APRENDER
Caderno de Filosofia
e Psicologia da Educação
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
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100
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Aprender – Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação. Ano 6, n. 10,
jan./jul. 2008. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2008.
Início da publicação: dezembro de 2003. Periodicidade: semestral.
ISSN 1678-7846
1. Filosofia – Periódicos. 2. Psicologia. I. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. II. Título.
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APRENDER
Caderno de Filosofia
e Psicologia da Educação
Número Especial:
Heidegger e a Educação
ISSN 1678-7846
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação
Vitória da Conquista Ano VI n. 10 p. 1-278
2008
Copyright © 2008 by Edições Uesb
APRENDER – Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação
Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH)
Departamento de Ciências Humanas e Letras (DCHL)
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
Ano VI - n. 10, jan./jun. 2008
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Número Especial:
Heidegger e a Educação
Sumário
Apresentação
O lugar de Heidegger na reflexão filosófica alemã sobre Educação
Leonardo Maia, Pedro Duarte de Andrade e Rodrigo Ribeiro Alves..................7
Artigos
Heidegger e a arte de questionar
Marco Aurelio Werle.......................................................................................17
Heidegger e a Educação
Edgar Lyra.....................................................................................................33
Heidegger educador
Pedro Duarte de Andrade................................................................................57
Kant entre o ficcionalismo de Vaihinger e a fenomenologia de
Heidegger
Zeljko Loparic.................................................................................................73
A determinação ontológica do Mundo: um perfeito a priori
Sônia Barreto Freire......................................................................................101
Freud se encaixaria no rol dos operários(Handwerker) das ciências
naturais? Considerações heideggerianas acerca da psicanálise freudiana
Caroline Vasconcelos Ribeiro.........................................................................123
Sobre a serenidade em Heidegger: uma reflexão sobre os caminhos do
pensamento
Ligia Saramago.............................................................................................159
A apreensão fenomenológica da vida fáctica em Heidegger
Roberto Wu...................................................................................................177
Sobre o sentido de educar
Marcelo Sodelli..............................................................................................203
A universidade na era da técnica – tarefas e desafios
Wanderley J. Ferreira Jr.................................................................................223
Resenhas
Ser e Verdade
Rodrigo Ribeiro Alves Neto...........................................................................257
Nos ventos da ambigüidade: Heidegger leitor de Nietzsche
Pedro Duarte de Andrade.............................................................................263
Periódicos permutados.............................................................................271
Normas para publicação de trabalhos....................................................273
Número Especial:
Heidegger e a Educação
Apresentação
O lugar de Heidegger na reflexão filosófica alemã
sobre Educação
Leonardo Maia (Editor responsável)*
Pedro Duarte de Andrade**
Rodrigo Ribeiro Alves***
Formação é palavra-chave do pensamento filosófico alemão
moderno. Na verdade, a própria literatura alemã, na figura de seu maior
autor, já colocara o tema da formação, no final do século XVIII, em
seu centro. Nos Anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, Goethe criava o
gênero que mais tarde ficaria conhecido como “romance de formação”
ou, em alemão, Bildungsroman. Não foi pequeno o impacto desta obra.
Entre os românticos alemães, talvez ninguém mais do que Friedrich
Schlegel explicitou isso, ao considerar o livro uma das três grandes
tendências da sua época, ao lado da Revolução Francesa e da Doutrina
da ciência, de Fichte.
* Professor de Filosofia da Uesb. Doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
** Professor Substituto de Filosofia no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ufrj). Professor da Pós-Graduação Lato Sensu da PUC-Rio (Arte
e Filosofia). Doutorando em Filosofia na PUC-Rio.
*** Atualmente é Professor substituto no Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais (IFCS) da Ufrj. Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro (PUC-Rio).
8
Leonardo Maia, Pedro Duarte de Andrade e Rodrigo Ribeiro Alves
Isso demonstra a importância da Bildung, isto é, da formação para
o pensamento alemão moderno. Goethe não estava sozinho. Dentre os
autores românticos e os filósofos idealistas, a tematização do problema
da formação foi constante e contundente. Podemos quase acompanhar
o próprio desenvolvimento do pensamento alemão através das múltiplas
considerações que ele fez sobre a formação (na qual está encerrada a
questão da educação) nesses últimos dois séculos. Mas será que esta
história chega mesmo até os contemporâneos? Será que existe algo
que podemos detectar como um “projeto” comum que diz respeito à
investigação da formação? Será que ele alcança o pensamento, ainda,
de Martin Heidegger?
É certo que há alguns pontos comuns capazes de definir, de início,
senão todo um projeto de fundo, em sua totalidade, ao menos certas
porções ou aspectos fundamentais da obra de diversos pensadores de
todo o período, desde finais do século XVIII, seja na literatura, seja na
filosofia mas, em especial, a partir de uma zona mista que parece se erigir
entre ambas, talvez como um elemento formado dentro da consecução
mesma desse projeto. Talvez, ainda, como o resultado mais visível de uma
proliferação dos estudos pedagógicos que marca todo o período. Tanto
que, como observa Ginzo, na sua apresentação dos Escritos Pedagógicos
de Hegel, apenas “na segunda metade do século XVIII aparecem na
Alemanha mais escritos e artigos sobre educação e ensino, do que nos
três séculos anteriores”1.
De imediato, poderíamos lembrar alguns tópicos que se destacam
na expressão possivelmente mais filosófica das diversas concepções da
Bildung. Dentre eles, o sentido orientativo (ao mesmo tempo o valor e
o cuidado da idéia de formação) que surge ligado, em especial, a uma
pesquisa e, igualmente, a uma distinção conferida à noção de origem (sob
diversos aspectos e com diversas orientações), um determinado retorno à
Grécia (que poderia ser tomado como um desdobramento desse mesmo
interesse pela origem), o envolvimento com uma idéia de destino ou de
destinação, que encontra também seu correlato aplicado na postulação
de um determinado papel histórico do povo alemão, ou mesmo, num
1
Ginzo, A. Hegel y el problema de la educación. In: Hegel, G. W. F. Escritos pedagógicos. México:
Fondo de Cultura Econômica, 1991. p. 8.
Apresentação
9
sentido conceitual mais amplo, de um encaminhamento para uma mais
indeterminada abertura ou uma idéia de futuro e de realização diferida,
plenamente preenchida apenas a partir da categoria de futuro.
Pensadores como Herder, Lessing e mesmo Winckelmann estão
no início de um despertar, ainda que incipiente, para o problema da
formação que, mais tarde, culminaria na grande filosofia da história de
Hegel, que não deixa de ser a tentativa máxima de investigar a formação
de toda nossa cultura. Naqueles primeiros autores, a referência aos
antigos gregos ganha o tom problemático de quem já não os aceita
apenas como modelos eternos de grandeza a serem copiados, mas sim
como exemplos a serem seguidos, justamente na medida em que foram
fiéis ao seu tempo. Nós também deveríamos sê-lo. Em outras palavras:
o relacionamento com o passado passa a ser decisivamente determinado
pelas circunstâncias e necessidades do presente, que busca nele o seu
próprio sentido formativo.
Esse desenho não deixa de ser curioso ou mesmo paradoxal:
pois ele não apenas faz da formação uma experiência definitivamente
temporalizada. Ele a considera segundo uma determinada ordem
do tempo e, de modo geral, segundo uma intrincada inversão dessa
mesma ordem. Presente, origem e futuro devem conjugar-se como
o eixo propiciativo maior da formação. Mas ao tempo impõe-se uma
série de dobras, ele vai e volta, vira e revira-se, em busca de um sentido
que tanto parece estar de todo perdido e que só será aclarado pelo
antigo ou pelo verdadeiro início, como também está colocado desde
já, nunca antes tão presente, mesmo que sob a forma de questão. Seria
Nietzsche, talvez, quem o teria melhor compreendido ou que parece
melhor descrevê-lo (senão mesmo vivê-lo): pensar no tempo, a partir
do tempo presente, mas para saltar por sobre ele e reencontrar, na
página antiga da história e da filosofia, a seta que melhor aponta e
indica o futuro. Pensar no tempo, contra o tempo, e sobretudo, numa
situação intemporal ou extemporânea, fazendo do pensamento e da
vida o lugar de uma experiência permanentemente intempestiva de
formação.
10
Leonardo Maia, Pedro Duarte de Andrade e Rodrigo Ribeiro Alves
Na resenha que faz de A Origem da Tragédia, Röhde, amigo de
Nietzsche e grande helenista, parece evocar sinteticamente todos esses
temas e, no fundo, seria igualmente difícil dizer que eles se perdem por
inteiro no desenrolar do pensamento nietzschiano, bem como, por outro
lado, que eles estejam radicalmente desligados de todo outro pensador
alemão do período.
