesse processo enfrentam contradições que podem
dificultar essa apreensão consciente da realidade social. Tais contradições tornam-se
mais visíveis quando verificamos o conflito entre interesses particulares de indivíduos e
interesses coletivos, da sociedade.
No entendimento de Barroco,
A atividade política supõe a projeção ideal do que se pretende
transformar, em qual direção, com quais estratégias; por isso,
implica em projetos vinculados a idéias e valores de uma classe,
de um estrato social ou de um grupo. A ideologia, tomada
enquanto uma forma de enfrentamento dos conflitos sociais, é
parte da práxis política. (idem: 89)
Compreendemos então, que formas de apreensão do significado da ética podem
estar vinculados a pontos de vista diferenciados: por um lado podem limitá-Ias à prática
moral, individualizada, definida no cotidiano pela obediência à normas e deveres,
desvinculada de sua relação com a política e do seu sentido genérico social. Noutro
ponto de vista, a moral pode ser compreendida como uma relação social e a ética como
uma ação e reflexão teórica. O ser social é entendido em sua totalidade, na compreensão
da sua universalidade, como ser humano genérico.
É a partir dessas fundamentações teóricas e filosóficas, permeadas por pontos de
vista diferenciados, que se constroem as concepções de ética das profissões, onde se
definem princípios, normas, orientações gerais e específicas para a inserção de uma
determinada profissão no contexto da prática social. Mas, como isso pode ser colocado,
especificamente, no cotidiano de trabalho do assistente social?
2. A ética e o trabalho do assistente social
A ética é um aspecto fundamental na dimensão prática de qualquer profissão,
pois pelo processo de reflexão ética é possível tanto a análise crítica da realidade social,
como a influência na tomada de decisão política.
No caso do Serviço Social, a reflexão ética assume um conteúdo complexo pela
própria especificidade de constituição das demandas49 que se colocam aos profissionais
em seu cotidiano de trabalho. Tais demandas se constituem em exigências concretas a
necessidades sociais, muitas vezes imediatas, no interior de uma realidade adversa e
contraditória.
Estas contradições e adversidades que fazem parte do cotidiano de trabalho do
assistente social, e muitas vezes se tornam o próprio caminho de sua atuação
profissional.50
Segundo Barroco (1999:132) "o conteúdo da ética profissional “é construído na
práxis cotidiana, espaço de confrontos das situações de conflitos que demandam um
posicionamento de valor."
A dimensão da ética no espaço de realização da profissão vincula-se ao papel
que a mesma desempenha na sociedade, em um período histórico determinado. Na
realidade, as profissões incorporam os valores em vigor. Mas, também instituem os
veículos de discussão e re-atualização desses valores e princípios éticos-morais.
A problematização dos valores que fundamentam as profissões são enunciados
através dos seus códigos de ética, os quais tanto podem se referir a dimensão social na
“... demandas são requisições técnico-operativas que, através do mercado de trabalho, incorporam as
exigências dos sujeitos demandantes, (...) elas comportam uma ‘teleologia’ dos requisitantes a respeito
das modalidades de atendimento de suas necessidades...” (Mota, 1997:52)
50
As reflexões aqui apresentadas são indicações do contexto de atuação profissional dos assistentes
sociais em unidades de saúde, De onde parte é da nossa experiência de trabalho no Sistema Único de
Saúde - SUS, e parte extraída de pesquisa realizada com assistentes sociais, no processo de construção da
nossa dissertação de mestrado, na UFPE.
49
qual a profissão se insere, como aos aspectos específicos das relações estabelecidas por
tal profissão no período e contexto social em que se realiza.
A reflexão ética institui as bases para afirmação do conhecimento e
compromisso profissionais, estabelecendo meios para uma postura e consciência dos
profissionais.
Barroco (1999: 129) afirma que a ética profissional é uma dimensão da profissão
vinculada organicamente às dimensões teórica, técnica, política e prática. Neste sentido,
a autora expõe três esferas constitutivas da ética profissional, as quais consideramos
importante expor aqui, visto que nos concede uma compreensão melhor das
particularidades dos elementos presentes na ética profissional.
• A Esfera Teórica constitui-se de orientações filosóficas e teórico-metodológicas que
fundamentam as concepções éticas profissionais (valores, princípios, visão de homem e
de sociedade)
• A Esfera Moral Prática que envolve: o comportamento prático individual dos
profissionais em suas ações, orientadas pelas suas visões de mundo, juízos de valor,
responsabilidades, compromisso social, e o conjunto das ações profissionais em seu
processo de organização coletiva, direcionada teleologicamente para a realização de
determinados projetos com seus valores e princípios éticos.
• A Esfera Normativa expressa no Código de Ética Profissional, uma exigência
estatutária, que é referida a todas as profissões liberais. Constitui-se de um código
moral, onde se orienta o comportamento individual dos profissionais e se define uma
direção social, através de um projeto profissional. (Cf. Barroco: 1999: 129)
Nesta perspectiva, apontamos aqui para a necessidade de uma constante reflexão
teórica, que deve ser realizada pelo assistente social no cotidiano de sua atuação. Tal
reflexão envolve a compreensão dos princípios ético-políticos explícitos no código de
ética, Tais princípios configuram as orientações de um projeto profissional, que se
incorpora num processo de constituição da ética profissional, mas se caracteriza por
uma perspectiva mais ampla, na medida em que aponta para um ideal maior que é o
compromisso social, a defesa da democracia, da cidadania e da justiça social, indicando,
claramente, um posicionamento político na medida em que aponta para um processo de
construção de uma nova ordem societária.
Quando voltamos essa discussão para o cotidiano profissional do assistente
social, uma questão que nos ocorre é a importância que a ética assume 00 espaço de
concretização da ação profissional. Pois, existem caminhos, estratégias que, utilizadas
pelo assistente social no cotidiano, consideramos que estão em conformidade com as
orientações do projeto ético- político do Serviço Social.
Neste sentido, enfatiza-se aqui a importância da utilização sistemática do código
de ética pelo assistente social, visto que, contribui para o direcionamento profissional;
fruto dos posicionamentos ético-políticos construídos historicamente pela profissão e
que precisam materializar-se nas ações cotidianas.
Mas, como isto pode ser realizado! Tentaremos apontar alguns caminhos que, na
nossa concepção, podem contribuir com esse processo.
3. O projeto ético-político e o cotidiano de trabalho do assistente social
Procurar viabilizar o trabalho profissional orientado pelos princípios éticopolíticos do projeto profissional é um desafio que se coloca para o assistente social em
seu cotidiano, visto que, antes de tudo, deve-se reconhecer que as dificuldades presentes
são resultantes de um projeto maior que é o da ordem capitalista. Então, o primeiro
passo é reconhecer o projeto ético-político profissional, partindo da análise da realidade
contemporânea e das contradições que se apresentam no contexto atual.
O segundo passo é torná-lo visível no cotidiano de trabalho, onde a defesa da
universalidade, da liberdade, da democracia, da cidadania torne-se componente
essencial da atuação profissional. A perspectiva deve ser de buscar garantir ações
articuladas às necessidades concretas da população.
Outra questão é não se amoldar ao mero fazer cotidiano, às práticas rotineiras,
repetitivas e imediatas, o que não significa negá-las. Pois é preciso saber conduzir essas
ações, mas dentro de um projeto, que leve em consideração as reais necessidades da
população e as possibilidades conjunturais. Para isto, o profissional precisa ter uma
postura investigativa que lhe permita identificar os problemas, classificar as prioridades,
visualizar os caminhos possíveis, estabelecer as alianças e conduzir o processo
interventivo.
A consciência ética do profissional se faz na análise e
enfrentamento dos
conflitos cotidianos, na sua crítica, na compreensão das contradições que se apresentam
e em proposição de estratégias.
De acordo com Iamamoto (1997:08), as possibilidades são dadas pela realidade,
compete ao assistente social apropriar-se delas, transformando-as em projetos de
trabalho, abrindo os horizontes para uma nova perspectiva frente às adversidades
conjunturais.
Um quarto ponto que consideramos importante é a participação e envolvimento
dos assistentes sociais em fóruns de discussão que envolvam os direitos humanos,
políticos e sociais. Certamente isto influirá na sua atuação cotidiana, inclusive
considerando-se que uma das atribuições do assistente social consiste em prestar as
informações e esclarecimentos sobre direitos dos usuários e, para isso é preciso ter
conhecimento, domínio teórico, político, efetivo sobre esses direitos.
O nosso entendimento é de que esse processo de participação e envolvimento
dos assistentes sociais nos momentos onde se travam as discussões e movimentos, de
constituição de direitos sociais, é fundamental para a compreensão da realidade e
consequentemente para definição de suas proposições e estratégias de atuação.
Uma outra questão é ter clareza de que sendo o assistente social formado como
um generalista, para trabalhar com as seqüelas da “questão social”51, a inserção dos
profissionais em áreas como: saúde, judiciário, educação, assistência social, ong's,
empresas, etc., requer um posterior aprofundamento, de acordo com a especificidade
institucional em que se vai atuar.
Este aprofundamento deve ser constituído pela busca sistemática de
fundamentação do objeto de intervenção através do conhecimento e leis,
regulamentações, produções teóricas da área específica e do Serviço Social, como
também pela troca de experiências no contato com profissionais na instituição, ou em
outras instituições afins, em outras cidades, outros estados, num processo de
socialização de conhecimentos, dúvidas e questionamentos.
Os conhecimentos adquiridos no próprio trabalho52 contribuem para a
compreensão da realidade institucional e das demandas colocadas à profissão, ao
mesmo tempo possibilitam ao profissional realizar proposições. Então, ao se inserir em
uma determinada área, o profissional deve procurar especializar-se e conhecer
51
A "questão social" é aqui compreendida dentro da definição colocada por Iamamoto (1997:13) como:
"O conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum:
a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a
apropriação de seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade.
52
Estamos reconhecendo que tais conhecimentos devem ser acrescidos aos já adquiridos na formação
profissional.
profundamente esse espaço de atuação, pois isto lhe dará as possibilidades e à
competência para elaborar propostas de atuação efetivas.
Outra indicação que apontamos é a identificação e reconhecimento das
demandas colocadas ao Serviço Social, que podem se referir a um conjunto de situações
que envolvem as necessidades pessoais, familiares, dentre outras, que apesar de se
apresentarem como questões individuais, se referem a necessidades coletivas, como por
exemplo:
• a busca de serviços como: saúde, assistência social, etc.;
• a solução de situações que impedem ou se constituem obstáculos no acesso aos
serviços;
• as dificuldades de informações sobre o funcionamento de determinado serviço, ou às
condições e capacidade de atendimento que contribuem para a existência de uma
demanda reprimida;
• a falta de conhecimentos sobre os direitos e as formas de exercê-lo.
