revisão Transtornos de humor em pacientes com epilepsia: por que ocorrem e por que pode ser difícil reconhecer e tratar? revisão Transtornos de humor em pacientes com epilepsia: por que ocorrem e por que pode ser difícil reconhecer e tratar? Mood disorders in epileptic patients: why it happens and why it could be so difficult to recognize and treat? Unitermos: depressão, ansiedade, epilepsia, transtornos de humor, disforia, temperamento, tratamento farmacológico. Uniterms: depression, anxiety, epilepsy, mood disorders, dysphoria, temper, pharmacological treatment. André Palmini* RESUMO - Por uma interação de fatores ligados às alterações elétricas, às privações sociocupacionais, ao efeito de fármacos antiepiléticos e à bagagem genética, provavelmente, no mínimo 20% a 30% dos pacientes com epilepsia apresentam comorbidade com transtornos de humor. Neurologistas e psiquiatras devem buscar um maior interesse nas comorbidades psiquiátricas das epilepsias, uma vez que a identificação e o tratamento destas alterações são fundamentais para a qualidade de vida destes pacientes. Neste sentido, é importante a atenção para a ocorrência de formas clássicas de transtornos de humor que preenchem os critérios estabelecidos pelo DSM-IV, mas também para formas atípicas, e propostas como relativamente específicas para pacientes com epilepsia. Em especial, esta revisão enfatiza as características e o manejo do transtorno disfórico interictal, caracterizado pela ocorrência intermitente de sintomas depressivo-somáticos alternados com ansiedade e irritabilidade explosiva. Esta entidade, ainda pouco identificada, provavelmente seja a alteração psiquiátrica mais comum em pacientes com epilepsia. INTRODUÇÃO Muitas vezes deixamos de diagnosticar e tratar pacientes com quadros relativamente bem estabelecidos. Existem várias razões para isso, mas duas delas são: (i) a ocorrência de comorbidades em relação a cujos diagnósticos e tratamentos não estamos plenamente capacitados e (ii) a apresentação relativamente atípica de uma doença. Um exemplo que incorpora estas duas razões é a questão do diagnóstico e tratamento de desordens depressivas e de ansiedade em pacientes com epilepsia. A maior parte dos estudos e revisões sobre as relações entre transtornos afetivos e epilepsia são publicados em revistas neurológicas, embora a formação atual dos neurologistas seja muito limitada em termos de diagnóstico e tratamento destes transtornos. Além disso, se considerarmos os riscos tanto da negligência do diagnóstico quanto do tratamento equivocado, tem-se um quadro bastante complicado, que leva pacientes com epilepsia e transtornos afetivos a sofrerem consequências indesejáveis. A primeira parte deste artigo atualiza os dados epidemiológicos dos transtornos afetivos em pacientes com epilepsia e discute suas prováveis causas. A seguir, ressalta-se algumas peculiaridades da apresentação clínica de quadros depressivos nestes pacientes que dificultam seu diagnóstico, uma vez que se afastam dos critérios estabelecidos pela DSM-IV. Nesta parte, revisita-se uma questão longamente debatida na Psiquiatria (ou na Neuropsiquiatria) qual seja a existência e especificidade de um transtorno do humor e dos afetos peculiares a pacientes com epilepsia(1). Este assim chamado ‘transtorno disfórico interictal’ se caracterizaria pela ocorrência intermitente de uma constelação de sintomas depressivo-somáticos e afetivos, alternando-se períodos ora de irritabilidade explosiva, ora de humor depressivo, com anergia, insônia e dores inespecíficas e, ainda, mesclando-se com períodos de medo, ansiedade e outros curtos períodos de euforia súbita. A intermitência desses sintomas e sua duração errática (e muitas vezes curtíssima) não preencheriam os critérios do * Professor Adjunto de Neurologia do Departamento de Medicina Interna, Divisão de Neurologia da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Diretor Científico do Programa de Cirurgia da Epilepsia de Porto Alegre, Hospital