Quando, na época do renascimento de uma formação cultural
mais livre, a Europa se voltou para os únicos mestres dignos, os
gregos, ela se baseou imediatamente nesse impulso socráticoalexandrino de fundamentação do mundo, e desde então os
nossos melhores esforços se enraízam em um alexandrinismo
intensamente acentuado. Mas o autor demonstra como essa
direção dominante e exclusiva, embora nobre se considerada em
si mesma, sufocou inteiramente as mais profundas capacidades
da criatividade humana; demonstra também como o caminho
tomado nos conduz sempre em círculos, a partir da noção
profunda e delirante de que todos os abismos poderiam ser
medidos com o metro da lógica; demonstra, finalmente, como o
otimismo teórico herdado de Sócrates se transforma, dominando
toda a nossa cultura, em um eudemonismo prático, que por sua
vez se tornou uma exigência exaltada e ameaça desencadear
gradativamente sobre essa cultura deteriorada um inferno de
poderes destrutivos2.
Do tempo, do destino e do povo aponta o sentido formativo,
ao mesmo tempo a partir da cultura, mas radicalmente contra ela... Por
dentro mesmo dessa injunção, a formação sofre alterações decisivas.
E, sobretudo, quanto aos seus fins. Ela não aponta para, não pode ser
descrita na direção de um simples objetivo formador, sem que isso falseie
ao mesmo tempo seu impacto cultural, e sua especial temporalidade, que,
tampouco, será antecipada sob a forma de método. Ela apenas força e essa
condição de forçamento é, talvez, a principal de uma nova paidéia.
Röhde, E. Resenha (recusada) para a Literarische Zentralblatt. In: Machado, R. (Org). Nietzsche e
a polêmica sobre O Nascimento da tragédia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. p. 39.
2
Apresentação
11
No cenário contemporâneo, é Heidegger quem talvez expresse
de forma economicamente mais simples essa conjunção de temas, e a
idéia em si de formação em seu sentido ainda em aberto, ao retomar
o problema sob forma de questão, ou melhor dito, ao estabelecer as
condições de conversão desse tema em nova, ou em novas questões.
Parece-nos exemplar a esse título, a porção final de sua conferência Hegel
e os gregos que, justamente, de algum modo envolve mais uma vez todo o
quadro que descrevíamos acima, ou seja, o de uma possível formação,
e das condições pelas quais esta viria ligada ainda a um possível legado
grego, à continuidade, orgânica, discreta ou mesmo simplesmente
fragmentada pela qual ela alcança a modernidade e o sentido que ela pode
ali então erigir (do qual interessar-nos-ia, evidentemente, em especial o
aspecto formador e seus desdobramentos).
Nessa conferência, o objetivo de Heidegger, ele mesmo o admite
ao final, é bem mais do que simplesmente determinar a forma da relação
da filosofia hegeliana com os pensadores originários gregos. Trata-se
de determinar essa relação no que ela diz respeito e compreende a
determinação da própria relação nossa, de um pensamento atual e sua
tarefa, com a filosofia antiga. E o que “está em jogo”, nesse curto texto
sobre Hegel, é nada menos que a “questão do pensamento” enquanto
tal, e a devida aferição da compreensão hegeliana acerca do período
grego da filosofia só se faz relevante na medida em que ela favorece e
aponta para uma possível resposta a tal questão. E, na resposta devida
a esta questão, questão formativa, portanto, agora em Heidegger como
antes, parece residir a pedra-de-toque da própria filosofia. De uma
compreensão correta ou infeliz, dependem os próprios destinos do
pensamento: “a questão do pensamento está em jogo”.
Hegel determina a filosofia dos gregos como o começo da
“filosofia propriamente dita”. Esta, porém, permanece, enquanto
a instância da tese e abstração, no “ainda não”. A plenificação
na antítese e síntese não ocorre. [...] Hegel diz da filosofia dos
gregos: “somente se consegue encontrar satisfação até um certo
grau dentro dela”, a saber a satisfação do espírito para a certeza
absoluta. Este juízo de Hegel sobre o insatisfatório da filosofia
12
Leonardo Maia, Pedro Duarte de Andrade e Rodrigo Ribeiro Alves
grega é pronunciado a partir da consumação e plenitude da
filosofia. No horizonte do idealismo especulativo a filosofia dos
gregos permanece no “ainda não” da plenitude. Ora, atentemos
para o enigmático da Alétheia, que impera sobre o começo da
filosofia grega e sobre a marcha de toda a filosofia, então a filosofia
grega também se mostrará para nosso pensamento, como um
“ainda não”. Mas, é o “ainda não” do impensado, não um “ainda
não” que não nos satisfaz, mas um “ainda não” para quem nós não
bastamos e que não somos capazes de satisfazer”3
Talvez, com isso, caiba a Heidegger o papel de realizar uma
maravilhosa inversão. De nos ter quem sabe, afinal, colocado no
caminho mais próprio da formação, mas por considerá-la justamente
como o contrário de um termo e de um desfecho. Essa formação, como
preparação, efetivamente, não pode não ser senão uma formação para a
formação, um encaminhar-se para o aberto. Essa formação com vistas
apenas ao aberto, ela mesma uma abertura da qual se poderá falar infinita
e indefinidamente. Formação que só pode e poderá ser dita através da
expressão: ainda não.
*
Essa experiência de incompletude se deve ao fato de que, para
Heidegger, o percurso histórico da cultura ocidental em sua unidade
essencial – a Metafísica – está inserido no seio de uma passagem do fim
da tradição para um outro começo. Somos seres do “não mais” e do
“ainda não”. Trata-se, de certo modo, da experiência de um profundo
esvaziamento da idéia mais tradicional de “formação” e, ao mesmo
tempo, de um apelo prenhe de transformação. O século XX foi um século
vespertino e o homem de hoje vive a experiência de uma transição. O
“ainda não” reside na experiência dessa passagem que nos reivindica um
esforço por reconquistar a tradição em sua essência para o futuro. Por isso
dizia Heidegger: “pensado historicamente, o acabamento é futuro4”.
heidegger, M. Hegel e os gregos. In: Sobre a essência do fundamento / A determinação do
ser do ente segundo Leibniz / Hegel e os gregos. São Paulo: Duas Cidades, 1971, p. 124-125.
4
Heidegger, M. Nietzsche, Metafísica e Niilismo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, trad. Marco
Casanova, 2000, p. 117.
3
Apresentação
13
O acabamento da tradição faz ressoar no presente o vigor de
futuro do passado, colocando sempre de novo o pensamento como um
desafio por vir. É neste sentido que Heidegger nos diz: “a possibilidade
de acesso à história funda-se na possibilidade de um presente poder
realmente compreender-se como sendo algo futuro5”. O fim da tradição
transforma o pensamento por meio da renovação crítica da sua relação
com o passado. Como assevera Nietzsche: “é, pois, pelo poder que ele
tem de fazer servir o passado à vida e de refazer a vida com o passado,
que o homem se torna homem6”. Mas se a própria idéia de “formação”
que está na base do projeto dessa civilização se dirige hoje ao seu
estágio final, trata-se de um processo histórico de transformação que se
corresponde ao modo pelo qual o pensamento ocidental tem assumido
o seu começo. Para dizer com Heidegger: “a tradição não nos entrega
à prisão do passado e irrevogável. Transmitir, délivrer, é um libertar para
a liberdade do diálogo com o que foi e continua sendo”7.
Recuperar o “ainda não” pensado da Metafísica consiste em
recuperar a existência histórica do homem como sempre de novo digna
de ser pensada em sua força de constituição que jamais se esgota em
formas constituídas. O pensamento aquiesce esse desafio histórico
à medida que se liberta para assumir a tensão criadora entre aquilo
que sempre foi, continua sendo e apela por vir a ser sempre outra vez
pensado como pela vez primeira. Neste sentido, o pensamento guarda
o porvir sempre e a cada vez que “mostra de novo o ser como o que
deve ser pensado e, de tal modo que o que deve ser pensado permaneça
enquanto tal no horizonte do homem8”. A existência humana consiste,
para Heidegger, em uma dinâmica de realização na qual continuamente
vigora a abertura do ser. Enquanto existe, o homem é continuamente
reivindicado pelo desvelamento do ser. Em toda a história do Ocidente
ressoa essa reivindicação inesgotável de ser na qual o homem insiste e
Idem. O conceito de tempo. Cadernos de tradução, São Paulo: usp, n. 2, p. 37, 1997.
Nietzsche, F. W. Da utilidade e dos inconvenientes da história para a vida. Lisboa: Presença,
1976. p. 110.
7
Heidegger, M Que é isto, a Filosofia? In: “Conferências e Escritos Filosóficos”. São Paulo: Nova
Cultural, col. Os Pensadores, traduções e notas de Ernildo Stein, 1996. p. 29.