Estas, dentre outras, são demandas que se apresentam para o Serviço Social e
que o profissional precisa ter clareza e reconhecer a necessidade de transformá-Ias a
partir de ações efetivas.
Para nós, a identificação e reconhecimento dessas situações como demandas,
pelo assistente sociais faz parte do esforço pelo reconhecimento dos direitos e da
preocupação com a sua discussão e efetivação; ou' ainda a organização de ações que
envolvam a melhoria das relações que se estabelecem dentro da instituição e desta com
a população, passa pela necessidade de democratizar os espaços e efetivar ações de
reconhecimento da cidadania e concretização dos direitos sociais.
Na realidade, a forma de problematização das demandas, ou seja, o processo de
construção do objeto de' intervenção é que vai refletir e prescindir de uma direção éticopolítica. O nosso entendimento.é de que o conjunto de ações voltadas para assegurar o
acesso ao direito universal, com' relação à realidade, às necessidades e à cultura dos
usuários é que vincula as ações profissionais às orientações do projeto ético-político.
Se no conjunto dessas ações, as atividades profissionais são direcionadas no
sentido de conformar ou adaptar a população à uma dada realidade de exclusão social,
de fragmentação do acesso aos serviços, de aceitação da seletividade e da situação
colocada, estas ações com certeza se distanciam das necessidades dos usuários e
consequentemente das orientações do projeto ético-político.
Neste sentido, é fundamental a compreensão da realidade, para que se possa
criar as possíveis estratégias de ultrapassagem dessas situações que foram expostas.
É um processo complexo, envolve uma série de questões e situações, que
engloba desde o planejamento das ações, à socialização e execução das mesmas. É,
neste sentido, que são viabilizadas as atividades dos assistentes sociais. Ou seja, o
processo de articulação e execução do trabalho depende do posicionamento profissional
em face das necessidades coletivas.
Quando convoca reuniões, cria formas alternativas de trabalho, que envolva a
participação da população, expõe objetivos na execução dos trabalhos e envolve as
equipes na instituição, ou mesmo quando se realiza atividades educativas, verifica-se no
planejamento e na execução de políticas, a necessidade de articulação do trabalho
coletivo, e de propostas, cuja iniciativa do Serviço Social seja de articular, socializar,
envolver setores na realização de ações que respondam às demandas.
Com certeza tais atividades estão permeadas por inúmeras dificuldades, mas este
fato não pode servir de empecilho para a concretização do trabalho, ao contrário, é
preciso contorná-las e qualificá-las, em função das necessidades e interesses da
população.
E uma última questão que considero importante salientar é sobre o processo de
organização coletiva da categoria, que realmente precisa de um fortalecimento, isso
envolve o compromisso do assistente social consigo mesmo, com a profissão e com a
sociedade. Esta é uma questão que merece ser discutida e aprofundada no âmbito da
categoria profissional, que encontra-se, ao nosso ver, bastante desarticulada.
4. Conclusão:
As indicações aqui apresentadas não devem ser vistas como uma tentativa de
construir um modelo de atuação profissional, é preciso cuidado para não incorrer neste
erro, pois lidamos com questões da realidade, que pela sua dinâmica não comporta
aplicação de modelos ou fórmulas mágicas. A nossa intenção é mostrar que existem
possibilidades que devem ser apropriadas.
Concordamos com Iamamoto (1998:99) quando afirma que a dimensão política
presente no exercício profissional abre as possibilidades de neutralizar a alienação do
trabalho para o sujeito que a realiza.
Para isso é importante que o assistente social esteja inserido em todos os espaços
coletivos, participando de conselhos de conferências, de debates de repercussão social.
É preciso compreender as orientações presentes no Código de Ética do Serviço
Social, reconhecendo o projeto profissional, e isso se faz resgatando a historicidade da
profissão e sua inserção no contexto das contradições da sociedade capitalista.
Compreendendo que, como projeto coletivo aponta para as possibilidades de alcance
dos ideais de uma coletividade, que só pode adquirir consistência na análise da realidade
e na ação. É no movimento do espaço cotidiano que o profissional deve explorar, as
reais possibilidades, reconhecendo os limites de seu trabalho, fazendo uso, consciente,
dos meios e estratégias para a concretização do que é planejado.
Enfim, podemos reafirmar após todas essas considerações, que a ética é
fundamento de todo o processo da sociabilidade. E hoje, constitui uma das questões
urgentes e necessárias em face da desigualdade, da crescente desumanização e miséria
social, tornando-se cada vez mais categórico, no processo de construção de uma nova
organização social e política, onde a vida seja reconhecida como direito radical, e as
manifestações que buscam afirmar os direitos humanos e a justiça como práticas
cotidianas sejam respeitadas.
O nosso entendimento é de que no cotidiano profissional, deve ser criado o
espaço ético-político, que propicie a consolidação do projeto profissional, e isso requer
um esforço conjunto dos assistentes sociais, isso implica em uma organização maior da
categoria profissional.
É preciso compreender o que representa, hoje, o projeto ético-político do Serviço
Social, e isso se faz analisando a sociedade atual e rediscutindo-o, repensando inclusive
novas orientações para a profissão.
BIBLIOGRAFIA
BARROCO, M. L. Silva, Os Fundamentos Sócio-históricos da Ética, in: Capacitação
em Serviço Social e Política Social: Módulo 02: Crise contemporânea, Questão
Social e Serviço Social, Brasília: CEAD, 1999.
________ . Ontologia Social e Reflexão Ética, PUC: São Paulo, 1996. (Tese de
Doutorado).
________ . Serviço Social e Ética, São Paulo: Cortez 2001.
BONETTI. Dilsea Adeodata et alli (Orgs) Serviço Social e Ética, São Paulo:
Cortez/CFESS, 1996.
CFESS, O Serviço Social a caminho do século XXI: o projeto ético-político do conjunto
CFESS/CRESS, in: Serviço Social e Sociedade nº 50, São Paulo: Cortez, 1996.
CORREIA, Cláudio P. Diniz. O papel da Ética na Construção do projeto político
profissional do Assistente Social In: Serviço Social e Sociedade nº 40.1992.
FORTES, Paulo A. de Carvalho, Ética e Saúde: questões éticas, deontológicas e
legais, tomada de decisão, autonomia e direitos do paciente, estudo de casos, São
Paulo: E.P.U, 1998.
HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História, 2ª edição, São Paulo: Paz e Terra, 1985.
________ . Sociologia de Ia vida cotidiana, 4a edición, Ediciones Península:
Barcelona, 1994.
IAMAMOTO, Marilda Vilela, Serviço Social na Contemporaneidade: trabalho e
formação profissional, São Paulo: Cortez, 1998.
MOTA, Ana Elizabete, As Transformações no Mundo do Trabalho e os desafios para o
Serviço Social, In: Revista do Mestrado em Serviço Social, PUC/RJ, 1997.
NETTO, José Paulo, A construção do projeto ético-político do Serviço Social frente à
crise contemporânea. In: Capacitação em Serviço Social e Política Social. Módulo
01, Brasília: CEAD, 1999.
RIOS. Terezinha Azeredo. Ética e Competência, 7ªed. São Paulo: Cortez, 1999.
________ . Indivíduo, Ética e Práxis. In: Revista Inscrita 03, Rio de Janeiro: Grafline:
CFESS, 1998.
SILVA, Therezinha P.A Ética Profissional dos Assistentes Sociais: Os valores que a
fundamentam, São Paulo: PUC, 1992, (Dissertação de Mestrado).
SOUSA, A M.C. A dimensão ético-política do trabalho dos assistentes sociais que
atuam nas unidades de saúde de Mossoró - RN, Recife: UFPE, 2000. (Dissertação de
Mestrado).
A centralidade ético-política do Serviço
Social: reflexões a partir da
problemática da violência de gênero
Miriam de Oliveira Inácio53
Qual o lugar que o componente ético-político vem ocupando nas reflexões sobre
o exercício profissional do Serviço Social na atualidade? É pertinente falar de uma
centralidade ético-política no exercício profissional? Como ela se expressa e quais suas
contribuições para o desvelamento da prática profissional numa realidade social mais
ampla?54
Hoje, nos parece que tais reflexões se tornam cruciais.Quando já há
aproximadamente dez anos após a aprovação do código de ética (1993) e a legitimação,
pela categoria organizada, de um projeto ético-político voltado para a plena
emancipação humana, ainda nos deparamos com uma enorme distância entre as
orientações propostas pelo projeto ético-político profissional e a prática cotidiana do (a)
Assistente Social nos seus campos de trabalho.
O que está na pauta do debate atual é a própria viabilidade do atuai projeto
profissional, pois se de um lado nos deparamos com o desconhecimento de parcelas
significativas da categoria sobre o projeto profissional e o próprio código, de outro
identificamos uma compreensão errônea de alguns que consideram tal projeto de cunho
reformista ou até mesmo utópico.
E o por quê dessas reflexões a partir da problemática da violência de gênero?
Em função de o Serviço Social desenvolver uma atuação nesta área que possui um
caráter eminentemente educativo junto à família, que requer a utilização de valores
éticos, podemos afirmar que esta centralidade ético-política torna-se mais evidente.
Neste artigo, iremos analisar a dimensão ético-política e sua centralidade no
exercício profissional a partir do cenário institucional de atenção à violência de gênero
nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM's).
Para isso, sentimos a necessidade de recuperar, ainda que brevemente, o estágio
atual do debate ético no Serviço Social e o papel da ética profissional enquanto reflexão
53
Assistente Social, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFPE, membro do
GEPE (Grupo de estudos e pesquisa em Ética) e Conselheira do CRESS 14ª Região (RN).
54
Com essas questões não pretendemos desconsiderar a dimensão teórico-metodológica e técnico
operativa, uma vez que a competência profissional requer a qualificação em todas essas dimensões, mas
tão somente realçar esse componente ético-político.
crítico-filosófica sobre as respostas profissionais diante dos desafios e contradições da
realidade social. Abordaremos, também, algumas particularidades do trabalho de
atenção à violência de gênero nas DEAM's, destacando as respostas profissionais do
Serviço Social às demandas sócio-educativas aí expressas, ou seja, caracterizando seu
ethos profissional.