São Lucas da PUCRS. Endereço para correspondência: André Palmini - Serviço de Neurologia, Hospital São Lucas da PUCRS. Av. Ipiranga, 6.690 - CEP 90610-000 - Porto Alegre - RS Telefax: 55 (51) 3339-4936 - E-mail: [email protected] 3 Rev Bras Clin Terap 2007 Agosto 33(1) Transtornos de humor.p65 3 Preto 18/7/2007, 17:54 revisão Transtornos de humor em pacientes com epilepsia: por que ocorrem e por que pode ser difícil reconhecer e tratar? DSM-IV para transtorno de humor uni ou bipolar. Por fim, discutem-se aspectos do tratamento, em especial a pobreza de estratégias farmacológicas comprovadamente eficazes para manejar estes pacientes (apesar de uma coleção impressionante de relatos isolados)(1). O parágrafo a seguir conta uma breve história que neurologistas e psiquiatras devem conhecer, e que servirá de ponto de partida para o entendimento integrado de aspectos do cérebro e da mente na gênese de sintomas de alteração de humor e de ansiedade. Em 1999 um grupo de autores relatou o caso de uma mulher com 65 anos de idade e doença de Parkinson não mais responsiva aos tratamentos convencionais, que foi submetida à implantação de um eletrodo para estimulação cerebral profunda no núcleo subtalâmico (um núcleo diencefálico profundo, envolvido na circuitária do sistema motor subcortical). Ela nunca havia sofrido de depressão ou qualquer outra doença psiquiátrica. Um dos contatos deste eletrodo foi posicionado de forma equivocada e, assim, sua estimulação elétrica ativava “em cheio” neurônios da substantia nigra. Após sete minutos de estimulação contínua da substantia nigra a paciente começou a chorar e verbalizar sentimentos de tristeza, desesperança, culpa e ideação suicida passiva. Ela não sentia dor e estava plenamente consciente do que ocorria a sua volta. Noventa segundos após o final da estimulação, os sintomas de depressão desapareceram. Ela era capaz de recordar-se perfeitamente do que havia sentido e, por aproximadamente cinco minutos, parecia estar em um estado similar à hipomania. Episódios idênticos foram replicados em duas outras sessões de estimulação(2). Este episódio mostrou que a interferência elétrica com a fisiologia de circuitos cerebrais pode provocar sintomas depressivos. Assim, é quase inevitável que se extrapole estes achados para a epilepsia, a doença neurológica que, por excelência, provoca um aumento patológico e súbito da atividade elétrica em estruturas e circuitos cerebrais – e que pode gerar uma intensa ‘contra-resposta’ inibitória tanto local quanto difusamente(3,4). Isso não é novo, e a idéia de que alterações elétricas associadas à epilepsia podem causar manifestações psiquiátricas, em especial depressão, ansiedade e sintomas psicóticos, tem uma longa história ao longo do século XX(1,5). Entretanto, comprovações diretas de que tais alterações efetivamente levam a sintomas depressivos são escassas(6,7) e, assim, relatos como este no NEJM(2) renovam o interesse nas relações entre os quadros depressivos e a epilepsia. Apesar da tentação em se priorizarem as modificações na eletricidade cerebral como o mecanismo fundamental subjacente às relações entre quadros afetivos e epilepsia, o amplo leque de dificuldades psicossociais, o uso de medicamentos antiepiléticos e as características do temperamento destas pessoas com epilepsia também podem ser relevantes do ponto de vista etiológico. Estas interações são revisadas a seguir. PRIMEIRA PARTE: POR QUE OCORREM TRANSTORNOS AFETIVOS EM PACIENTES COM EPILEPSIA? Muitos estudos investigaram o ponto de partida, ou seja, a prevalência de transtornos afetivos em pacientes com epilepsia. Entretanto, como muito bem revisado recentemente(5), a maioria destes estudos tem ao menos uma de três dificuldades metodológicas: ou (a) analisam subpopulações específicas dentro do universo da epilepsia, como pacientes internados para investigação pré-cirúrgica ou pacientes com epilepsias de difícil controle e que consultam serviços especializados; ou (b) aplicam critérios diagnósticos