8
Idem. A tese de Kant sobre o ser. In: “Conferências e Escritos Filosóficos”. São Paulo: Nova
Cultural, col. Os Pensadores, traduções e notas de Ernildo Stein, 1996. p. 226.
5
6
14
Leonardo Maia, Pedro Duarte de Andrade e Rodrigo Ribeiro Alves
na qual o ser se torna histórico. O que está posto em causa e reivindica
a nossa atenção no pensamento reside na questão sobre como se
determina essa abertura do ser, a partir de onde ela se funda e como
ela atinge o homem e o requisita. Recuperar a “História do Ser” em sua
essência para o futuro significa, portanto, recuperar nossa presença no
mundo como um desafio de libertação para que a reivindicação que as
coisas fazem ao homem enquanto ele existe seja sempre a dinâmica de
uma conquista, um empenho que nunca deixe de nos provocar, nos
incitar e nos surpreender. É nessa medida que, para Heidegger, “tanto
mais urgente permanece uma reflexão que se põe à escuta da tradição,
que não seja arrastada pelo passado, mas que medite o presente9”.
De início e na maioria das vezes, as experiências de pensamento
que formam nossa cultura e formaram nosso mundo falam em nós e por
nós sem sequer nos darmos conta. Este é o principal motivo para nos
engajarmos na tarefa de recuperar a tradição para o futuro: de imediato
e muitas vezes, estamos no domínio de uma tradição de pensamento
a despeito de nós, e não nos conheceremos nem seremos livres em
nossos valores e nossas ações imediatas e futuras se negligenciarmos o
sentido desse pensamento que nos toma as rédeas da formação. Esse
sentido reside nas reflexões e discussões empreendidas pelos filósofos
desde os gregos. É por isso que precisamos de apropriação do passado
que medite o presente, pois, em seu percurso histórico, a tradição não
apenas nos entrega o que fomos e nos convida a ser o que somos, mas,
sobretudo, responsabiliza-nos pelo que nos tornamos.
Nas artes, na política, na moral e na ética das ações cotidianas, na
técnica, nas ciências e, obviamente, na metafísica, pensamos e falamos
nas culturas e línguas ocidentais com os conceitos e as articulações
instauradas pelas discussões filosóficas desde os gregos. Com tais
conceitos e idéias nos dispomos a entender e lidar com o mundo,
visto que deram início a instituições e tradições filosóficas, científicas,
culturais, morais, políticas, etc. que vigoram até nossos dias. As que
fundam e principiam a nossa “formação”, conferindo o sentido de
A tese de Kant sobre o ser. In: “Conferências e Escritos Filosóficos”. São Paulo: Nova Cultural,
col. Os Pensadores, traduções e notas de Ernildo Stein, 1996. p. 227.
9
Apresentação
15
nossa compreensão e ação. Conceitos que, se os usamos sem refletirmos
sobre seus sentidos, tecerão nossos mundos a despeito de nós mesmos
– porque são as idéias em que viemos a ser o que somos e, sobretudo,
que guardam o poder do que ainda havemos de ser e fazer. É por que
o ser jamais poderá estar totalizado numa uniformização de estruturas
que a realização do pensamento jamais se deixa realizar e se fixar num
saber sistemático e definitivo, isto é, não está nunca acabada em uma
configuração determinada, pois o pensar somente se realiza por meio
da dinâmica circular de uma conquista que exige um eterno retorno à
proveniência de sua própria essência, um eterno retorno à origem de
sua própria essencialização.
Neste sentido, o “ainda não” do impensado não nos dá acesso
ao desenrolar de acontecimentos numa acumulação progressiva. O
acontecer histórico do pensamento não se inscreve na linearidade
sucessiva do tempo cronológico. A representação sucessivo-linear do
tempo não atinge o âmbito de realização desse acontecer, pois não vê
que o duplo movimento no qual se insere toda “formação” consiste
na dinâmica criadora de uma circularidade. Inserido nesse círculo, o
pensamento é lançado tanto numa retrospecção, na qual se apropria do
começo de sua história conquistando a memória do impensado que nele
se abriga, quanto numa prospecção, na qual avança na conquista do a-sepensar. Não se trata, assim, de mera regressão, pois se Heidegger torna
imperioso um recuo, para dizer com Nietzsche: “ele recua como quem
quer dar um grande salto10”. Mas um tal salto, por outro lado, não pode
se definir como uma mera progressão. A retrospecção não incide sobre o “já
pensado” num passado que se conserva atrás de nós e que precisaria ser
nostalgicamente restaurado, mas sobre o que tendo sido experimentado
pelo pensamento no começo de sua história, mas impensado em seu
decurso, está sempre vigente no presente e retorna sempre de novo à
espera de um futuro; isto é, à espera de uma prospecção que, por sua vez,
não se define como a projeção de um avanço que abandona o pensado
como a “seqüela de cargas do passado”, e sim como um avanço que se
Nietzsche, F. Além de bem e mal. Trad. Paulo C. Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
1997. p. 189.
10
16
Leonardo Maia, Pedro Duarte de Andrade e Rodrigo Ribeiro Alves
move somente por meio de uma retrospecção apropriadora do impensado
que em todo pensado constitui o a-se-pensar.
*
Com este número, o APRENDER – Caderno de Filosofia
e Psicologia da Educação chega à sua decima edição, número
significativo por todos os motivos. Que ele seja a ocasião de uma
celebração e de um agradecimento.
A todos os colegas, membros da Editoria científica, Conselheiros,
à Direção e aos funcionários da Edições Uesb, às Administrações da
Universidade no correr desses anos de existência da publicação, e a todos
os colegas que têm contribuído para o aprimoramento e para essa tenra
longevidade do caderno, nosso mais sincero Obrigado.
Número Especial:
Heidegger e a Educação
Heidegger e a arte de questionar
Marco Aurelio Werle*
Resumo: O artigo pretende aproximar a filosofia de Heidegger do tema da
educação, por intermédio da exploração do caráter essencialmente questionador
de seu pensamento. O texto Que é isto – a filosofia? servirá como fio condutor
de abordagem.
Palavras-chave: Heidegger. Filosofia. Educação. Filosofia contemporânea.
Heidegger and the art of challenging.
Abstract: The purpose of this paper is to relate Heidegger’s philosophy to
the theme of education through the study of the essentially challenging
character of his thought. The text What’s this - the philosophy? will function
as a guiding thread.
Key words: Heidegger. Philosophy. Education. Contemporary philosophy.
Heidegger não escreveu propriamente nenhum texto sobre
educação1. E se quisermos relacioná-lo a esse tema, é necessário tomar
* Doutor em Filosofia pela Universidade de São paulo (USP). Professor do Departamento de
Filosofia da USP e Bolsista Produtividade do CNPq, nível II.
1
O termo “educação” sequer é relacionado no Dicionário Heidegger, de Michael Inwood. Por outro
lado, há estudos no Brasil que tangenciam o tema, por exemplo, a coletânea Todos nós ... ninguém.
Um enfoque fenomenológico do social, acompanhado de uma tradução do trecho sobre o “a gente” [das
Man] de Ser e tempo; além disso, Aprendendo a pensar, de E. Carneiro Leão.
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação
Vitória da Conquista
Ano VI
n. 10
p. 17-31
2008
18
Marco Aurelio Werle
a noção de educação em uma perspectiva mais ampla, ou seja, aproximála de seu sentido filosófico, que se conservou, na época moderna, de
modo privilegiado, no termo alemão Bildung [formação]. A importância
desse termo para a tradição humanista foi acentuada por Hans Georg
Gadamer, ao citar W. von Humboldt, em Verdade e método. A Bildung se
refere a uma educação total, interior e exterior, inclusive sensível do ser
humano, que leva em conta o desenvolvimento imanente de todas as suas
possibilidades e potencialidades, ao contrário da formatio, que se volta
mais para o desdobramento de faculdades ou de talentos e se orienta por
preceitos oriundos do exterior.2 Desse modo, a Bildung se impõe como
um dever ou uma máxima individual, que o homem escolhe por si e para
si, “er bildet sich selbst”, não sendo, portanto, educado de “fora para dentro”
por um mero cultivo de habilidades. O meio e o fim desaparecem nesse
processo, pois o alvo não consiste apenas em adquirir algo, como se
aquilo que se aprendesse pudesse ser em seguida novamente abandonado.