Compreendemos que em qualquer espaço de atuação profissional, ainda que o
sujeito não tenha a consciência moral55 de que trabalha com elementos valorativos,
sabemos da existência de "crenças silenciosas" que movem e dirigem as ações, no
cotidiano profissional, para uma determinada perspectiva, que estará sempre associada a
um projeto de sociedade, com suas implicações ético-políticas.
Partilhamos da perspectiva que considera a ética56 enquanto espaço de reflexão
crítico-filosófica sobre os valores morais e a conduta humana. Se fundamentada numa
perspectiva crítica, pode realizar a crítica radical aos valores dominantes na sociedade,
desmistificar o significado sócio-político desses valores e o seu papel na reprodução de
determinadas relações sociais.
Para que exista qualquer ação ética é necessário que o indivíduo tenha liberdade
de escolha. Portanto, a liberdade é condição fundamental da existência ética, uma vez
que sem a possibilidade de escolha e autonomia, o indivíduo não pode ser
responsabilizado pela sua conduta moral.
A liberdade como capacidade humana, constitui-se valor central da ética. O
homem, enquanto ser histórico-social, age eticamente porque é capaz de agir de modo
consciente e livre, ao dispor de condições objetivas para criar alternativas e escolhas.
(Barroco, 2000).
Recuperando o debate ético no Serviço Social, temos que desde o início dos
anos 90 até o momento, ocorreu um redimensionamento na compreensão sobre o lugar
da ética na profissão. Nesse período, foi possível afirmar que o debate sobre a ética não
se restringiu à ética profissional, e que esta não ficou reduzida à sua dimensão
55
A consciência moral é exercitada quando temos que decidir sobre algo, construindo argumentos éticos
justificadores das nossas decisões, em que assumimos as conseqüências por nossas opções.
56
A ética é o "estudo dos valores morais (as virtudes), da relação entre vontade e paixão, vontade e razão;
finalidades e valores da ação moral; idéias de liberdade, responsabilidade, dever, obrigação, etc...”
(Chauí, 1998:55).
normativa, ou seja, ao código de ética. Ficou em evidência a discussão sobre os
conflitos entre valores profissionais e pessoais e a necessidade da internalização de
valores conciliados ao projeto ético-político profissional objetivado no código de ética.
(Paiva et. alli, 1998).
Chegou-se a conclusão que se torna fundamental uma maior publicização desse
projeto ético-político, buscando mais possibilidades de viabilização daqueles valores
inscritos no projeto profissional57, considerando evidentemente as particularidades do
exercício profissional e os limites impostos pela ordem burguesa (Brites e Barroco,
2000; Iamamoto, 1998).
Foi possível, também, elucidar as várias dimensões da ética profissional, que
estão intimamente articuladas: a filosófica, formada pelas bases teórico e éticofilosóficas responsáveis pela concepção de ética e pela reflexão sobre os valores; o
ethos profissional, referido à moralidade profissional (a consciência moral dos sujeitos
profissionais) e as conseqüências ético-políticas das ações individuais e profissionais (a
partir dos posicionamentos ético-políticos dos (as) profissionais, indicando um dever ser
implícito no projeto profissional); e a normativa, expressa no código de ética
profissional, estabelecendo normas, deveres, direitos e proibições (Barroco, 1~99, 2001;
Paiva et. alli, 1998).
Quando falamos da dimensão ético-política de uma profissão como o Serviço
Social, estamos nos referindo aos valores e princípios norteadores da profissão,
articulados a uma direção social voltada para a defesa de determinado projeto de
profissão, em sua articulação com determinado projeto societário.58
57
Nesse sentido, foi desenvolvido o "Projeto Ética em Movimento" pela gestão 1999/2002 do CFE55, em
parceria com os CRE55, com o objetivo de não apenas divulgar o Código, mas explicitar as
possibilidades desse documento estratégico, uma vez que o mesmo legitima valores, sendo "um campo de
possibilidades que extrapolam os deveres e direitos legais nele assinalados".Tal projeto compartilha da
idéia que não de deve restringir os debates éticos ao código , visto que a ética estabelece uma relação
fundamental entre ° projeto ético-político profissional e os projetos societários.
58
“... os elementos éticos de um projeto profissional não se limitam a normatizações morais e/ou
prescrições de direitos e deveres, mas envolvem ainda as escolhas teóricas, ideológicas e políticas das
categorias e dos profissionais - por isto mesmo, a contemporânea designação dos projetos profissionais
como projetos ético-políticos revela toda a sua razão de ser: uma indicação ética só adquire efetividade
histórico-concreta quando se combina com uma direção político-profissional" (Netto, 1999: 98-99).
Nesse sentido, ao pensarmos nessa dimensão ético-política do exercício
profissional, vemos que a ética realiza uma mediação entre o saber e a práxis política,
por meio da interiorização de valores e princípios profissionais que suscitam novas
posturas, ou da construção pessoal e profissional. Daí a intrínseca relação entre ética e
política (Paiva e Sales, 1996:203).
No interior do debate sobre a ética profissional no Serviço Social, as discussões
que culminaram com a aprovação do atual código compreendem a ética a partir da
ontologia do ser social.
Esta concepção já contém, em si mesma, uma projeção de
sociedade - aquela em que se propicie aos trabalhadores um
pleno desenvolvimento para a invenção e vivência de novos
valores, o que, evidentemente, supõe a erradicação de todos os
processos de exploração, opressão e alienação (Código de Ética
Profissional do Assistente Social, 1993).
Apesar do marxismo não ter elaborado uma ética, ou seja, não podemos afirmar
que o marxismo represente uma corrente ético-filosófica, no sentido de elaborar e
fundamentar critérios do que venha a ser o ético, a teoria social de Marx faz uma crítica
à moral burguesa e nos permite desmistificar o real significado dos valores: suas
contradições e seu caráter de classe ou grupo social.
(...)
Uma
ética
fundada
em
Marx
tem
um
caráter
revolucionário. Em termos de reflexão ética exige a crítica
radical e a perspectiva de totalidade; em termos de valores se
apóia na liberdade e na emancipação humana. Praticamente,
supõe um projeto societário de supressão da alienação, da
exploração, das formas reificadas de viver moralmente
(Barroco, 2001: 198).
De acordo com Barroco (2000), o significado da ética na ontologia social de
Marx parte da idéia fundamental de que é o homem, com suas capacidades e
potencialidades, que possibilita a ação ética (criação de valor, escolha consciente e
objetivação das escolhas). O homem está constantemente se autoconstruindo, por meio
do trabalho, respondendo as suas necessidades materiais e espirituais, por meio de
mediações (consciência, conhecimento, linguagem, cooperação, valoração de objetos,
ações e costumes).
Assim, a ética como reflexão filosófica, possibilita ao homem adquirir uma
consciência como ser humano-genérico (Barroco, 1999: 126).
Também o debate sobre a ética profissional nos marcos da teoria marxista vai
resgatar as conexões entre as demandas sociais postas à profissão e suas possibilidades
de resposta frente aos projetos societários divergentes na sociedade.
Nesse sentido, compreende-se que o ethos profissional é construído na relação
entre as necessidades sócio-econômicas e ídeo-culturais e as possibilidades de escolhas
ético-morais dos sujeitos profissionais (Barroco, 2001:68).
Então, as discussões sobre a ética profissional estão articuladas a uma
compreensão da ética enquanto reflexão crítica, filosófica, radical e de totalidade. Nesse
sentido,
A ética volta-se para a apreensão dos fundamentos sóciohistóricos da moral, donde a compreensão de que o ethos
pertence ao domínio da práxis e da liberdade - e que moral e
ética são produtos históricos e respostas a necessidades, de
acordo com o que é possível em cada momento histórico
(Barroco, 1996:94).
Conforme Iamamoto (1998), é importante, também, explicitar a dimensão
teleológica do trabalho59, considerando o sujeito da atividade laborativa e seu nível de
consciência ético-política, que com seus "ethos” (costumes, valores, virtudes, vícios e
projetos) e autonomia criam as finalidades para sua atuação, uma vez que "esse ato de
acionar consciente, que é o trabalho, é uma atividade que tem uma necessária
dimensão ética, como atividade direcionada a fins, que tem a ver com valores, com
dever ser, envolvendo uma dimensão de conhecimento e ético-moral". (Iamamoto,
1998: 61),
Se analisarmos a problemática da violência contra a mulher, o recurso ao
componente ético-político nos parece indispensável, uma vez que a intervenção de
diferentes setores profissionais sobre tal problemática envolve a relação entre as
59
Sendo o trabalho uma atividade do sujeito, ao realizar-se, aciona não só o acervo de conhecimentos,
mas a herança social cultural acumulada, com suas marcas de classe, de gênero, etnia, assim como do
processo de socialização vivido ao longo da história de vida, atualizando valores, preconceitos e
sentimentos que aí foram sendo moldados (Iamamoto, 1998: 103-104).
dimensões público e privado, visto que.a violência ocorre majoritariamente no espaço
familiar.
Nas ações dos (as) diversos profissionais existe a possibilidade da adoção de
valores - ainda que de forma inconsciente - construídos sobre um ethos societário
dominante e legitimador do machismo e do preconceito dispensado às mulheres,
podendo traduzir-se em práticas de naturalização da violência contra a mulher; e
conseqüentemente de violação dos seus direitos humanos.
Portanto, torna-se relevante destacar a influência do ethos60 individual/
profissional na direção do trabalho, tendo em vista que o cenário institucional de
violência contra a mulher parece ser um terreno propício para a reprodução de valores
construídos sobre um ethos dominante marcado pela hierarquia de gênero.
Desde a criação das primeiras Delegacias da Mulher, o Serviço Social tem sua
inserção voltada para um atendimento social e moral, cuja finalidade é desenvolver uma
política de prevenção criminal, orientar a mulher sobre seus direitos e valorizar sua
auto-estima para romper com a impotência diante da violência.61
A ação do Serviço Social exige uma intrínseca relação entre Gênero e Ética,
tendo como eixo a defesa dos Direitos Humanos. Isso porque os (as) profissionais
trabalham com elementos valorativos - remetendo para o campo da ética - que podem
vir a reforçar ou a desconstruir o padrão dominante de relações de gênero presente na
sociedade.
As DEAM's atendem majoritariamente a casos de violência conjugal, donde
praticamente todos (as) os (as) profissionais que aí trabalham realizam uma atividade de
aconselhamento junto a vítimas e agressores, uma vez que tanto homens como mulheres
procuram esta instituição em busca de orientação sobre seus direitos sociais e humanos.