de difícil comparação entre si; ou ainda (c) incluem de forma inconsistente pacientes com quadros clínicos que expressam a coexistência de elementos depressivos, ansiosos e de instabilidade das reações, melhor descritos como estados disfóricos. Este subgrupo em particular será detalhado na segunda parte deste artigo. Os números derivados destes estudos, com importantes variações e limitações metodológicas, são extremamente diferentes, mostrando índices de prevalência de transtornos afetivos em pacientes com epilepsia que variam de 19% a 80%(5). Ainda assim, mesmo segundo as estimativas mais conservadoras, um quinto dos indivíduos com epilepsia teriam comorbidade com transtornos afetivos(8). O que se analisa a seguir são os fatores que podem associar-se a estes transtornos. Como em outras áreas envolvendo a patologia das relações mente-cérebro, as bases etiológicas dos transtornos afetivos na epilepsia possivelmente envolvem a interação entre fatores biológicos e fatores ambientais ou psicossociais. Quatro aspectos devem ser revisados: 1) as variáveis ligadas às alterações elétricas cerebrais em si; 2) a interferência de fármacos antiepilépticos; 3) o impacto das limitações no andamento da vida, provocadas pelas crises e seu risco de recorrência inesperada; e 4) a bagagem genética de cada indivíduo, incluindo seu temperamento. É provável que o peso de cada uma destas possibilidades na gênese dos transtornos afetivos varie de indivíduo para indivíduo, o que recomenda cautela na atribuição de um ou outro fator como “a causa” do transtorno. 1. Variáveis ligadas às alterações elétricas, ou seja, à epilepsia As variáveis epiléticas que têm sido estudadas incluem o tipo de síndrome (etiologia do insulto, lesão associada, região cerebral envolvida), o tipo de crises, a lateralidade do foco, a idade de início das crises, a duração da epilepsia, a freqüência das crises e sua possibilidade de controle com fármacos(5). Merecem consideração cinco aspectos: 1a. Deve-se diferenciar sintomas afetivos periictais daqueles interictais Sintomas depressivos e outras alterações de humor podem 4 Rev Bras Clin Terap 2007 Agosto 33(1) Transtornos de humor.p65 4 Preto 18/7/2007, 17:54 revisão Transtornos de humor em pacientes com epilepsia: por que ocorrem e por que pode ser difícil reconhecer e tratar? ocorrer antes, durante e após crises epiléticas, reforçando o papel das descargas e das modificações elétricas delas decorrentes na gênese de transtornos afetivos – em uma linha não muito diferente daquela da paciente relatada acima(2). A partir de três dias antes de uma crise epilética alguns pacientes podem iniciar com alterações de humor, que se acentuam nas 24 horas imediatamente precedentes e perduram por alguns dias após a crise(9). Convida-se o leitor a especular sobre a associação entre estes pródromos afetivos e o ‘crescendo’ de alterações elétricas que têm sido demonstradas na mesma‘janela de tempo’ antes de uma crise epilética. A análise contínua, não linear, do EEG mostra um “crescendo” de atividade elétrica ao longo de vários dias, ‘desembocando’ na crise, por assim dizer. Alterações elétricas pré-ictais têm sido objeto de estudo na literatura sobre predição de crises, e estes incrementos progressivos de energia elétrica desafiam o conceito de crise epilética como um evento puramente paroxístico, mostrando que, na verdade, as crises são lentamente ‘construídas’ em grupamentos neuronais ao longo de vários dias(10). O aspecto fascinante é que os sintomas afetivos nos pródromos de crises epiléticas podem ser uma espécie de marcadores clínicos – geralmente negligenciados – deste período no qual uma crise vai sendo ‘elaborada’ em nível cerebral. Além disso, quadros depressivos podem perdurar por dias após crises epiléticas(11). Por fim, desde os anos 50, relatam-se casos de sintomas depressivos ictais (auras), ocorrendo instantes antes dos outros elementos da crise(12). Embora o período periictal não seja o foco deste artigo, a ocorrência de alterações de humor antes, durante e depois de crises epiléticas mostra que modificações elétricas em circuitos cerebrais podem ter um papel na gênese destas alterações. Uma moderna extrapolação destes dados é a visão de que as alterações elétricas, mesmo no período interictal, podem alterar circuitos neuronais locais ou à distância e contribuir decisivamente para quadros de alteração de humor(1,4). 