Para Gadamer, foi Hegel quem “elaborou de modo mais penetrante” o
conceito de Bildung, segundo suas várias acepções.3
Independentemente dos vínculos que essa noção tem com o
desdobramento da subjetividade na época moderna, pode-se sem
dúvida dizer que há uma certa Bildung no pensamento de Heidegger,
que inclusive se encontra na origem da fascinação que esse pensamento
radical ainda exerce hoje sobre nós. Entretanto, essa dimensão não está
primeiramente nas “teses filosóficas” de Heidegger, mesmo porque é
problemático afirmar que suas reflexões constituem uma “filosofia”,
em sentido clássico. O pensador da Floresta Negra sempre se moveu
no limiar do fim da filosofia, o que implicou, ao mesmo tempo, a
constatação da facticidade de um novo início, de uma nova era em que
finalmente se daria [sich ereignen] o pensamento original, como atividade
destituída de pressupostos conceituais previamente definidos. Dessa
forma, a marca da filosofia de Heidegger está essencialmente ligada
ao ato de questionar e de interrogar, sendo, portanto, nesse sentido
profundamente educativa ou formadora. Antes de afirmar o mundo, o
2
3
Wahrheit und Methode, p. 8-9.
Idem, p. 9-12: Bildung como conhecimento, trabalho e socialização, teórica e prática.
Heidegger e a arte de questionar
19
ente, a verdade, etc., cabe à filosofia interrogar-se a si mesma e instalar-se
no ser ou, quem sabe, no nada, tendo em vista essa questão crucial para
o homem, formulada como questão fundamental da metafísica, logo na
abertura de Introdução à metafísica: “Warum ist überhaupt Seiendes und nicht
überhaupt vielmehr Nichts?”4
Esse carácter interrogativo se reflete no modo de apresentação e
na forma da maioria dos textos de Heidegger, que ora têm por título uma
pergunta: O que significa pensar?; Que é metafísica?; Que é isto – a filosofia?; Para
quê poetas? Quem é o Zaratustra de Nietzsche? ora afirmam no título a noção
de pergunta: A questão [Frage] da coisa; A questão [Frage] da técnica; Sobre
a questão do ser [Seinsfrage]. Acrescente-se a isso, ainda, os vários textos
que denotam a noção de procura por respostas, traduzida na metáfora
do “caminho” [Weg]: Caminhos da floresta; Marcas do caminho; Caminho do
campo; A caminho da linguagem.5 Tudo indica que estamos aqui diante
de um pensamento que recusa a forma tratadística e aponta para uma
certa suspensão do pensamento. A brevidade de muitos dos ensaios
de Heidegger remete menos à explanação de uma doutrina pesada do
que à formulação ou detecção de certos problemas ou tarefas para o
pensamento. E certamente os leitores de Heidegger devem se lembrar da
experiência de certos ensaios que, em geral, nos deixam mais confusos
do que estávamos antes de nos debruçar sobre eles e colocam mais
perguntas do que respostas.
Como situar esse aspecto interrogativo do pensamento de
Heidegger? Seria ele apenas um mero fingimento ou uma mania do
“jargão da autenticidade” (segundo o diagnóstico de Adorno)? Pareceme antes que esse gesto está inscrito no próprio ato de filosofar e
alojado no cerne de uma concepção de filosofia, que consiste em nos
reconduzir para aquele espanto [thaumázein] que se colocou pela primeira
vez com a alvorada da atividade crítica humana, a saber, com os gregos,
[Por que é em geral o ente e não antes em geral o nada?], p. 1.
A publicação da Gesamtausgabe [obra completa] de Heidegger, a partir de meados da década de
1970, cuja grande maioria de textos é formada por cursos universitários, não publicados em vida
pelo filósofo, que morreu em 1976, apaga um pouco essa impressão interrogativa que os ensaios
causaram para o público que inicialmente os recebeu. Por isso mesmo, penso que se deve privilegiar
os textos publicados em vida, pois asseguram mais fielmente o processo de apresentação do
pensamento heideggeriano e sua inserção na filosofia do século XX.
4
5
20
Marco Aurelio Werle
e que sempre marcou a própria existência do homem como estar ou
ser [Dasein] no mundo. Por este motivo, os textos de Heidegger muitas
vezes são frustrantes, principalmente para quem procura na filosofia ou
um discurso engajado, “transformador da realidade”, ou a segurança de
um guia de vida (auto ajuda). Pois, esses textos são construídos na base
de um pensar que constantemente critica seus fundamentos. Sob esta
perspectiva, o maior legado de Heidegger reside talvez em nos alertar
sobre o fato de que, embora vivamos no seio de um mundo administrado,
alienado, onde praticamente tudo já está explorado em termos do saber,
da técnica e do consumo (pelo menos é essa a ilusão que paira no ar
em nossa cultura), nós nunca devemos esquecer as origens e, mais
importante, ainda, a determinação fundamental do homem, a quem foi
concedida a dádiva do ser, isto é, a possibilidade de compreender o ser.6
E essa compreensão do ser, na qual Heidegger insiste por quase todo o
seu tratado Ser e Tempo (o qual, embora sendo um tratado, está permeado
de interrogações e não deve ser tomado como mera “doutrina”), implica
não se entregar ao cotidiano, ao dia-a-dia das ocupações e preocupações
ônticas, e sim questionar a existência, viver sob o signo da angústia, não
aquela do desespero, mas a que revela o nada como o véu do ser, a saber,
assumir o caráter ontologicamente aberto da existência.
A atitude questionadora do pensamento de Heidegger, portanto,
é carregada de historicidade. De um lado, procura-se remontar o
pensamento ao seu começo, à sua origem, e isso principalmente por
ter havido um afastamento do homem de seu destino no mundo que,
na linguagem de Heidegger, se traduz como sendo o esquecimento
do ser na metafísica ocidental e redunda na confusão entre ente e ser.
Por outro lado, porém, essa volta ao começo não implica uma recaída
saudosista no passado, na direção de uma tentativa de voltar atrás no
tempo. Pelo contrário, o pensamento questionador é extremamente
atual, encontra-se em profunda sintonia com o presente, a saber, com
o século XX como o cenário onde a filosofia de Heidegger surgiu, se
Esse trecho retoma o que escrevi no fim do artigo “Martin Heidegger: O homem na clareira do
ser” para o volume Os Pensadores, um curso, p. 212-213 e que gostaria de ampliar nesse artigo.
6
Heidegger e a arte de questionar
21
desenvolveu e teve uma enorme influência sobre os contemporâneos. O
século XX é justamente o século da crise da razão e dos fundamentos
que por mais de dois mil anos guiaram a humanidade e que parecem ter
entrado numa fase de esgotamento. Nada mais natural e apropriado, pois,
que um pensamento que se pretenda conseqüente surja interrogandose a si mesmo e não se apresente de forma dogmática. Disso se segue
que os textos de Heidegger são profundamente atuais por sua própria
forma de apresentação. E esse vigor do pensamento de Heidegger
parece-me ser bem mais forte do que o de outras filosofias do século
XX, por exemplo, se pensarmos nos desdobramentos de toda ordem
do positivismo lógico e nos representantes da Teoria Crítica. Sem
dúvida, a vertente da Teoria Crítica toca em temas mais candentes e
contemporâneos, precisamente por tratar de questões sociais e, por
tabela, estar mais vinculada às disciplinas das ciências humanas, como a
sociologia, o direito, a psicologia, a psicanálise, etc. Em contrapartida, se
observarmos seu modo de pensar e sua matriz filosófica, vemos que lida com
um conceito de razão restrito e emprestado (via de regra proveniente
de Kant ou de Hegel), isto é, de segunda mão, o que denota falta de
originalidade, para não dizer que exprime um anacronismo, bem como
um espírito de reforma e menos de transformação radical.7
Para desenvolver essa perspectiva histórica do ato de questionar,
inscrita no próprio modo de surgimento da filosofia heideggeriana,
eu gostaria de explorar um pouco mais detalhadamente um texto que
considero exemplar nessa direção. Trata-se de Que é isto – a filosofia?
(1955), que servirá de fio condutor para a abordagem desse universo
de perguntas e questões.
No início do texto coloca-se a exigência de responder à pergunta
exposta no título: Que é isto – a filosofia? Começa assim um percurso
de indagações que terá como primeira etapa a própria possibilidade de
acesso ao tema. E aqui já se pode antecipar que Heidegger praticamente
7
Para perceber essa dependência da Teoria Crítica ao campo de discussão da filosofia clássica alemã,
basta acompanhar os malabarismos teóricos e as oscilações terminológicas que Horkheimer realiza
no artigo de 1937, intitulado Traditionelle und kritische Theorie, no intuito de defender a unificação
de teoria e prática.
22
Marco Aurelio Werle
não sairá desse nível de abordagem, ou seja, não fornecerá uma resposta
direta à pergunta: filosofia é isso ou aquilo, serve para isso ou aquilo,
etc., e sim veremos que a própria pergunta contém a resposta, ou
melhor, ela é a resposta. Desde seu início e em seus momentos áureos,
o que destacou a filosofia nunca foram as respostas dadas, e sim os
questionamentos apresentados.