Os (as) profissionais atuam junto à família, emitem opiniões e juízos de valor
sobre a problemática da violência contra a mulher, extrapolando as atividades
meramente policiais, em função do tipo de crime, por se tratar de uma violência que
ocorre na família: a violência conjugal.
60
“A palavra ethos é definida por Chauí (1998:340) da seguinte forma: "em grego, existem duas vogais
para pronunciar e grafar nossa vogal 'e': uma vogal breve, chamada 'epsilon', e uma vogal longa, chamada
'eta'. Ethos, escrita com a vogal longa significa costume; porém escrita com a vogal breve, significa
caráter, índole natural, temperamento, conjunto das disposições físicas e psíquicas de uma pessoa. Neste
segundo sentido, ethos se refere às características pessoais de cada um que determinam quais virtudes e
vícios cada um é capaz de praticar. Referem-se, portanto, ao senso moral e à consciência ética
individual".
61
Ver Relatório do I Encontro Nacional de Delegadas latadas em Delegacias de Defesa da Mulher.
Brasília-DF: Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, 1986.
Conforme Silva (2002), as ações das DEAM's podem ser divididas em
atribuições/obrigações e práticas extrapoliciais não regulamentadas. Com base nos
dados da "Pesquisa Nacional sobre as condições de funcionamento das Delegacias
Especializadas no Atendimento às Mulheres62, essa autora destaca que em termos de
suas atribuições oficiais, 92,13% das delegacias dizem realizar atendimento às mulheres
vítimas de violência, registrando, apurando e investigando queixas; 42,79% afirmam
praticar conciliação e mediação entre as partes conflitantes; 37,83% fazem atividades de
prevenção à violência contra a mulher e 29, 69% afirmam realizar atendimento
psicológico e social às mulheres.
E considerando as práticas não regulamentadas oficialmente, vistas como
extrapoliciais, os (as) profissionais entrevistados (as) afirmam realizar práticas
educativas, além das suas atribuições normalizadas, como aconselhamento (93,63%) e
palestras sobre gênero e violência nas escolas (55,43%).
A autora chama a atenção para a responsabilidade dos agentes envolvidos nessas
tarefas de natureza educativa na democratização das relações de gênero, pois se é
atribuição precípua das DEAM's a criminalização, tais práticas devem ocorrer à luz de
valores éticos do respeito aos direitos humanos e da integridade moral e física das
mulheres (2002:11).
Conforme Brandão (1998), em estudo realizado sobre o atendimento policial em
uma Delegacia da Mulher do Rio de Janeiro, ocorre entre os (as) profissionais uma
naturalização da violência conjugal e, por conseguinte, uma banalização da intervenção
sobre a mesma, em que a investigação do fato cede lugar à discussão sobre a conduta
moral da "vítima" e do "acusado".
A prática do Serviço Social não está imune a este contraditório cotidiano
institucional. Se o (a) profissional está inserido num contexto social em que predomina
a banalização da violência de gênero, baseado na idéia de que em briga de marido e
mulher não se mete a colher, por ser esta modalidade de violência uma questão da vida
privada que não merece intervenção pública, várias inquietações devem permear a
intervenção do (a) Assistente Social nesse campo.
Por exemplo, como os (as) Assistentes Sociais se posicionam diante da questão
da ambigüidade feminina? Essa ambigüidade se expressa em algumas posturas da
mulher; como por exemplo, quando ela denuncia e, ao mesmo tempo, não deseja punir
62
Pesquisa promovida pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher-CNDM e Secretaria Nacional de
Segurança Pública - SNSP.
legalmente o companheiro agressor; ou quando, ela demonstra insatisfação com o
agressor e, por outro lado, valoriza suas qualidades de "bom pai" e chefe da casa.
As próprias expectativas das mulheres em relação à Delegacia já contêm, em si,
uma ambigüidade, pois "ao reivindicarem determinadas medidas 'corretivas' contra os
parceiros, as mulheres não buscam uma punição específica para aquele delito
denunciado, mas a restauração de toda uma ordem que confere sentido não só àquela
relação, mas à sua existência social" (Brandão, 1998:63).
Conforme Brandão (1998), o recurso feminino à polícia torna-se um meio de
reforçar a lógica de gênero na perspectiva do restabelecimento do regime ideal
(tradicional) de relação entre os sexos, mas sem a violência, haja vista a visão da polícia
como "ordem masculina".
A questão da violência contra a mulher precisa ser analisada a partir de uma
compreensão de gênero63, fundamental para se entender a questão da ambigüidade
feminina: a maioria das mulheres não quer punir o agressor, mas estabelecer novas
relações, fundamentalmente sem violência.
Numa Delegacia da Mulher, a intervenção do Serviço Social se diferencia da
prática eminentemente policial, visto que as demandas postas à profissão referem-se a
ações sócio-assistenciais (esclarecimento e encaminhamentos relativos a questões de
pensão alimentícia, separação judicial, partilha de bens, etc.) e ético-educativas
(negociação de conflitos familiares e conjugais), devido a dimensão educativa da
profissão64.
A dimensão educativa do trabalho do (a) Assistente Social interfere no modo de
pensar e viver dos usuários: "essa prática se delineia a partir das mediações entre o
universo simbólico dos usuários e o paradigma teórico-metodológico adotado pela
profissional, que, por sua vez, se sustenta em uma determinada visão de mundo,
organizadora de seu universo simbólico" (Silva, 1992)65.
63
Segundo a clássica definição de Scott (1993: 16), "O núcleo essencial da definição repousa sobre a
relação fundamental entre duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais
fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significado
às relações de poder. Além do que, ele é um meio complexo entre diversas formas de interação humana
de decodificar o sentido e de compreender as relações".
64
Para Saffioti, a primeira escuta junto a vitima não deve ser realizada por policiais e na Delegacia da
Mulher, mas por Assistentes Sociais e Psicólogos em local próximo à Delegacia para se dar o
encaminhamento correto. É imprescindível também uma rede de serviços para apoiar a mulher. Ver
Saffioti (1999)
65
Trata-se de um estudo em nível de Mestrado sobre o discurso e a prática de profissionais (policiais e
Assistentes Sociais) nas três Delegacias da Mulher do Rio de Janeiro, no período de 1988 a 1989.
Em relação às perspectivas ético-políticas do trabalho profissional do Serviço
Social, identificamos a possibilidade de uma heterogeneidade quanto à direção social do
trabalho, em que se mesclam práticas balizadas tanto no ideário conservador quanto no
feminista.
Em primeiro lugar, devemos considerar que a expectativa da maioria das
mulheres que procuram a DEAM é a "harmonia" familiar e não a sua dissolução.
A família nuclear burguesa é o modelo hegemônico na nossa sociedade e a
tendência predominante é o reforço desse modelo de família "( ... ) seguidora das
tradições, composta de mãe, pai e filhos, coexistindo por laços de aliança e
consangüinidade, vivendo numa casa harmoniosa e destinada a ser feliz para toda a
vida" (José Filho, 2001:79).
O ideário conservador traduz-se na defesa da família nuclear, em que os
determinantes da violência contra a mulher estão associados a problemas de
"desestruturação familiar".66
De Maistre Bonald, filósofo francês representante do pensamento conservador,
afirmou que "a autoridade - e daí a liberdade ou autonomia - da família é sacrossanta;
nem o Estado nem a Igreja têm o direito de transgredir as prerrogativas ligadas ao
parentesco" (Nisbet, 1987:70 Apud Barroco, 1996:141).
Na história do Serviço Social, vamos encontrar a origem do ethos profissional na
ideologia conservadora e na moral positivista, fundamentados na defesa da família
tradicional e da moralidade "feminina" que aprisiona o papel da mulher às suas
características naturais (Barroco, 1996:225).
Trata-se de uma perspectiva ética conservadora que restringe a mulher ao espaço
da vida doméstica, em que seu trabalho configura-se útil à acumulação do capital tanto
do ponto de vista do processo reprodutivo, como da educação moral que lhe é atribuída
para garantir a harmonia na sociedade. Nesse sentido,
o homem deve sustentar a mulher, a fim de que ela possa
preencher convenientemente seu santo destino social. (...) sob a
santa reação da revolução feminina, a revolução proletária
purificar-se-á espontaneamente das disposições subversivas que
66
Baseada na perspectiva teórica funcionalista, a família desestruturada é aquela que não se enquadra
dentro de um modelo considerado correto e equilibrado, ou seja, daquela família nuclear burguesa.
(CALDERÓN & GUIMARÃES, 1994:25).
até aqui a têm neutralizado (Comte, 1977: 115 Apud Barroco,
1996: 115).
Tal tendência faz parte do modelo predominante existente na sociedade
contemporânea, pois segundo Barroco (1996:81), "os comportamentos orientam-se por
valores, compondo um conjunto de papéis sociais vinculados ao ethos socialmente
legitimado".
As práticas precisam, portanto, ser analisadas dentro de um contexto mais amplo
de uma sociedade estruturada sobre múltiplos processos de opressão de classe, gênero e
raça. E a instituição e os (as) profissionais que nela trabalham tendem a reproduzir
preconceitos e moralismos, atitudes dominantes na sociedade.
Uma outra direção possível é aquela baseada no ideário feminista, ou seja,
voltada primordialmente à defesa da igualdade de direitos entre os gêneros,
compreendendo que a violência contra mulher é uma questão histórico-cultural, fazendo
parte das relações de gênero dominantes na sociedade.
As propostas do movimento feminista são vistas como potencializadoras de
conflitos e estímulos à dissolução da família (Rodrigues, 1998:257). Isto porque a
defesa dos direitos humanos das mulheres se torna um valor moral superior a defesa da
família quando ocorre a violência contra a mulher e esta decide dissolver uma relação
conjugal marcada pelo machismo, valor dominante na sociedade.
Nos anos 80, o feminismo67 foi marcado pelas lutas contra a violência de gênero,
afirmando que 'o privado é também político', questionando os valores morais da família,
colocando na agenda de discussão as questões do corpo, da sexualidade, da liberdade e
do amor (Bandeira, 2000:31).