1b. As epilepsias de lobo temporal têm uma maior prevalência de comorbidade com transtornos de humor comparadas a outras epilepsias parciais ou generalizadas? O papel central de estruturas temporais na modulação emocional(6,7) sugere que alterações elétricas nessas estruturas teriam um maior risco de se associarem a sintomas afetivos. Assim, a hipótese de que as epilepsias de lobo temporal (ELT) teriam um risco maior de se acompanharem de sintomas afetivos foi formulada há algum tempo e tem sido sistematicamente reforçada(1). Entretanto, cabe aqui uma questão metodológica importante. Estudos que definem a presença de transtornos de humor, conforme os critérios ‘categoriais’ do DSM-IV, não têm comprovado uma maior prevalência destes transtornos em pacientes com ELT, em comparação com outros tipos de epilepsia(5). Por outro lado, a aplicação de outros critérios diagnósticos – em especial aqueles considerados ‘específicos’ para o transtorno disfórico interictal(1) – sugerem uma clara precedência das epilepsias com envolvimento dos lobos temporais. Assim, a mensagem importante é que, embora fatores essencialmente elétricos sejam capazes de desencadear sintomas depressivos nos períodos periictais (ver acima), a ocorrência, no período interictal, de quadros de transtornos de humor, conforme a definição do DSM-IV, parece menos relacionada a alterações elétricas e mais ligada a aspectos psicossociais, conforme discutido mais adiante. A leitura a ser feita nas entrelinhas é que os mecanismos e os fatores de risco para a comorbidade entre epilepsia e transtornos de humor, classicamente definidos, são diferentes daqueles do transtorno disfórico proposto como específico para a epilepsia – em especial de lobo temporal(1). 1c. Fenômenos de normalização forçada do EEG e redução da freqüência de crises podem explicar quadros depressivos aparentemente paradoxais em períodos de bom controle das crises Uma discussão sobre o papel das variáveis elétricas relacionadas aos transtornos afetivos em pacientes com epilepsia não ficaria completa sem menção ao fenômeno da normalização forçada. Embora o termo se refira a modificações comportamentais que podem ocorrer em períodos de normalização do EEG (desaparecimento de descargas epileptiformes), ele tem sido extrapolado para os períodos de melhor controle de crises epiléticas – especialmente em pacientes com epilepsias de mais dificil controle e, portanto, habituados a crises recorrentes. Não se conhecem as bases biológicas da ‘normalização forçada’, mas Blumer e cols.(1) propõem que reflita um período de maciço predomínio de sistemas inibitórios, que pode seguir-se a uma ou mais crises epiléticas (ou seguir-se a períodos de intensa atividade epilética interictal). Assim, a normalização forçada seria uma contra-reação inibitória, o que, de uma certa forma, encontra suporte em estudos recentes de neuroimagem funcional(4) (ver seção a seguir). Entretanto, independentemente dos mecanismos subjacentes, o médico tem de antecipar a probabilidade de que pioras em nível afetivo possam ocorrer em períodos nos quais as crises estão mais bem controladas e, especialmente, nos primeiros meses após súbita cessação das crises obtida com cirurgia da epilepsia. A negligência desse conceito de normalização forçada e seus concomitantes afetivos privam o paciente do manejo adequado – freqüentemente farmacológico – para essas situações. 