Ao questionar o acesso ao tema, impõe-se o problema de um
caminho, de que nos coloquemos num caminho e a caminho. E esse
caminho não deve ser resolvido por um discurso sobre a filosofia, mas
por uma entrada em seu âmbito de abrangência: “penetrar na filosofia”8,
deixar que a filosofia nos diga algo e não nos entregar, de maneira
apressada, a um mero relatório acerca dela. Essa perspectiva inicial
do texto irá se aprofundar cada vez mais, no sentido de insistir numa
correspondência [Entsprechung] com a filosofia, ou seja, a pergunta: “Que
é isto, a filosofia?” exige situar-se na e não diante da filosofia, e isso por
meio da linguagem, para que possamos cor-responder à filosofia. Não
sabemos nada da filosofia se não nos dispusermos a filosofar, a pensar
como a filosofia pensa, o que significa que a filosofia não é um conjunto
de preceitos, mas sobretudo uma maneira de pensar.
De início, porém, nunca nos encontramos nessa correspondência
e importa percorrer um caminho. Com isso, corre-se o risco de confundir
a tarefa, quando se imagina que se deve entrar numa certa simpatia
com a filosofia por meio de um mero sentimentalismo, como se fosse
necessário abandonar o pensamento “conceitual” e procurar, em
termos apologéticos, uma “intuição” cega da filosofia. Por outro lado,
ao querermos sair dos sentimentos, apelamos para a razão, que constitui
o mesmo erro, o elo oposto que tanto nos desvia de uma abordagem
direta, digamos assim, fenomenológica da filosofia, quanto nos aprisiona
na visão tradicional e já batida de que a filosofia é uma atividade da
ratio, da razão. Aliás, trata-se de sair desse jogo de pingue-pongue ou de
oposição entre o irracional e o racional.9
8
9
“Que é isto – a filosofia?”, In: Os Pensadores, p. 13.
Idem, p. 14.
Heidegger e a arte de questionar
23
É preciso ter maior cuidado quanto à abordagem do tema. Por isso,
Heidegger vai enfrentar a questão da própria palavra filosofia e do modo
como nos dirigimos a ela, ao perguntarmos: “o que é isto?”. O que nos
diz inicialmente a filosofia? Filosofia é algo que remete aos primórdios
de nossa civilização. A questão da filosofia nos liga a uma certa tradição,
que é essencialmente grega, mesmo que essa tradição tenha passado pelo
Cristianismo e hoje estejamos na chamada era atômica. Trata-se, portanto,
de ser solícito a essa tradição, de entrar em diálogo com ela. E ao fazermos
isso, percebemos algo incômodo, para não dizer surpreendente: “[...] não
apenas aquilo que está em questão, a filosofia, é grego em sua origem, mas
também a maneira como perguntamos, mesmo a nossa maneira atual de
questionar ainda é grega”.10 Ao perguntarmos “o que é isto?” já estamos
falando nos termos do modo de pensar grego, estamos perguntando
exatamente do mesmo modo como faziam os gregos Sócrates, Platão
e Aristóteles, quando perguntavam: O que é o belo? O que é o bem?
O que é a virtude? etc. Essa maneira de questionar não é, portanto, tão
óbvia assim, não surgiu ao acaso ou desde sempre existiu e, de certa
maneira, nos condiciona ou impede um acesso que alcance “as coisas
elas mesmas”. Pelo contrário, essa atitude foi “inventada” por uma certa
tradição de pensamento, à qual ainda estamos ligados umbilicalmente,
embora nem sempre nos demos conta disso.
O pensamento encontra-se, assim, num círculo, pois estamos
no interior de um caminho que tanto nos conduz quanto ainda tem
de ser esclarecido em seus fundamentos. Perguntamos por algo que
está inscrito na própria forma do perguntar, queremos esclarecer algo
que determina a nossa própria maneira de colocar o esclarecimento e
que necessitaria ser antes esclarecido. Para Heidegger, entretanto, esse
círculo, assim como o “círculo hermenêutico” que define o modo em
que se interroga a existência no Dasein (cf. Ser e Tempo), não deve ser
rapidamente descartado como uma aporia ou, segundo a lógica, como
sendo um “círculo vicioso”. Pelo contrário, tendo em vista o caráter
essencialmente temporal de nossa existência histórica, o homem sempre
10
Idem, p. 15.
24
Marco Aurelio Werle
se encontra nele e deve, portanto, procurar inserir-se adequadamente no
mesmo. A existência humana é em sua essência um abismo [Abgrund],
segundo a acepção propriamente alemã desse termo: destituída [Ab] de
solo e fundamento [Grund], por mais que teimamos em não aceitar isso,
abrigando-nos nos desvios de sentido, que Heidegger em Ser e Tempo
nomeia como sendo o a gente, a curiosidade e o falatório.
Uma possibilidade tem de ser trilhada: voltemos com Heidegger
para a origem da palavra grega filosofia. O que nos indica o filósofo,
o philósophos, não é simplesmente que ele é amigo [philo] do saber
[sophos], mas a verdade de que “todo ente é no ser”. Heráclito pôs a
questão essencial da filosofia, que consiste em nos colocar numa certa
correspondência com o ente no todo, procurar a harmonia com o todo,
no sentido de uma solicitude diante desse fato espantoso de que o ente
é. Sábio é aquele que corresponde ao que é o todo do ente. O saber
filosófico nasce com essa atitude de ficar no espanto, cultivá-lo como
advento de que o ente é no ser.
Entretanto, o saber filosófico grego não se deteve somente
nesse espanto diante da abertura do ser, e sim se moveu na direção de
um aprofundamento, da busca de uma compreensão do ser do ente,
para além da percepção do ente no ser. Isso foi feito basicamente
por Platão e Aristóteles, que certamente sabiam muito bem que o
ente é no ser, mas estabeleceram nesse campo um pensamento do
ser do ente: idéia em Platão e enérgeia em Aristóteles. E aqui torna-se
decisivo perceber como o saber filosófico passa a ser “autônomo”,
como esse amor (eros) ao saber, a partir de uma perspectiva ampla,
se transformou em um saber específico, digamos assim, técnico.
Quando Heidegger considera que Heráclito e Parmênides ainda
não eram filósofos e, no entanto, foram os maiores pensadores, e
que Platão e Aristóteles são de fato os primeiros filósofos, está em
causa tanto uma mudança no registro da apreensão do ser quanto
da postura de quem o enuncia. Ao mesmo tempo, a concepção de
um progresso e de uma transformação do pensamento grego não
contradiz a permanência de uma unidade no interior do mesmo,
Heidegger e a arte de questionar
25
conforme se vê em uma série de análises em outros textos de
Heidegger, tais como A doutrina da verdade de Platão e Sobre a essência
e o conceito de physis na Física de Aristóteles.11 Ao se apreender o ente no
ser de um modo mais rigoroso e determinante, por intermédio de um
pensamento do ser do ente (que ocorreu primeiramente com Platão), não
houve uma “negação” pura e simplesmente ou mesmo um “progresso”
do modo de pensar grego originário.12
Segundo o desdobramento do saber filosófico em Platão e
principalmente em Aristóteles, a filosofia procura o que é o ente enquanto
tal, no sentido de perguntar pelo ser do ente. O ser do ente consiste, por
sua vez, na entidade. Isso parece que encerra a questão quanto ao que
seja a filosofia, pois Aristóteles já deu a resposta definitiva.
Mas, Heidegger considera que temos de ir além dessa história da
filosofia inaugurada por Aristóteles e que se manteve na assim chamada
história oficial da filosofia. Antes somos convocados a travar um diálogo
com a filosofia, ou melhor, a pôr a filosofia em diálogo. E aqui se revela
um procedimento muito típico de Heidegger, que lembra uma operação
do sublime, como ato de perguntar ou de questionar. Uma das técnicas do
sublime, segundo o tratado de Longino, consiste precisamente em operar
no discurso, como forma de ampliação e engrandecimento, as perguntas
e as respostas. “Apenas enunciada, a coisa é totalmente deficiente, mas
o entusiasmo que invade [o orador], a prontidão da interrogação e da
resposta e a maneira que ele tem de responder a si como a um outro
tornam não só mais sublime o que ele diz pelo emprego da figura, mas
ainda mais digno de fé”.13 O orador envolve sua audiência, ao recorrer a
uma pergunta, bem como torna mais crível e objetivo o assunto de que
trata, inserindo o espectador no discurso. Pois, assim, permite-se que o
discurso, que era somente de um enunciador, seja compartilhado, uma vez
que naturalmente o espectador faz suas as dúvidas do orador, pensa junto
com ele. O pensamento heideggeriano, ao contrário de ser idiossincrático
Platons Lehre von der Wahrheit (1931-1932, 1940) e Vom Wesen und Begriff der Physis. Aristoteles,
Physik B, 1 (1939), ambos constantes na coletânea Wegmarken.