Portanto, foi no século XIX que se assistiu ao surgimento de um
dos mais significativos movimentos sociais que se configurou
plenamente na segunda metade do século XX, o Movimento
Feminista. Após longos séculos de exclusão e de dominação, as
mulheres conheceram a possibilidade histórica de pensarem a
sua condição, não mais como um destino natural-biológico,
conseqüente da condição imposta pelo direito universalizante
67
"Estruturou-se a partir de uma ética assentada na crítica ao domínio patriarcal e em uma razão
androcêntrica de humanidade, que deixou de fora metade desta - as mulheres - e que construiu um modelo
de feminino fabricado pelo androcentrismo em nome da natureza e da razão" (Bandeira & Siqueira,
19S17 In: Bandeira, 2000:17).
do mais forte, ao contrária, como sujeitos de uma situação
social nova (Varikas, 1989) (Bandeira, 2000: 16).
É necessário compreender, portanto, a caracterização do ethos profissional do
Serviço Social na área da violência de gênero a partir das diversas necessidades sócioculturais postas como demandas à profissão, como já abordamos: a expectativa das
mulheres em restabelecer a relação conjugal, muitas vezes baseadas na continuidade da
hierarquia de gênero, mas livre da violência; e das demandas postas pela instituição
policial para realizar um trabalho educativo, portanto extrapolicial, para resolução dos
conflitos familiares.
Compreendendo que o ethos profissional se refere à consciência moral dos
sujeitos da atividade, e que esta se orienta por determinados valores e perspectivas,
expressando o comportamento profissional, cabe ao (a) profissional pensar como
aquelas perspectivas estão presentes na sua atividade, identificando as conseqüências
ético-políticas de sua ação nesta área da violência contra a mulher. A profissão tem
contribuído para a democratização das relações de gênero e garantia dos Direitos
Humanos das mulheres? Por realizar uma atividade predominantemente extrapolicial, de
cunho educativo, tem potencializado, também, os encaminhamentos necessários à
punição do agressor?
Portanto, nos parece que a dimensão ético-política do Serviço Social adquire
uma centralidade na atenção à problemática da violência de gênero, uma vez que requer
uma reflexão crítica sobre os valores de gênero hegemônicos na sociedade, e que
perpassam tanto o campo institucional, quanto às crenças dos indivíduos sociais.
É fundamental potencializar o debate que já se iniciou, acerca do papel da ética
profissional enquanto reflexão crítico-filosófica sobre as respostas profissionais diante
dos desafios e contradições da realidade social, destacando a relação entre projeto
profissional e projeto societário.
Na área da violência contra a mulher o que está em jogo é a Defesa intransigente
dos direitos humanos das mulheres; a opção por um projeto profissional vinculado ao
processo de construção de uma nova ordem societária, sem dominação-exploração de
classe, etnia e gênero; e o empenho na eliminação de todas as formas de preconceito,
incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente
discriminados e à discussão das diferenças, princípios defendidos pelo código atual
(CFESS, Código de Ética Profissional do Assistente Social, 1993).
Esses princípios se constituem em orientações fundamentais para o exercício, em
que a sua incorporação tem suscitado novos posicionamentos profissionais capazes de
interferir na vida cotidiana das mulheres atendidas pelo Serviço Social.
Contudo, aqueles valores adquirem um caráter abstrato no capitalismo, que torna
impossível a plena efetivação daqueles princípios. A dominação de gênero é
aprofundada e consolidada no interior da sociedade capitalista, donde a discriminação
dispensada à mulher serve ao sistema de dominação capitalista. Por exemplo, foi com o
aparecimento da propriedade privada que a Mulher ficou subordinada aos homens no
seio da família. (Moraes, 2000).
Mas, considerando que os homens e as mulheres fazem a história sob
determinadas condições, a trajetória histórica das lutas feministas nos tem demonstrado
que existem possibilidades para a conquista de novos direitos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BANDEIRA, L. M. Feminismo: Memória e História. In: SALES, C.M.V. et. AI. (Orgs).
Feminismo: Memória e História. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2000, p. 14-41.
BARROCO Maria Lúcia S. Ontologia Social e Reflexão Ética. São Paulo, 1996. Tese.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
_________. Os Fundamentos sócio-históricos da Ética. In: Capacitação em Política
Social e Serviço Social. Módulo I. Brasília: CEAD, 1999.
_________. Ética e Sociedade. Curso de Capacitação Ética para Agentes
Multiplicadores. Projeto Ética em Movimento. CFESS: Brasília, 2000.
_________. Ética e Serviço Social – Fundamentos Ontológicos. São Paulo: Cortez,
2001.
BONETTI, D. A. et al.(Orgs.) Serviço Social e Ética: Convite a uma nova práxis. 2a
ed. São Paulo: Cortez/CFESS, 1998.
BRANDÃO, E. R. Violência conjugal e o recurso feminino à polícia. In: Horizontes
plurais novos estudos de gênero no Brasil. São Paulo: FCC/ Ed. 34, 1998.
BRASIL. Relatório do I Encontro Nacional de Delegadas lotadas em Delegacias de
Defesa da Mulher. Brasília-DF: Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, 1986.
_________. Pesquisa Nacional sobre as condições de funcionamento das Delegacias
Especializadas no Atendimento às Mulheres. Brasília: CNDM/SNSP, 2002. Disponível
em: < http://www.mj.gov.br.
BRITES, C.M. & BARROCO, M.L.S, A centralidade da Ética na Formação
Profissional. Temporalis. Revista da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em
Serviço Social - ABEPSS. Brasília: ABEPSS, ano I, nº 2, p. 19-33, jul./dez. 2000.
CALDERÓN, A.I. & GUIMARÃES, R.F. Família: a crise de um modelo hegemônico.
Revista Serviço Social e Sociedade. São Paulo: Cortez, nº 46, ano XV, p. 05-20, dez.
1994.
CFESS (Conselho Federal de Serviço Social). Código de Ética Profissional do
Assistente Social, 1993.
CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. 12a ed. São Paulo: Ática, 2001.
IAMAMOTO, M. V. Renovação e Conservadorismo no Serviço Social. 2a edição. São
Paulo: Cortez, 1994.
_________. O Serviço Social na Contemporaneidade: trabalho e formação
profissional. São Paulo: Cortez, 1998.
INÁCIO, Miriam de O. A competência ética do (a) Assistente Social: mera formalidade
ou expressão do compromisso com a cidadania? In: Caderno de Comunicações 10°
Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, Rio de janeiro, 2001.
_________. Ação ético-política do Serviço Social frente à violência de gênero: um
estudo a partir das Delegacias da Mulher. Projeto de Pesquisa. Recife (PE): Pósgraduação em Serviço Social, curso de Mestrado, Universidade Federal de Pernambuco,
março, 2002.
JOSÉ FILHO, M. Algumas considerações sobre o tema família. Construindo o Serviço
Social. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos da Faculdade de Serviço Social
de Bauru. São Paulo, nº 07, p. 59-86, jun. 2000.
MACHADO, L.Z. Eficácia e Desafios das DEAM's: o futuro dos direitos à não
violência. Brasília: CNDM/SNSP, 2002. Disponível em: <http://www.mj.gov.
MARTINELLI, Maria Lúcia. O Serviço Social na transição para o próximo milênio:
desafios e perspectivas. Revista Serviço Social e Sociedade. São Paulo: Cortez, nº 57,
ano XIX, p.133-148, jul.1998.
MIOTO, R.C.T. Família e Serviço Social - contribuições para o debate. Revista Serviço
Social e Sociedade. São Paulo: Cortez, Nº 55, p. 114-130, ano XVIII, novo 1997.
MORAES FILHO, E. (Org.). Comte. 3ªed. São Paulo: Ática, 1989. (Coleção Grandes
Cientistas Sociais)
PAIVA, B. A & SALES, M.A. A Nova Ética Profissional: Práxis e Princípios. In:
Bonetti, D. A et. AI. (orgs.). Serviço Social e Ética: Convite a uma nova práxis. 2°
edição. São Paulo: Cortez, 1998, p.174-208.
___________. Et. AI. Reformulação do Código de Ética: Pressupostos históricos,
teóricos e políticos. In: Bonetti, D. A et. AI. (orgs.). Serviço Social e Ética: Convite a
uma nova práxis. 2° edição. São Paulo: Cortez, 1998, p.159-173.
NETTO, José Paulo. A construção do projeto ético-político do Serviço Social frente à
crise contemporânea. In: Capacitação em Serviço Social e Política Social. Módulo
I.Brasília: CFESS, ABEPSS, CEAD, UnB, 1999.
___________. Transformações societárias e Serviço Social – notas para uma análise
prospectiva da profissão no Brasil. Revista Serviço Social e Sociedade. São Paulo:
Cortez, nº 50, 1996.
RIOS, T. A. Ética e Competência. 11ª ed. São Paulo: Cortez, 2001. (Coleção Questões
da Nossa Época, v.16).
RODRIGUES, M. T. Serviço Social, Gênero e Violência. CONGRESSO
BRASILEIRO DE ASSISTENTES SOCIAIS, 9,20-24 jul. 1998, p.256-259.
SAFFIOTI, H.I.B. Rearticulando Gênero e Classe Social. In: COSTA, A. O. &
BRUSCHINI, C. (Orgs.) Uma questão de Gênero. Rio de Janeiro (RJ): Rosa dos
Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992.
___________. Já se mete a colher em briga de marido e mulher. São Paulo em
Perspectiva: Revista da Fundação SEADE. São Paulo, V. 13, nº 04, p.82-91, out. /dez.
1999.
SANTANA, Raquel. A efetivação do projeto ético-político do Serviço Social. Revista
Serviço Social e Sociedade. São Paulo: Cortez, nº 62, ano XXI, mar. 2000.
SCOTI, J. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Trad.Christine Rufino
D'abat e Maria Betânia Ávila. Recife: Edições SOS Corpo, 1993.
SILVA, K.C. As DEAM's, as corporações policiais e a violência contra as mulheres:
representações, dilemas e desafios. Brasília: CNDM/SNSP, 2002. Disponível em:
<http: //www.mj.gov.
SILVA, Marlise Vinagre. Violência contra a mulher: quem mete a colher? .São
Paulo: Cortez, 1992.
Ética em movimento: ' uma experiência
de pesquisa na atuação ético-política
do(a) Assistente Social
Cyntia Raquel V. Medeiros
Flávia Franca de Carvalho
Marina Guimarães Gondim
Nicoly Danielle Neves
Rauliana Karina Sales
O conceito de ética no momento está passando por um processo de
popularização, utilizado aleatoriamente no cotidiano do cidadão comum. Fala-se em
ética em filas de banco, em bares, nas conversas informais entre amigos e em outros
espaços de convivência social. No entanto, são nos espaços de atuação dos profissionais
que a ética ocupa um locus original, mesmo quando esta não é falada e nem discutida,
pressupõe-se que os profissionais, principalmente os de nível superior, encarem um
comportamento ético, assumindo valores que coincidam ou se contraponham às normas
institucionais, à sua categoria profissional e à moral social vigente, que é determinada e
construída historicamente.