1d. O envolvimento funcional dos lobos frontais e sintomas depressivos Alguns estudos ao longo dos últimos dez anos sugerem que sintomas depressivos em pacientes com epilepsia, especialmente ELT, seriam acompanhados por um estado de hipofrontalidade(8,13). A recente aplicação de técnicas de neuroimagem funcional tem reforçado esta noção de hipofrontalidade na ELT. Em colaboração com colegas da Universidade de Leuven, na Bélgica, tivemos a oportunidade de avaliar recentemente uma 5 Rev Bras Clin Terap 2007 Agosto 33(1) Transtornos de humor.p65 5 Preto 18/7/2007, 17:54 revisão Transtornos de humor em pacientes com epilepsia: por que ocorrem e por que pode ser difícil reconhecer e tratar? série homogênea de pacientes com ELT associada à esclerose hipocampal, através de estudos de PET interictal (que mensura metabolismo) e de SPECT ictal (que mensura fluxo sangüíneo no momento da crise)(4). Um dado relevante deste estudo foi que, comparados com indivíduos-controle os pacientes com ELT apresentavam um severo hipometabolismo interictal nos lobos frontais. Entretanto, o achado mais significativo foi que, durante as crises epiléticas, havia uma redução ativa no fluxo sangüíneo nas mesmas regiões frontais que se mostravam hipometabólicas no período interictal. Este conjunto de achados é fortemente sugestivo de que pacientes com ELT convivem com um forte componente inibitório em seus lobos frontais, situação esta que se acentua nos períodos periictais. Além disso, estes resultados fornecem um intrigante suporte para a hipótese de que as manifestações psiquiátricas das epilepsias – em especial os transtornos de humor – devem-se a um estado de excessiva inibição cerebral gerada como uma ‘contra-resposta’ ao excesso de atividade excitatória desencadeada no foco epilético. 1e. As relações entre epilepsia e depressão são surpreendentemente bidirecionais Por razões não imediatamente aparentes, não apenas a existência de epilepsia aumenta o risco de depressão e outros transtornos afetivos (como visto acima), como também o vetor pode virar-se na direção oposta, ou seja, a existência de depressão aumenta o risco de epilepsia. Estudos controlados mostram uma prevalência aumentada de depressão alguns anos antes do início de crises epiléticas(14,15). Até que ponto esta direção da associação estaria relacionada ao aumento sustentado dos níveis de cortisol em pessoas deprimidas(16) e a possibilidade de que isso facilite o aparecimento de epilepsia em indivíduos geneticamente predispostos é uma hipótese que deve ser explicitamente testada. 2. Interferência dos fármacos antiepiléticos O lado biológico dos transtornos afetivos está embasado em alterações neuroquímicas e, assim, faz sentido que se considere o impacto dos fármacos antiepilépticos – muitos dos quais agem direta ou indiretamente sobre sistemas químicos cerebrais – na gênese de sintomas depressivos. Entretanto, diferentes fármacos agem sobre diferentes sistemas neuroquímicos, com distintas relações com sintomas depressivos e, assim, deve-se evitar generalizações. Aparentemente, fármacos com ação predominantemente GABAérgica (fenobarbital, primidona, vigabatrina) e associações em politerapia parecem estar associados a um risco maior de sintomas depressivos(17,18).Além disso, mesmo os fármacos antiepiléticos com ação sobre a estabilização do humor, como a carbamazepina e o ácido valpróico, foram associados a quadros depressivos quando usados em doses elevadas. Este último aspecto será discutido mais adiante. 3. O impacto das limitações psicossociais ‘Learned helplessness’ (desespero, desesperança ou medo aprendido) é o termo ‘psicológico’ cunhado para descrever o estado de muitos pacientes com epilepsia que ‘aprendem’ a esperar pelo pior, ou seja, por crises epiléticas(8). Este é apenas um entre vários aspectos com impacto nas limitações sociocupacionais que acompanham a condição epilética. Entre as formas científicas de abordar o papel de questões psicossociais, como esta na gênese dos transtornos de humor, estão os estudos que comparam a prevalência destes transtornos em pacientes com epilepsia e em pacientes com outras doenças crônicas, neurológicas ou