12
Cf. Die Gramatik des Wortes ´Sein´”, In: Einführung in die Metaphysik, p. 46-47.
13
Do sublime, p. 75.
11
26
Marco Aurelio Werle
ou hermético, como muitas vezes se afirma, é profundamente aberto,
“sublime”, e permite que o leitor encontre uma sintonia, já que não
se pensa de fato sozinho. Ao se ler os textos de Heidegger, têm-se
a impressão de estar diante de alguém que pensa efetivamente, ao
vivo, que envolve profundamente sua audiência. Filosofia aqui não
significa simplesmente transmitir conhecimentos ou criar doutrinas,
mas exercício do pensar. Exercício esse que nomes importantes da
filosofia do século XX, tal como Jaspers, Karl Löwith, Hannah Arendt
e Gadamer puderam acompanhar nos cursos universitários dados por
Heidegger nos anos 20. O caráter dialógico, porém, não é apenas algo
que se refere ao modo de pensar, e sim remete a uma concepção de
homem, tal como vemos nas interpretações dos poemas de Hölderlin,
quando se diz que “somos uma conversa [Gespräch]”.
Importa ir ao encontro da filosofia, de seu motivo mais íntimo,
o que significa ver a que responde a filosofia. “Não encontramos a
resposta à questão, que é filosofia, através de enunciados históricos sobre
as definições da filosofia, mas através do diálogo com aquilo que se nos
transmitiu como ser do ente”.14 É nessa linha que também é referido o
conceito de “destruição”, que surge em Ser e tempo e confere a esse tratado
seu sentido histórico, por mais que se queira transformá-lo em bandeira
do existencialismo. “Destruição significa: abrir nosso ouvido, torná-lo
livre para aquilo que na tradição do ser do ente nos inspira”.15
Se assim for, como, então, abordar o tema: “que é isto, a filosofia?”.
A saída consiste em corresponder ao ser do ente, tal como a filosofia
sempre procurou fazê-lo. Mas o que vem a ser essa correspondência?
Ela remete ao fato de que, ao nos debruçarmos sobre uma filosofia
qualquer, não devemos nos ater, no nível da superfície, às respostas
que os filósofos dão, aos seus sistemas de pensamento, e sim procurar
identificar seus impasses existenciais e teóricos, a correspondência inicial
que esse filósofo manteve com o ser do ente, pois é daqui que brota a
verdade de sua filosofia.16 Heidegger indica que a correspondência é
“Que é isto – a filosofia?”, p. 20.
Idem, p. 20.
Essa determinação de método parece-me estar na base da interpretação que Heidegger realiza de
praticamente toda a história da filosofia e de seus principais representantes. E via de regra ela é mal
compreendida, como se Heidegger insistisse de maneira pouco crítica num vago “impensado”, ou
aplicasse a “doutrina do ser” à história ou defendesse uma forma travestida de fundacionismo.
14
15
16
Heidegger e a arte de questionar
27
uma disposição [Stimmung], enquanto um estado de ânimo, de afinação
ou concordância. Antes de se constituir como repertório de argumentos,
toda filosofia é “precedida” ou acompanhada por uma atitude diante
do ser do ente; antes da afirmação da proposição, se apresenta o estar
situado num contexto, que nos fornece os indícios interpretativos.
Essa disposição tem, por sua vez, uma história, aliás, em cada
filosofia ela assume uma nova feição. Principalmente a disposição
da filosofia na época moderna, quando a certeza se torna critério
determinante, assume uma postura toda particular. Pois, agora, é o
critério da certeza subjetiva que se torna o parâmetro para a abordagem
do ser do ente. E, por último, Heidegger aponta para a disposição que
anima a nossa época, que é marcada por uma certa indeterminação
e confusão de princípios. “Dúvida e desespero, de um lado, e cega
possessão por princípios, não submetidos a exame, de outro, se
confrontam. Medo e angústia se misturam com esperança e confiança.
Muitas vezes e quase por toda a parte reina a idéia de que o pensamento
que se guia pelo modelo da representação e cálculo puramente lógicos
é absolutamente livre de qualquer dis-posição. Mas também a frieza do
cálculo, também a sobriedade prosaica da planificação são sinais de um
tipo de dis-posição”17. Ao introduzir o tema da filosofia no sentido da
atitude que alicerça cada filosofia, Heidegger procura mostrar que o que
interessa num sistema filosófico é a postura do filósofo diante do ser
do ente e não tanto os detalhes internos, que dizem respeito somente à
articulação no nível da representação de cada sistema.
Com essa constatação, a noção de razão e, por conseguinte, da
própria filosofia, sofre uma profunda mudança de registro, pois trata-se
de pensar o logos pela sua forma inicial de manifestação e de surgimento,
o que remete para o tema da linguagem, como sendo justamente esse
logos em estado nascente. A correspondência mais forte e original ocorre
pela experiência da linguagem. É aqui, em última instância, que se realiza
propriamente o sentido do logos. Exercer a razão é tomá-la como processo
de recolha [légein], o que de fato sempre ocorreu pela linguagem. A
17
“Que é isto – a filosofia?”, p. 22.
28
Marco Aurelio Werle
linguagem não consiste então numa mera operação específica de emitir
palavras ou sons com significado, e sim, num ato de se pôr ou se inserir
no ente em sua totalidade, de recolhê-lo deixando que seja. E o modo da
linguagem mais apto para tanto é a poesia, com cuja menção se encerra
o texto de Heidegger.
O que pensar deste desenlace que aponta para uma aliança entre
pensamento e poesia, sustentados na base da linguagem? Parece-me que
o ponto crucial não reside em inscrever ou em aproximar e diferenciar
Heidegger de processos da filosofia analítica (Wittgenstein) ou de uma
possível ética do discurso como agir comunicativo (Habermas), tal
como sugere Ernildo Stein em duas notas que colocou em sua tradução
de Que é isto – a filosofia?, e sim seria preciso refletir sobre a alusão aos
dois versos de Hölderlin, do hino Patmos (que sequer foram localizados
em nota, pelo menos na edição que aqui empregamos). Esses versos
afirmam a proximidade do pensar e do poetar, os quais moram um ao
lado do outro, em montanhas separadas por um abismo. Fazer filosofia
ou compreender filosofia exige que nos elevemos para além de um
programa fixo, por exemplo, para além das eternas e maçantes exigências
de uma moralidade ou de uma ética. O pensamento nos chama a assumir
seriamente a radicalidade e o vigor simbólico do dizer poético, que, como
dizer “frágil”, resguarda a contingência humana diante do mais elevado
e insere o homem em seu devido lugar, não como sujeito, mas como
ente solícito ao sagrado. A poesia aqui não significa um discurso frouxo
e pouco rigoroso, e sim uma operação de imaginação e de produção
divina e elevada de uma relação e de força junto às palavras, que abrigam
a maneira como o homem existe no mundo.18 Ouçamos para tanto pelo
menos toda a estrofe do hino acima referido, em particular o início, que
Heidegger tantas vezes citou, e não à toa, em seus textos:
Nah ist
Und schwer zu fassen der Gott,
Wo aber Gefahr ist, wächst
Das Rettende auch.
Próximo está o Deus,
Porém difícil é apreendê-lo,
Mas onde há perigo, cresce
Também o que salva.
18
Explorei esse aspecto do pensamento de Heidegger em meu livro Poesia e Pensamento em Hölderlin
e Heidegger.
Heidegger e a arte de questionar
29
In Finstern wohnen Na escuridão moram
Die Adler und furchtlos gehn
As águias e sem temor caminham
Die Söhne der Alpen über den
Abgrund weg
Os filhos dos Alpes sobre o abismo
Auf leichtgebaueten Brücken.
Em pontes frágeis.
Drum, da gehäuft sind rings
Por isso, por estarem reunidos
Die Gipfel der Zeit, und die Liebsten Os cumes do tempo, e os queridos
Nah wohnen, ermattend auf Morarem próximos, extenuados
Getrenntesten Bergen,
Sobre montanhas as mais separadas,
So gibt unschuldig Wasser,
Ofereçam água inocente,
O Fittige gib uns, treuestens Sinns Ó alados, nos dêem um sentido fiel
Hinüberzugehn und wiederzukehren. Para atravessarmos e retornarmos.19
Dois aspectos parecem se ressaltar nesses versos: de um lado,
a instância divina e sagrada que, para os homens, é o imponderável.