Nos dias de hoje, podemos exemplificar estes valores culturais no âmbito
profissional, como um simples cumprimento de horários, respeito ao trabalho do outro,
postura honesta diante das requisições institucionais, atendimento qualificado aos seus
usuários, clientes, pacientes e etc.
A escolha deste tipo de procedimento não é apenas casual, mas cultural, pois, a
ideologia hegemônica da classe burguesa determina os valores morais para a sociedade.
Estes valores embasam um posicionamento político, que pode ser limitado à ação
profissional, não atingindo diretamente as causas dos problemas sociais.
Segundo Chauí, "Não se pode pensar na ação ética sem pensá-la como uma
ação política. Por que na medida em que a ação do sujeito entra em contradição ou'
em conflito com a moralidade universal e abstrata da sua sociedade, a ação que ele
realiza ou é de conformismo ou de contraposição a isto (...)" (2000: 51).
E dentro desta perspectiva que se coloca o "Projeto Ética em Movimento",
desenvolvido pelo CFESS em articulação com os CRESS. Seu maior objetivo é desfazer
a noção de restrição do debate ético ao Código de Ética Profissional. Uma oportunidade

Alunas do 9° período do Curso de Serviço Social da UFPE e membros do GEPE
de "desengavetar" nossos princípios ético-políticos, dando-lhes vida tanto no campo
profissional como no social. Constitui-se, entre outros, um dos eixos principais do
projeto dar visibilidade social à ética profissional, ou seja, analisar posicionamentos
ético-políticos à luz dos princípios do Código de ética profissional, estabelecendo uma
relação com a ética e com a política. Conforme CFESS (1999) são eixos do projeto:
• Formação de Agentes Multiplicadores;
• Viabilizar política e juridicamente denúncias éticas;
• Publicizar posicionamentos ético-políticos públicos sobre ações de governo,
acontecimentos relacionados à ética na sociedade, em nível regional e nacional;
• Fortalecer a interlocação com organismos internacionais e nacionais na defesa dos
Direitos Humanos e Sociais;
• Sugerir um espaço fixo na Revista Inscrita para posicionamentos e denúncias éticas;
• Realizar uma pesquisa articulada com a ABEPSS e a ENESSO;
• Aprofundar o entendimento nacional no que diz respeito ao trabalho voluntário;
• Aprofundar o debate ético através da participação em encontros e publicações.
"Ética em movimento" é o mais recente projeto em que o GEPE - Grupo de
Estudos e Pesquisas sobre Ética - está envolvido, à medida que aquele tem a perspectiva
de fertilizar ao máximo as potencialidades do Código de Ética, enquanto um documento
estratégico, que possibilita explicitar as várias dimensões do projeto ético-político
profissional, ao assumir o compromisso com valores e princípios como liberdade,
democracia, justiça social e equidade. É assinalado um campo de possibilidades, que
extrapola deveres e direitos neles inscritos, portanto, suscita atitudes políticoprofissionais firmes, que denunciem criticamente os mecanismos de individualismo,
particularismo,
corrupção
e
desigualdades
intensificados
nesses
tempos
de
neoliberalismo.
A intenção desse projeto é reoxigenar o debate, aprofundando princípios éticopolíticos, fazendo-os sair do espaço restrito dos arquivos, pastas e gavetas. Na verdade,
trata-se de imprimir visibilidade profissional e social, dar vida, ou seja, movimento à
categoria ofertando-lhe a possibilidade de materializar uma concepção de ética mais
ampla que sua expressão legal. É, portanto, um projeto que visa resignificar/traduzir o
movimento da ética na realidade, abordando-o como uma mediação social viva e
dinâmica, tornando-a visível para a categoria e para a sociedade.
A implementação do projeto "Ética em Movimento" na Cidade do Recife – PE
suscitou
a
necessidade
de
realização
de
uma
pesquisa
articulando
CFESS/CRESS/UFPE/UNICAP, através da disciplina Ética Profissional. Esta pesquisa
tem como objetivo subsidiar a intervenção profissional, dando visibilidade ao processo
de aprofundamento, articulação e principalmente efetivação dos fundamentos
filosóficos da Ética à sua operacionalidade, no âmbito do exercício profissional. Tal
pesquisa contou com a participação de alunos da disciplina de Ética Profissional da
UNICAP e alunos da mesma disciplina do sétimo período de Serviço Social da UFPE68
e constituiu-se de várias etapas, dentre elas a definição das áreas de atuação
profissional; visita ao CRESS para identificar o universo institucional do campo de
atuação, e de assistentes sociais (identificamos 127 instituições totalizando 964
assistentes sociais); elaboração de questionários com perguntas abertas e fechadas;
divisão das instituições entre as equipes (foram utilizadas para amostragem 50% + 1 do
total de instituições)
Na UFPE, a metodologia utilizada foi a divisão da sala em subgrupos cujos
coordenadores são membros do GEPE; e que têm como atribuições participar
efetivamente de todas as fases do presente projeto e, principalmente, orientar os
subgrupos, que foram divididos em áreas de interesses dos alunos: Saúde, Assistência e
Previdência, Empresa e Diversos (ONG's, Consultarias, e Entidades Governamentais).
Como recursos de pesquisa, foram utilizadas análise documental69 e em seguida
a elaboração de um Roteiro de Entrevista com as Assistentes Sociais. A implementação
da pesquisa foi precedida de um pré-teste do respectivo roteiro, que subsidiou a
realização da pesquisa de campo, a partir de visitas às instituições selecionadas.
1.
A Ética no Cotidiano do (a) Assistente Social
O cenário dos anos 90 no Brasil é caracterizado pela vigência do neoliberalismo:
o "ajuste neoliberal" é posto como estratégia de saída da crise do Estado e do
capitalismo no país, após o que se convencionou chamar de "década perdida", ou seja,
os anos 80. O "ajuste neoliberal" é caracterizado, principalmente por uma economia
centrada na abertura comercial e pelo impulso no processo de privatização,
68
Coordenadores gerais: Profª. Maria Alexandra Monteiro Mustafá e Profª. Edistia Maria Abath, e
coordenadores de subgrupos em sala de aula: Cyntia Raquel, Marina Gondim, Nicoly Neves e Rauliana
Sales.
69
Na primeira fase da pesquisa documental foi realizada visita ao CRESS que teve o objetivo de levantar
a alocação de todos os profissionais de Serviço Social por área de atuação cadastrados no CRESS.
desregulamentação e flexibilização das relações trabalhistas, contenção de gastos
públicos, entre outros.
Através das transformações advindas com o projeto político da globalização e
com a política neoliberal, em especial a contenção de gastos públicos, percebe-se a falsa
imagem de "garantir benefícios" para a população. Ao contrário do que se anuncia, há
um descomprometimento do Estado com as políticas sociais, sendo esses fatores
entendidos como agudizadores das desigualdades sociais.
Diante dessa contextualização, o Serviço Social enquanto profissão mediadora
entre o fogo cruzado de interesses tensionados pela luta de classes entre a burguesia e a
classe trabalhadora, busca posicionar-se nu ma postura de confronto ao projeto
societário hoje hegemônico, na defesa de uma nova ordem sem dominação e exploração
das classes, gênero e etnia, na superação do autoritarismo e do preconceito através da
defesa dos direitos humanos e do pluralismo.
A prática profissional do Assistente Social pode, numa articulação com um
projeto societário mais amplo, ser um elemento de criação de condições para
viabilização da participação social, com intuito de garantir a efetivação dos direitos
sociais conquistados. Dentro de uma perspectiva contraditória, observa-se que ao
mesmo tempo em que a população se defronta com o individualismo, a corrupção, a
hipocrisia, o dito "jeitinho brasileiro", a conjuntura abre espaço para a discussão de
tendências éticas, de valores que norteiem o profissional para um enfrentamento
consciente das manifestações da questão social.
Faz-se necessário elucidar que o fio condutor da transformação social deve estar
respaldado por princípios éticos, e que esta reflexão ética pode e deve envolver todos os
setores da sociedade e não se constituir apenas como iniciativa dos profissionais de
Serviço Social. Atualmente, essa reflexão, ainda embrionária, gira em torno de eixos
como a crise social e a do sistema do trabalho. Vale ressaltar que o debate ético
proposto, ao contrário do que preconiza a ideologia neoliberal, não se pauta em
interesses pessoais, mas na busca de uma sociedade emancipada. Logo, a ética torna-se
um instrumento de resistência da realidade posta, na medida em que permite uma
"revisão radical da vida humana, pessoal e coletiva" (Oliveira, 1993: 29), uma vez que
ela tem a ver com as atitudes assumidas pelos homens diante da realidade.
É no contexto dessa problemática, exposta anteriormente, que realizamos a
pesquisa do projeto "Ética em Movimento" e é também sobre ela que pautamos a
análise dos dados coletados. Num primeiro momento, interrogamos os (as) Assistentes
Sociais sobre a sua compreensão sobre a conjuntura e suas determinações no tocante à
dimensão ética. A maior parte desses profissionais analisou a conjuntura atual como um
período anti-ético. Acreditam, no entanto, que existem fatos marcantes que demonstram
que setores da sociedade procuram se conscientizar dos problemas que enfrentamos. Tal
constatação pode ser observada no depoimento da Assistente Social conforme explicita
o trecho que segue:
"(...) a situação está tão grave e fora de controle que algumas
parcelas da sociedade já começam a levantar a bandeira de um
agir ético, defendendo uma sociedade mais justa e com respeito
aos direitos individuais e coletivos".
A ordem econômica L1ueimpera no Brasil gera distâncias sociais cada vez mais
brutais e o Assistente Social encontra dificuldades para fazer valer os direitos sociais e
políticas sociais. É partindo desse pressuposto que identificamos durante a pesquisa,
relatos de algumas profissionais afirmando categoricamente: "a realidade influencia
cada vez mais uma postura anti-ética dos profissionais".