não. Estes estudos apontam para uma prevalência similar de depressão em pacientes com epilepsia e em indivíduos com outras doenças crônicas, sugerindo que fatores não ligados diretamente às alterações elétricas cerebrais da epilepsia teriam precedência na gênese de transtornos afetivos nestes pacientes(5). Entretanto, mais do que uma ‘disputa’ sobre a precedência de fenômenos ligados à eletricidade cerebral versus aqueles ligados às limitações sociocupacionais(19), as formas de apresentação clínica dos transtornos afetivos nas pessoas com epilepsia trazem ingredientes de ambos. Além disso, como visto acima, é possível que o transtorno disfórico intermitente(1) se relacione mais com variáveis elétricas, enquanto quadros mais clássicos de transtorno de humor associem-se mais às privações sociocupacionais dos pacientes com epilepsia. 4. A bagagem genética de cada paciente com epilepsia Aspectos como temperamento e personalidade e suas relações com a ocorrência e tipo de transtornos de humor em pacientes com epilepsia são ainda pouco explorados. Embora um artigo desta mesma edição seja especificamente dedicado a alterações de personalidade em pacientes com epilepsia, é importante ressaltar que estudos que abordem questões ligadas a limitações na qualidade de vida de pacientes com epilepsia – com óbvias ramificações para a ocorrência de transtornos afetivos – mostrem que pessoas com traços elevados de neuroticismo apresentem escores reduzidos nas escalas de qualidade de vida, sugerindo uma vulnerabilidade dessas pessoas para transtornos afetivos(20). Por fim, e amplamente inexploradas, são as questões relativas às características de temperamento de indivíduos com epilepsia e que extrapolam os aspectos puros da personalidade. Uma visão desarmada e flexível dos mecanismos patogenéticos dos transtornos de humor nas epilepsias deve, assim, integrar aspectos ligados às modificações na eletricidade cerebral, às privações sociocupacionais, ao temperamento de cada indivíduo(21) e aos riscos genéticos de transtornos de humor em si. Conceitos deste tipo talvez possam ajudar na definição de estratégias terapêuticas para esses pacientes. 6 Rev Bras Clin Terap 2007 Agosto 33(1) Transtornos de humor.p65 6 Preto 18/7/2007, 17:54 revisão Transtornos de humor em pacientes com epilepsia: por que ocorrem e por que pode ser difícil reconhecer e tratar? SEGUNDA PARTE: POR QUE PODE SER DIFÍCIL RECONHECER E TRATAR OS TRANSTORNOS AFETIVOS EM PACIENTES COM EPILEPSIA? Embora pacientes com epilepsia possam apresentar transtornos afetivos que preencham os critérios diagnósticos do DSM-IV para transtorno depressivo maior, distimia ou transtorno de humor bipolar, muitas vezes a apresentação clínica é atípica, sendo necessário um entendimento mais amplo da psicopatologia da epilepsia para que esses pacientes não fiquem sem diagnóstico. Pacientes com epilepsia freqüentemente apresentam um quadro mais bem entendido como um transtorno disfórico interictal, intermitente. Estes pacientes alternam períodos de aparente normalidade com outros em que apresentam uma combinação de sintomas depressivo-somáticos (humor depressivo, anergia, dores corporais, insônia) e de desregulação afetiva (medo, euforia, irritabilidade). Segundo alguns autores(1,22), o reconhecimento deste quadro é fundamental para que muitos – ou talvez a maioria – dos pacientes com epilepsia e alterações do humor não fiquem em uma espécie de ‘limbo diagnóstico’, sem tratamento adequado. Muitos neurologistas são reticentes em iniciar um tratamento antidepressivo pela falta de confiança na resposta terapêutica e, também, pelo receio de efeitos colaterais e interações farmacológicas. Por exemplo, em um estudo recente com 70 pacientes com ELT em avaliação pré-cirúrgica, 34% foram diagnosticados como tendo ‘depressão significativa’. Entretanto, nenhum estava recebendo tratamento farmacológico para depressão(23). Em outro estudo, 60% dos pacientes incluídos tinham um diagnóstico de depressão por mais de um