Na época moderna esse nível se revela mais como ausência do que
como presença, embora continue atuando na proximidade como fonte
doadora de sentido. Digamos que esse seja o motivo latente que nos
torna em última instância questionadores e do qual depende todo atuar
e fazer humano. De outro lado, entra em cena a fissura da existência, a
finitude humana que, embora permeada por uma escassez congênita,
imprime um calor e até mesmo provoca uma ousadia, talvez uma hybris,
que necessita da confiança do mais elevado, a solidez da natureza como
filtro dos excessos.
Esses versos de Hölderlin nos fazem lembrar das palavras que
Heidegger proferiu num discurso carregado de referências que lhe
são muito caras e que permitem ter uma noção do topos (tomado aqui
segundo suas várias acepções) a partir do qual emerge seu pensamento.
Em seu discurso de recusa ao convite para lecionar na Universidade
de Berlin, do ano de 1933, Heidegger dá a entender que a ocorrência
da filosofia não depende de uma decisão de um sábio que, digamos
assim, fechado em seu escritório e sentado numa escrivaninha, elabora
“questões” ou reflete sobre os destinos da humanidade, muito menos
surge do convívio ilustrado, culto e agitado das grandes metrópoles, mas
19
Hölderlin, Patmos [Zweite Fassung], In: Gedichte, p. 162.
30
Marco Aurelio Werle
de uma certa atmosfera propícia de familiaridade com a natureza e de
recolhimento, fornecida, por exemplo, pelo ambiente simples, acolhedor
e rústico de uma cabana da Floresta Negra. A proposta de formação
daqui decorrente requer uma certa imagem de mundo, certamente não
aquela que resulta da efetivação da “época da imagem do mundo”, que
transforma todo momento de saber em evento da cultura,20 mas a que
permite pensar o mundo como momento da physis.
E é com palavras desse texto de 1933, que tem um título bastante
provocador: Paisagem criadora. Por que permanecemos na província? que gostaria
de encerrar esse artigo: “Quando, na profunda noite de inverno, uma
nevasca selvagem, com seus solavancos se move agitadamente em
torno da cabana e tudo suspende e oculta, então chega a hora máxima
da filosofia. Seu questionar tem de ser então simples e essencial. A
elaboração de cada pensamento não pode ser senão duro e aguçado. O
esforço da estrutura lingüística é como a resistência dos pinheiros que
se elevam contra a tempestade. E a elaboração filosófica não decorre
de uma ocupação lateral de uma pessoa esquisita. Ela se situa no centro
do trabalho dos camponeses”.21
Referências bibliográficas
CARNEIRO LEÃO, Emmanuel. Aprendendo a pensar. Petrópolis:
Vozes, 1977.
GADAMER, Hans Georg. Wahrheit und Methode. Grundzüge einer
philosophischen Hermeneutik. 4. ed. Tübingen: Mohr, 1975. (1. ed.
1960).
HEIDEGGER, Martin. Todos nós... ninguém. Um enfoque
fenomenológico do social. Tradução e comentário de Dulce Mara Critelli
e apr. de Sólon Spanioudis. São Paulo: Moraes, 1981.
______. Que é isto – a filosofia? Tradução de Ernildo Stein. In: ______.
Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1989.
20
21
Cf. Die Zeit des Weltbildes, p. 5.
Schöpferische Landschaft: Warum bleiben wir in der Provinz? p. 10.
Heidegger e a arte de questionar
31
______. Einführung in die Metaphysik. 6. ed. Tübingen: Max
Niemeyer, 1998.
______. Schöpferische Landschaft: Warum bleiben wir in der Provinz?
Gesamtausgabe, v. 13. 2. ed. Frankfurt am Main: Klostermann,
2002.
______. Die Zeit des Weltbildes. In: ______. Holzwege. 8. ed.
Frankfurt am Main: Klostermann, 2003.
HÖLDERLIN, Friedrich. Gedichte. Stuttgart: Reclam, 1992.
HORKHEIMER, Max. Traditionelle und kritische Theorie. Vier
Aufsätze. Frankfurt am Main: Fischer, 1968.
INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Tradução de Luísa
Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
LONGINO. Do sublime. Tradução de Filomena Hirata. São Paulo:
Martins Fontes, 1996.
WERLE, Marco Aurélio. Martin Heidegger: O homem na clareira do
ser. In: SANTOS, Mário Vitor. (Org.). Os Pensadores, um curso. Rio
de Janeiro: Relume Dumará; Casa do Saber, 2006.
______. Poesia e pensamento em Hölderlin e Heidegger. São Paulo:
Editora da UNESP, 2005.
Recebido em: 28 de agosto de 2007.
Aprovado em: 14 de novembro de 2007.
Número Especial:
Heidegger e a Educação
Heidegger e a Educação
Edgar Lyra*
Resumo: O tema da educação em Heidegger é aqui pensado a partir de dois
momentos distintos da sua obra, separados pela conhecida “viravolta” e pelas
suas injunções políticas. Há de fato algo como um projeto pedagógico no
primeiro momento; no segundo, apenas indicações sobre o aprendizado do
Pensar. A atenção ao Ser, como o que mais essencialmente nos concerne, reúne
os dois momentos.
Palavras-chave: Educação. Linguagem. Política. Pensamento.
Heidegger and education
Abstract: The subject of education in Heidegger is here thought from two
different moments of his work. They are separated by the well-known “turning”
(Kehre) and its political injunctions. There is indeed something like a pedagogical
project in the first moment; in the second only indications on teaching and
learning of Thinking. Attention to Being, as our most essential concern, joint
both moments.
Key-words: Education. Language. Politics. Thinking.
* Doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Professor do Departamento de Filosofia da PUC-Rio e do
Departamento de Relações Internacionais do IBMEC-RJ. E-mail: [email protected].
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação
Vitória da Conquista
Ano VI
n. 10
p. 33-55
2008
Edgar Lyra
34
I
O centro de gravidade da obra de Martin Heidegger é bem
conhecido: a atenção ao Ser. Heidegger pergunta pelo sentido do Ser,
pela verdade do Ser, pela história do Ser, pela topologia do Ser, pela
relação entre homem e Ser. Falar do seu interesse pela educação é, por
conseguinte, falar de um trabalho de preparação para o acolhimento
das questões que dizem respeito ao Ser, de abertura de caminhos que
levem ao pensamento do Ser.
A obra de Heidegger é, por outro lado, muito extensa, marcada
por uma viravolta (Kehre) – a ponto de falar-se de Heidegger I e Heidegger
II. É ainda objeto de muitas interpretações, via de regra díspares,
mesmo opostas. Dados esses motivos, é preciso situar sua relação com
a educação na clareira da atenção ao Ser, tanto quanto no curso de uma
vida e obra ao longo das quais essa atenção experimentou importantes
mudanças.
Mesmo um sentido mais estrito da relação de Heidegger com
a educação, isto é, com algo que, no fim, poderia ser entendido como
“didática”, somente poderá aparecer dentro de um escopo amplo. Até
porque não seria absolutamente possível compreender essa relação,
no que ela tem de mais próprio, sem ligá-la aos seus pressupostos
ontológicos, políticos, éticos e, sobretudo, àquelas injunções que dizem
respeito à linguagem, pensada como terceiro fio de uma trança cujos outros
dois são pensamento e mundo.
II
Ser e tempo é o ponto de partida: Heidegger trabalha ali visando
a reabrir a pergunta – obstruída no curso da história da filosofia – pelo
sentido do Ser. Volta-se preliminar e metodologicamente para o Dasein1,
o ente capaz de formular a pergunta pelo Ser dos entes em geral,
Neste texto será mantido o termo original alemão. A tradução hoje mais aceita de Dasein para
o português é ser-aí.
1
Heidegger e a Educação
35
tanto quanto de se desviar dela. Incomoda, de pronto, a dificuldade de
dar contornos nítidos ao Dasein, sejam eles biológicos, psicológicos,
antropológicos ou sociológicos. Mas essa não é uma dificuldade qualquer,
episódica: até mesmo a possibilidade de separação de semelhantes
âmbitos de estudo se radica num Dasein que decerto pode fazer ciência,
mas que não se põe simplesmente diante de si mesmo para ser dissecado.
Numa aproximação lenta e circular, fenomenológica, hermenêutica,
Heidegger define pontos de partida e a eles retorna. Vai o Dasein se
configurando como um ente já sempre lançado num mundo povoado por
diversos outros entes, mundo, todavia, apenas nele assim denominado:
Welt, mundo. O Dasein não se define, por conseguinte, como um ente
simplesmente presente num mundo livre do problema do seu sentido,
da sua tradução. Tampouco se assemelha a uma consciência capaz de
abranger e concatenar os entes na totalidade do seu ser. O mundo
que o Dasein compreende como totalidade significativa ou contextual
é, simultaneamente, algo que o transcende, que o precede, que tanto
possibilita quanto limita seu existir. O Dasein está, em suma, sempre
“entre dois mundos”, seguindo a terminologia de Ser e tempo, um ôntico
e outro ontológico, um fático, outro existencial, um no qual se vê já
sempre lançado, outro que se define em seus projetos.