O projeto societário hegemônico diverge completamente do projeto éticopolítico profissional. Apesar de todos esses fatos, há um dado marcante: foi muito
reduzido o número de Assistentes Sociais que identificou a ética como um mecanismo
de mudança. Há ainda relatos que apontam para uma "banalização" da ética no
cotidiano profissional e social:
"(...) pelo que temos visto e sabido, a ética não é hoje uma
palavra que faz parte do vocabulário no seu verdadeiro sentido.
Vejo ser muito usada com certa banalidade para encobrir erros
e justificar a falta de atitude diante dos fatos".
A partir da compreensão acerca da ética no exercício das profissões, de acordo
com as considerações feitas sobre a conjuntura atual, a maior parte das entrevistadas
indicou que a ética se constitui como um paradigma e é também imprescindível para o
exercício profissional:
"A ética é fundamental no exercício profissional, pois ela dá
uma orientação, uma regulamentação à profissão (...)"
(Assistente social da área de Empresas)
Quando Reis coloca que "o projeto ético-político profissional (...) tem uma
determinada direção social que envolve valores, compromissos sociais e princípios que
estão em permanente discussão exatamente porque é participante do movimento vivo e
contraditório das classes na sociedade (...)” (2001: 393), vemos que, como bem nos
situa um depoimento de um profissional da área de Organizações Não-Governamentais:
"A questão da ética no exercício da profissão não pode ser vista
como projeto individual, mas um projeto societário, levando em
consideração o nosso código que é voltado para a sociedade".
Todo profissional tem seu Código de Ética com princípios, valores e normas que
norteiam a prática profissional. Na pesquisa do "Ética em Movimento", um dos
depoimentos da área de Saúde destaca:
"(...) é através dela (ética) que o profissional norteia suas ações e
relações com os usuários, com os colegas de profissão, com as
instituições em que trabalha (...)".
Além dos princípios e normas profissionais, também os valores pessoais de cada
indivíduo contribuem para o exercício das profissões; pois cada pessoa tem seus
próprios valores morais; tem seus valores éticos. É o que nos ressalta um depoimento
feito por um(a) profissional da área de Assistência e Previdência Social:
"A questão da ética no exercício profissional está diretamente
ligada com formas de refletir e agir dos indivíduos".
A ética está presente nas relações sociais de uma maneira geral, isso é colocado
numa entrevista da área de Saúde, na qual o (a) profissional diz que é preciso conhecer a
ética "na organização da vida em sociedade, nas relações sociais, nos indivíduos
consigo mesmos e nas relações entre si".
Identificou-se, também, que na realidade social existe uma postura anti-ética
devido às condições de trabalho dos profissionais. É o que nos lembra um (a) assistente
social da área de Organizações Não-Governamentais que afirma: "todas as profissões
estão vulneráveis a essa crise de valores. Se o poder, a competição, o 'levar vantagem'
estão permeando muitas condutas, as pessoas podem deixar em segundo plano os
valores norteadores, quando estes oferecem obstáculos a seus interesses. (...)", ou ainda
um (a) Assistente Social da área de Assistência e Previdência Social, que afirma: "nem
sempre a ética é respeitada no exercício das profissões. Na conjuntura atual, algumas
estratégias de ação são conflituosas, principalmente em instituições. Por vezes, a
burocracia atrapalha os serviços, a política social é limitada restringindo o público
(...)".
Como sabemos, a profissão está inserida na divisão social do trabalho, em que
nós, Assistentes Sociais, somos solicitados (as) a buscar formas de enfrentamento da
questão social dentro do atual sistema em que vivemos.
Frente à atual conjuntura, o Serviço Social tem que assumir uma postura crítica
da realidade, incorporando uma dimensão ético-política que se efetive em sua prática
profissional; visto que o (a) profissional tem valores e princípios éticos que norteiam
sua prática e sua condição enquanto indivíduo.
Os objetivos propostos pela maioria das instituições se encontram mediados por
uma política que tem como principal conseqüência/ resposta a não garantia da
efetivação dos princípios do Código de Ética do Serviço Social. Tal fato se concretiza
devido ao projeto societário vigente, que se traduz em uma ameaça aos princípios éticos
como: Liberdade, Democracia, Cidadania, Direitos Humanos entre outros. Desta forma,
os objetivos institucionais se encontram distantes de uma compatibilidade com os
princípios do Código de Ética Profissional.
“(...) a prática na área hospitalar na visão institucional requer
uma disciplina imposta aos usuários que muitas vezes fere
direitos e liberdades individuais. Além disso, as autoridades,
chefe da instituição, muitas vezes, têm valores incompatíveis
com os princípios éticos do Serviço Social"(Assistente Social da
área de Saúde).
Entretanto, mesmo diante desta realidade, existem profissionais do Serviço
Social que acreditam nesta compatibilidade, sem fazer a devida leitura crítica das
condições contraditórias e discriminatórias vivenciadas pelos usuários:
"A instituição (...) garante aos pacientes atendidos, através do
SUS ou por convênios privados, um atendimento completo, sem
distinção na qualidade do serviço" (Profissional da área de
Saúde).
Torna-se difícil observar tal posicionamento, pois as instituições são inerentes ao
sistema capitalista, cuja lógica é intrinsecamente anti-ética, e dita normas a serem
seguidas que dificultam a realização de ações norteadas plenamente pela ética.
Sabemos que, historicamente, o Código de Ética, sofreu várias reformulações já
que os princípios e valores que norteiam a profissão se modificam também
historicamente. Dessa forma, a importância desse documento, é descrita no depoimento
que se segue:
"É fundamental o Código de Ética porque o mesmo dá diretriz
no meu fazer profissional, funcionando como um parâmetro e
auxiliando-me no enfrentamento dos obstáculos com os quais
me deparo nó cotidiano profissional" (Assistente Social de
Empresa).
Neste contexto, podemos nos valer também da definição de Paiva que afirma:
"O Código de Ética pode ser explicitado para além de um instrumento legitimo, como
normas que garantem respaldo à prática profissional, ou seja, direitos, deveres, limites,
mas também como um instrumento privilegiado que permite à profissão expressar sua
identidade ético-política à sociedade". (Paiva e Sales, 1997:173). Neste sentido, o
Código não contém apenas medidas repressivas, mas, sobretudo, recursos inspiradores
em condutas e valores como os de democracia, eqüidade, justiça, cidadania e liberdade
entre outros, os quais, devem dar fundamentos para a prática cotidiana do profissional.
Diante do exposto, o desafio que se impõe ao Assistente Social é o da
materialização dos princípios norteadores do seu Código no cotidiano profissional, seja
nas Empresas, na área da Saúde, nas Entidades Governamentais e Não Governamentais
ou em, qualquer âmbito da prática do Assistente Social. O Código de Ética não deve ser
visto como algo abstrato, sem ligação com o processo social como demonstra o
depoimento que segue:
"É possível se implementar, efetivar o código de Ética
profissional, na medida em que os profissionais estejam atentos
a seus preceitos e se esforcem para concretizá-Ios. Não apenas
o engavetem, mas façam uso dele". (Assistente Social de uma
Organização não governamental).
Assim, a ética, que permeia o cotidiano profissional do assistente social, deve
estar integrada ao produto final de sua prática. Desse modo, cabe ao profissional
reconstruir as mediações, e buscar, com base no projeto ético-político profissional,
desenvolver iniciativas que aproximem sua prática das necessidades reais dos usuários e
fazer concretizar, dentro de sua atuação, os princípios norteadores de seu Código.
No que se refere à possibilidade de implementar os princípios no exercício
profissional, detectamos com os dados de nossa pesquisa, uma diversidade de
posicionamento entre os profissionais. No entanto, predominaram aspectos positivos
relacionados a isto, como expressa a citação a seguir:
"É uma questão de escolha: conduta pautada por conveniências
pessoais ou convicção? (Assistente Social de uma ONG de
Recife).
A indagação desta profissional, que contribuiu com a nossa pesquisa, é bastante
provocativa, impulsionando todos nós a uma ação reflexiva sobre a postura ética do (a)
Assistente Social no campo de trabalho, seja em ONG' s, instituições públicas ou
privadas.
A grande maioria das entrevistadas, responderam que há possibilidades de
implementar os princípios do Código de Ética da profissão em suas práticas cotidianas
no trabalho, a partir do momento que assumem um compromisso com diversos
segmentos da classe subalterna, contribuindo para ampliar sua cidadania através dos
serviços prestados com qualidade.
Esta postura ética do (a) profissional não pode ser isolada. Ela depende de vários
fatores que contribuem para sua efetivação, como a flexibilização dos posicionamentos
institucionais; condições de trabalho favoráveis para o desenvolvimento de sua função;
interdisciplinaridade; recursos suficientes para responder às demandas vigentes e a sua
própria construção moral e ética de vida, firmadas em convicções ideológicas e de
valores que possam pronunciar uma iniciativa de ruptura com a burocratização das
atividades.
Segundo relato de uma Assistente Social da área de saúde pública:
"trabalhamos em uma equipe multidisciplinar, garantindo ao
usuário o direito ao tratamento médico, visando à saúde a todos
que procuram o serviço com diagnóstico. Inclusive, oferecendo
todo o serviço social aos familiares, visando garantir o
tratamento sem interrupções".
A ética no dia-a-dia do Assistente Social, apesar de ser pontual, pode suscitar
novas possibilidades para os usuários terem acesso aos serviços no espaço institucional,
criando uma relação dinâmica interativa entre o profissional, os diversos setores da
instituição e o próprio usuário. Este tipo de prática sugere que os princípios estejam nas
"entrelinhas" da ação técnica e operativa do profissional; tendo como teleologia a
apropriação e implementação dos direitos sociais por parte dos usuários dos serviços,
como mediação para uma sociedade livre e emancipada.
Esta visão da postura ética delimitada ao âmbito institucional nos leva a fazer
alguns questionamentos. O que implica ser ético? Basta apenas adotar convicções
baseadas em valores e ideologias materializadas em uma determinada ação? E, quando
as condições materiais objetivas das instituições não proporcionam recursos suficientes
para atender suas demandas sociais, esta realidade pode influenciar na atitude e
posicionamento éticos do (a) profissional?
Se considerarmos a política social e econômica da nossa sociedade que corta
recursos para investimentos na área social, podemos perceber uma delimitação concreta
dos direitos constitucionais, como também, a falência e sucateamento e privatização das
instituições públicas; a terceirização que precariza os serviços e desqualifica os
trabalhadores; o aumento da miséria e a seletividade dos "mais pobres" para terem
acesso às políticas sociais imediatistas, focalizadas e compensatórias, destituindo o
usuário de sua condição humana cidadã para um estereótipo de "necessitado ou
miserável". A universalidade dos direitos que estão na lei cede lugar a uma realidade
excludente e seletiva.