ano e nenhum havia sido tratado(24). Um aspecto de crucial importância é que o risco de suicídio em pacientes com epilepsia e comorbidade com transtornos de humor é elevado, comparável ao de pacientes com transtorno de humor bipolar, e representa a segunda causa mais freqüente de morte nestes pacientes25. Assim, a não identificação por neurologistas dos transtornos de humor associados à epilepsia – e o desconhecimento de sua relação dinâmica com a ocorrência e o controle das crises, no contexto da normalização forçada – pode ter conseqüências trágicas. Existem várias possíveis razões para o subdiagnóstico da comorbidade entre transtornos afetivos e epilepsia. Uma delas é a relativa insensibilidade de neurologistas não adequadamente treinados para identificar estes transtornos. A outra é que muitas das queixas podem ser erroneamente atribuídas a paraefeitos de fármacos antiepilépticos ou a ‘ter epilepsia’ em si, como problemas de sono, mudanças no apetite, redução da libido e dificuldades de concentração e memória(8). Aliás, independentemente do tipo de epilepsia, pacientes com queixas de alteração de memória tendem a estar significativamente mais deprimidos do que pacientes sem queixas de memória(26). Além disso, queixas de memória em pacientes deprimidos geral- mente não se acompanham de alterações objetivas em testagens formais(27). Estas dificuldades no diagnóstico e manejo de quadros depressivos por neurologistas são relevantes, na medida em que a qualidade de vida nestes pacientes parece correlacionar-se mais com a presença ou ausência de depressão do que propriamente com a freqüência de crises(28). Por fim, quando deprimidos, os pacientes percebem sua epilepsia como mais debilitante do que a realidade sugeriria e parecem ter um risco aumentado de crises freqüentes, em função de menor aderência aos fármacos antiepiléticos, privação de sono e abuso de álcool ou drogas(8). O TRATAMENTO DOS TRANSTORNOS DE HUMOR ASSOCIADOS ÀS EPILEPSIAS: RELAÇÃO COM O DIAGNÓSTICO, UMA VISÃO ALTERNATIVA E OPORTUNIDADES PARA O AVANÇO NO ENTENDIMENTO DA PSICOPATOLOGIA HUMANA Muitas das abordagens farmacológicas em psiquiatria não têm uma comprovação científica cabal, e não seria diferente no contexto das comorbidades entre epilepsia e transtornos de humor. Entretanto, aqui a situação é ainda mais complexa. Em primeiro lugar, não existem estudos randomizados, controlados, sobre o tratamento dos transtornos do humor associados às epilepsias. Assim, o tratamento é feito de forma empírica, seja com antidepressivos tricíclicos, seja com inibidores seletivos de recaptação da serotonina. Naturalmente, muitos destes pacientes já estarão utilizando um fármaco anticonvulsivante com propriedades de estabilização do humor. Quando este não for o caso, dever-se-á ativamente proceder a ajustes neste sentido(17). A principal questão sobre tratamento deriva da seguinte seqüência de considerações. Segundo alguns autores, 50% a 70% dos transtornos depressivos em pacientes com epilepsia são atípicos, no sentido de que pendem muito mais para o transtorno disfórico interictal (intermitente, ou síndrome de Blumer)(1) do que para os quadros clássicos de transtorno uni ou bipolar categorizados no DSM-IV(1,22,24). Em outras palavras, estes pacientes geralmente têm um quadro intermitente de desregulação afetiva sobreposto a um afeto deprimido mais crônico. O rápido padrão de ‘intermitência’ da irritabilidade explosiva, da euforia e dos sintomas de franca ansiedade que se sobrepõem aos sintomas mais depressivos e ‘anérgicos’ não é típico das classificações de transtornos de humor do DSM-IV. Isso levou à proposição deste quadro como atípico e ‘específico’ para pacientes com epilepsia(1). Naturalmente, este artigo não pode terminar sem que se contextualize esta visão de ‘atipia’ ou ‘especificidade’ do transtorno disfórico interictal na visão emergente de espectro bipolar(29). A própria ‘raison d’être’ do conceito de espectro bipolar visa encampar os casos atípicos de