"No nível de uma universalidade ética abstrata, pressupõe-se a
existência de um sujeito racional, consciente, livre e
responsável que é capaz de se auto-determinar para a ação. Só
que isso é abstrato, porque esse sujeito é social e histórico e,
portanto, ele vive em condições materiais determinadas. E ele
vive em uma sociedade de classes e que propõe, sob a forma de
uma moral universal, evidentemente uma ideologia de classes
como se fosse uma universalidade ética. Isto significa, portanto,
que o simples fato de nós determinarmos as condições pelas
quais nós podemos falar numa ação ética, não significa que a
realização dessas condições é imediata. Pelo contrário (...) esse
obstáculo à ação ética é justamente a ideologia moral
estabelecida pela própria sociedade". (Chauí: 2000, 51)
A prática cotidiana do (a) Assistente Social pode ter uma direção fundamentada
nos princípios éticos, mas esta ação está limitada pela realidade que apresenta uma
ideologia hegemônica.
1.2. Principais questionamentos do "Ética em Movimento"
No decorrer da análise dos dados da pesquisa do "Ética em Movimento"
defrontamo-nos com situações que perpassam o dia-a-dia do (a) assistente social
demandando uma atenção especial, tais como: perda da auto-estima e desmotivação
profissional; dificuldade do profissional em definir seu papel na sociedade e na
instituição onde trabalha; desinformação sobre o Código de Ética Profissional;
refuncionalização; perda de espaços profissionais historicamente garantidos.
Diante disto, percebemos a necessidade de não só divulgar os instrumentos
legais da profissão, mas também trazer à tona o grau de compreensão e utilização destes
instrumentos, no que se refere à articulação dos princípios do Código de Ética ao seu
cotidiano profissional.
Na apreensão sobre o código e seus princípios, este é visto, na maioria das vezes,
como um instrumento formal e normativo do exercício pro1fissional, como regulador
dos direitos e deveres profissionais, dissociado, portanto, da ética vista como algo
abrangente, mais ligada às grandes questões nacionais. Percebe-se um distanciamento
entre os princípios e valores profissionais e as demandas sociais; por vezes separa-se os
princípios da profissão e sua postura enquanto cidadão.
Alguns vinculam o projeto profissional somente ao Código de Ética, limitandose em apenas apresentar uma postura moral e ética que coincidam com as normas da sua
instituição de trabalho, ressaltando que muitas dessas' normas estão adequadas ao
sistema vigente, trazendo conseqüências tanto para os usuários dos serviços no que diz
respeito à não conquista de seus direitos ou à apreensão destes de forma parcial, como
para o Assistente Social, que direciona sua práxis fundamentada no conservadorismo e
muitas vezes sem "consciência" desta prática, vivendo uma postura "ética" ilusória que
não está aliada às classes subalternas. Como afirma Netto, "os elementos éticos de um
projeto profissional não se limitam a normatizações morais e/ou prescrições de direitos
e deveres, mas envolvem ainda as escolhas teóricas, ideológicas e políticas das
categorias e dos profissionais" (2000: 99).
Pressupõe-se que esta questão abarca a necessidade de sobrevivência do próprio
profissional que está inserido na divisão social e técnica do trabalho e pela precariedade
e insuficiência do mercado de trabalho que não absorve a demanda de profissionais
existentes.
A historicidade de um projeto de ruptura da categoria a partir do movimento de
Reconceituação entra em conflito com o neoconservadorismo, que propõe destituir o
sujeito de sua luta, resistência e militância para um simples "emprego" e que este lhe
seja um meio de sobrevivência. Há riscos em tencionar o sistema capitalista e um deles
é o desemprego.
Além disso, as exigências impostas para formar o perfil do (a) Assistente Social
nos dias de hoje, como a polivalência em funções, especializações, conhecimento de
língua estrangeira, dentre outros não estão ao alcance de muitos destes profissionais que
não têm recursos para 'vislumbrar este espaço de conhecimento e se qualificarem para
responder satisfatoriamente as suas requisições, formando assim uma "elite" intelectual
à parte que tem acesso a estes bens e conhecimentos. "Os projetos profissionais também
são estruturas dinâmicas, respondendo as alterações no sistema de necessidades sociais
sobre o qual a profissão opera, às transformações econômicas, históricas e culturais ao
desenvolvimento teórico e prático da própria profissão (. ..) Os projetos profissionais se
renovam, se modificam ( Netto:2000, 95).
No que se refere à relação do (a) assistente social com os usuários, destacam-se
o compromisso e o respeito pelos interesses destes; democratização das informações;
"neutralidade profissional", relação de confiança, de transparência, a necessidade de
atualização profissional; a luta e defesa pela garantia dos direitos sociais.
Houve uma ênfase na necessidade de incentivar à participação e à capacitação
dos profissionais, bem como a valorização destes nas entidades representativas de sua
categoria. É nesse sentido, que surgem novas demandas como desafios para as entidades
representativas da profissão, em particular o CRESS, como: atualização das
informações do banco de dados; maior articulação do CRESS com os profissionais da
área, e com os alunos da academia acerca dos eventos, cursos, informações.
Tendo em vista a compreensão de que o projeto ético-político profissional é uma
construção histórica e, como tal, necessita de esforços no sentido de sua consolidação
profissional e social no âmbito da luta pela hegemonia, uma das inquietações da nossa
categoria profissional é como podemos vincular um projeto ético-político de uma
profissão a um novo projeto societário que possibilite a emancipação humana, se há
disparidade entre a realidade sócio político, cultural e econômica na nossa sociedade
classista?
Ainda não existem respostas precisas para este questionamento, mas já há um
processo de construção de idéias que respalda a importância do projeto ético-político
profissional como instrumento de questionamento à lógica do capital.
A pesquisa sobre o "Ética em Movimento" realizada em Recife como já vimos,
proporcionou o levantamento de alguns dados referentes à ação profissional do
Assistente Social em diversos setores institucionais, possibilitando uma reflexão sobre o
trabalho cotidiano destes profissionais e seu discurso sobre o Projeto ético-político da
categoria.
Para a contestação de um projeto societário hegemônico é necessário que
existam categorias profissionais voltadas para a defesa dos interesses das classes
subalternas. Apesar da realidade determinar o exercício das profissões, estas não devem
se conformar, mas se organizarem enquanto categorias. "A sociedade não é uma
entidade de natureza teleológica, isto é, não têm objetivos e finalidades; ela tem
apenas, uma existência em si, puramente factual (...)Mas, as ações humanas agem
teleologicamente e sempre são orientadas para objetivos, metas e fins" (Netto: 2000,
93)
O projeto profissional, que é heterogêneo, apresenta no âmbito da categoria,
projetos individuais e coletivos, que podem ser conservadores ou de ruptura com a
ordem, sendo este último fundamentado na democracia e na perspectiva da
universalização de direitos. Isto possibilita, aos profissionais, criarem alternativas para
contribuir para a construção de uma nova ordem social, através da investigação da
realidade e da proposição de caminhos que ultrapassem os serviços institucionais para
uma resposta que possua significados mais humanos aos usuários, despertando-os para a
realidade.
Sendo assim, vislumbramos a ética como mediação presente na intencionalidade
profissional e no produto final da ação, o que supõe uma compreensão profunda acerca
do significado dos valores éticos da sociedade e da profissão, de suas contradições e
dinâmica própria, de sua relação com a política e com a teoria social, de sua inserção no
projeto político profissional e nos projetos societários, de sua relação com a qualidade
dos serviços prestados e com a direção social do trabalho profissional.
Como o projeto ético-político do Serviço Social é posicionado contra o projeto
neoliberal, existem obstáculos na implementação desse projeto profissional e "é
evidente que a manutenção e o aprofundamento desse projeto, em condições que
parecem tão adversas, depende da vontade majoritária da categoria profissional, mas
não só dela: depende também do revigoramento do movimento democrático e popular"
(Netto: 1999,107).
No entanto, apesar dos obstáculos, os (as) Assistentes Sociais, principalmente,
não devem desistir da luta a favor de uma sociedade emancipada, mas sim dar
continuidade à luta anti-capitalista, direcionando-a ao "( ... ) combate (ético, teórico,
político e prático-social ao neoliberalismo" (Netto: 1999, 107), objetivando a
preservação e a concretização dos valores e princípios contidos no projeto ético-político
da profissão.
1.3 Bibliografia
ABATH, Edistia Maria. Articulação entre fundamentos filosóficos e códigos de ética
profissional em Serviço Social. In: MUSTAFÁ, Alexandra Monteiro (org.). Presença Ética.
Recife, PE: UNIPRESS Gráfica e Editora do NE Ltda, 2001 p.17-32.
BARROCO, M. L. S, Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos, São Paulo: Cortez,
200l.
CFESS. Relatório do XXVIII Encontro Nacional CFESS/CRESS, 1999.
CHAUÍ, Marilena. Uma Filosofia da Liberdade. In: CULT- Revista Brasileira de Literatura Ano III/Junho 2002, pg. 51 a 53.
MUSTAFÁ, Alexandra. Possíveis interpretações dos princípios éticos do Serviço Social a
partir da análise das tendências éticas contemporâneas. In Presença Ética. Recife:
UNIPRESS, 2001.
NETTO, José Paulo. A construção do projeto ético-político do Serviço Social frente à crise
contemporânea. In: Capacitação em Serviço Social e Política. Brasília: UNB, Centro de
Educação aberta continuada à distância, 2000.
OLIVEIRA, Manfredo Araújo. Os desafios éticos e políticos da sociedade brasileira. In:
Revista Serviço Social e Sociedade. São Paulo: Cortez, 1998, ano XIX, nº 56 p.23-33.
_________. Ética e Sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993 (Coleção Filosofia, 28).
_________. Ética e Racionalidade Moderna. São Paulo: Loyola, 1993. (Coleção Filosofia,
28).
PAIVA, B.A. e SALES, M.A. "A nova ética profissional: práxis e princípios". In: BONETII,
D.A. et aI. (orgs.). Serviço Social e ética: convite a uma nova práxis, 4a edição. São Paulo:
Cortez, 1997.
REIS, Marcelo Braz Moraes dos. Notas sobre o projeto Ético- Político do Serviço Social. In:
Coletânea de Leis e Resoluções. Assistente Social: Ética e direitos. CRESS -7ª Região RJ Rio de Janeiro Outubro/2001.