transtornos com oscilações de humor e, assim, sem dúvida, encamparia o transtorno disfórico interictal, encarando-o como um transtorno bipolar de ciclagem rápida ou ultra-rápida. Entretanto, a abordagem terapêutica proposta por Blumer(30), 7 Rev Bras Clin Terap 2007 Agosto 33(1) Transtornos de humor.p65 7 Preto 18/7/2007, 17:54 revisão Transtornos de humor em pacientes com epilepsia: por que ocorrem e por que pode ser difícil reconhecer e tratar? e ‘comprovada’ de forma anedótica por um número expressivo de relatos de casos(1),‘choca-se’ de frente com a visão atual e científica do tratamento dos transtornos bipolares. Por exemplo, recentemente, Sachs e cols.(31), em um estudo randomizado, mostraram que não houve vantagens em associar-se um antidepressivo a um estabilizador do humor para o controle dos sintomas afetivos de pacientes com transtorno de humor bipolar. Estas evidências vão na direção contrária ao proposto para o transtorno disfórico interictal, em que um ou muitas vezes dois antidepressivos são associados aos anticonvulsivantes (e não necessariamente anticonvulsivantes com eficácia comprovada como estabilizadores do humor). O racional subjacente a esta abordagem ‘pró-antidepressivos’ é que o transtorno disfórico interictal seria específico para pacientes com epilepsia e teria como base biológica um enorme predomínio de atividade inibitória (esta, por sua vez, resultante da ou reacional à excessiva excitabilidade do foco epilético). Neste contexto, os antidepressivos (tricíclicos ou ISRS) teriam um efeito ativador,‘discretamente pró-convulsivo’ – e com isto ‘desfazendo’ este predomínio inibitório(1). A despeito da aparente informalidade desta categoria diagnóstica e da abordagem terapêutica proposta – ainda não comprovada em ensaios clínicos e na contramão do preconizado para o manejo da depressão bipolar –, a incorporação de conceitos biológicos como as modificações inibitórias e excitatórias no cérebro humano na gênese de sintomas depressivos e afetivos revigora a busca de mecanismos biológicos subjacentes a estes transtornos. Assim,muito mais do que se relegar o transtorno disfórico interictal a um plano secundário e “off the mainstream”, talvez os psiquiatras devessem debruçar-se sobre essa possibilidade diagnóstica, encarando-a como uma oportunidade de avanço no entendimento da patogênese dos transtornos do humor em geral e dos substratos biológicos sobre os quais agem os fármacos antidepressivos. SUMMARY Around 20% to 30% of patients with epilepsy have mood disorder as a comorbidity, which most likely results from the interaction of abnormal electrical brain activity, psychosocial limitations, antiepileptic drugs, and genetic background. Thus, neurologists and psychiatrists should become increasingly aware of the psychiatric comorbidity of the epilepsies, since the identification and tratment of these abnormalities is crucial for the quality of life of these patients. Both classical mood disorders, diagnosed according to DSMIV criteria, and atypical clinical pictures, proposed as relatively specific for patients with epilepsy, may be seen. In particular, this review paper emphasizes the presentation and management of the interictal dysphoric disorder, characterized by intermitent depressive-somatic symptoms, alternating with anxiety and explosive irritability. This poorly identified entity is likely to be the most common psychiatric disorder in patients with epilepsy. Este artigo foi redigido de forma independente e expressa as opiniões pessoais do autor, com base em sua experiência clínica e visão sobre a literatura, tendo sido comissionado pela Janssen-Cilag Farmacêutica. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Blumer D, Montouris G, Davies K. The interictal dysphoric disorder: recognition, pathogenesis, and treatment of the major psychiatric disorder of epilepsy. Epilepsy Behav 2004; 5: 826-840. 2. Bejjani BP, Damier P, Arnulf I, et al. 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