III
Exposta a ambivalência da relação entre Dasein e mundo, reformulo
uma das idéias diretrizes destas notas: a de que a transformação da
relação de Heidegger com a educação, em quaisquer acepções, segue
o crescimento da sua atenção ao mundo no qual o Dasein já sempre se
encontra lançado, mais precisamente, ao poder que tem esse mundo
de sustentar e limitar seus projetos. É nesse mundo, no fim, que ele
tem que levar a termo suas pendências, dentre elas a tarefa de pensar
o Ser. A pedagogia heideggeriana está, portanto, ligada à viravolta no
seu pensamento, aqui compreendida como crescimento da atenção
do Dasein-Heidegger àquilo que a cada momento lhe é destinado e
Edgar Lyra
36
com o que ele tem, de uma forma ou de outra, que haver-se em seus
caminhos. As atenções às origens do Ocidente, à história da metafísica
e suas cristalizações, às injunções que conferem à técnica sua presente
hegemonia, sobretudo a atenção a uma linguagem dita “morada do
Ser”, todas essas atenções desbrocham de um mesmo e renovado
espanto, experimentado nas correntezas do mundo no qual esse Dasein
se descobriu, em algum momento, “realmente” lançado. Estas notas
passam, enfim, necessariamente por dentro do envolvimento do filósofo
com o nacional-socialismo, numa leitura que, todavia, como ficará claro,
recusa os contornos de um tribunal.
IV
A questão da linguagem tem particular importância. Heidegger diz
em 1957, em Identidade e diferença: “A dificuldade está na linguagem”.2
Mas é também fato que trinta anos antes ele já se via às voltas com essa
dificuldade e diante do problema de decidir como lidar com ela. Algumas
notas colhidas no período que vai de Ser e tempo até a viravolta serão, a
partir daqui, trabalhadas de modo a explicitar a transformação no modo
de Heidegger lidar com o mundo, especialmente com a linguagem nele
sedimentada.
Algumas citações são necessárias à indicação da importância dessa
transformação, que tem certamente a ver com “educação”. A primeira
vem de Ser e tempo. Falando da terminologia empregada no livro, o autor
diz: “Nesse campo de investigação a violência não é arbitrariedade, mas
uma necessidade fundada nas coisas elas mesmas”.3 A segunda afirmação
distancia-se mais de quarenta anos da primeira. Em entrevista concedida
a Richard Wisser, em 1969, Heidegger diz que a tarefa do pensamento
Heidegger, 1957, p. 72-73, (trad. br., p. 400): “Das schwierige liegt in der Sprache”. Na medida
em que a cronologia das obras citadas tem um papel importante na articulação dos argumentos
e na íntegra da exposição, as referências foram feitas a partir das datas de conclusão dos textos
pelos autores, indicadas nas notas de rodapé e na bibliografia sempre imediatamente à direita
dos seus nomes. Seguem-se as demais informações relevantes, por exemplo, o ano das edições
efetivamente consultadas.
3
Heidegger, 1927, p. 327 (trad. br. v. 2, p. 121).
2
Heidegger e a Educação
37
“exige um novo cuidado com a linguagem, e não a invenção de termos
novos como eu pensava outrora”.4 Não poderia ser mais flagrante a
mudança.
Mas, voltemos a 1927, à introdução de Ser e tempo:
Quanto ao desalinho e à “falta de beleza” das expressões
inseridas nas análises que se seguirão, deve-se acrescentar a
nota: uma coisa é fazer um relatório enumerativo dos entes, outra
é apanhar o ente em seu Ser. Para esta última tarefa faltam na
maioria das vezes não apenas as palavras, mas acima de tudo a
“gramática”.5
Percebe-se que havia atenção à linguagem e à sua importância para
a reabertura da pergunta pelo Ser, mas não à sua plasticidade própria,
à necessidade, como será dito mais tarde, de “ser atencioso no trato com
o dizer”.6 Enfim, é como se no momento da ontologia fundamental a
linguagem vigente fosse sub-repticiamente tratada como uma espécie
de “instrumento deficiente”, que acima de tudo prescinde de um léxico
e de uma gramática adequados ao trabalho de reabrir a questão do
sentido do Ser.
Não é demais propor que essa violência feita à linguagem em
prol da reabertura da questão do sentido do Ser tenha diretamente a
ver com a nomeação, em Sobre o humanismo (1946), de um esquecimento
do Ser comungado inclusive pelo autor de Ser e tempo.7 Subjaz à só
então nomeada viravolta o problema da forma como Heidegger
essencialmente foi compreendendo o modo de ser da linguagem na
qual Ser se diz e se pensa. O que seja esse “ser da linguagem”, que se
estende certamente ao uso, ao gesto, ao tom, é algo que aqui terá de se
manter como questão de fundo. Apenas sabemos que Heidegger vai
gradativa e explicitamente assumindo o fato de estar “a caminho da
linguagem” (Unterwegs zur Sprache).
Heidegger, 1969, p. 77 (trad. br., p. 17).
Heidegger, 1927, p. 38 (trad. minha; itálicos e aspas do autor).
Cf. p. ex. Heidegger, 1950, p. 33 (trad. minha).
7
Cf. Heidegger, 1946, p. 17 (trad. br. 1973, p. 354).
4
5
6
Edgar Lyra
38
V
Os chamados “textos políticos”, dado que se relacionam entre si
num arco de mais de dez anos, fornecem uma perspectiva interessante
sobre o trato com uma linguagem dita constituinte e limitante das
relações entre pensamento e mundo.
Especialmente dignos de atenção são os documentos redigidos
em 1945, dentre os quais a Carta ao Reitor da Universidade de Freiburg,
pedindo reintegração, o texto intulado O reitorado: 1933-1934, além do
famoso discurso reitoral – A auto-afirmação da universidade alemã, proferido
em 1933.
Heidegger afirmava na carta ao Reitor estar de início “persuadido
que, se todos aqueles que tinham uma responsabilidade espiritual
pudessem começar, num estado de independência, a trabalhar em
conjunto, muitas coisas essenciais, presentes somente em germe no
movimento nacional-socialista, poderiam ter sido aprofundadas e
metamorfoseadas”, contribuindo assim para “ultrapassar a situação
de perturbação da Europa e a crise do espírito ocidental”.8 Explicava
também que, na medida em que essa aliança não se concretizou e a
planificação político-burocrática passou a dominar a cena, “o simples fato
de exercer à minha maneira o meu trabalho de filósofo era já resistência”.
Duas linhas depois, refere-se ao fato de ter ministrado, logo após sua
demissão da reitoria, um curso que, “sob o título a doutrina do logos,
tratava da essência da linguagem”. Procurava nele opor às genealogias
biológico-raciais em ascensão a tese de uma essência humana fundada na
“linguagem como realidade fundamental do espírito”.9 Acrescente-se:
no curso imediatamente seguinte, no semestre de inverno de 1934 para
1935, Heidegger já se volta para o poeta Friedrich Hölderlin.10
Heidegger, 1945a, p. 196 (trad. port., p. 178). A primeira compilação dos textos políticos de
Heidegger foi feita por François Fédier, com auxílio e anuência de Harmut Tietjen e Hermann
Heidegger. É dela que me sirvo, bem como de sua correta tradução para o português, no que
concerne à versão de Heidegger sobre os fatos do reitorado e à sua carta de 1945 ao reitor
de Freiburg.
9
Idem, ibidem, p. 199 (trad. port., p. 181-182). O curso referido foi ministrado no semestre de verão
de 1934 e publicado com o título de Über Logik als Frage nach der Sprache. Cf. Heidegger, 1934.
10
Cf. Heidegger, 1935. Hölderlins Hymnen “Germanien” und “Der Rhein”.
8
Heidegger e a Educação
39
O segundo dos textos mencionados, O reitorado, fornece mais
elementos. Mostra um ex-reitor decepcionado com o parco acolhimento
da proposta, segundo ele, claramente exposta no discurso de posse, o
mencionado A auto-afirmação da universidade alemã. Dizia que “o discurso
não foi entendido por aqueles a quem dizia respeito”, nem em seu
conteúdo nem no que deveria ser, durante a sua atividade no cargo,
a chave “para distinguir o essencial do que era menos importante ou
apenas exterior”.11 Dizia, enfim, que “o discurso do reitorado tinha
sido pronunciado para nada”, que “no dia seguinte à cerimônia, tudo
já tinha sido esquecido” e que “durante todo o tempo que durou o
reitorado nenhum dos colegas fez qualquer tipo de pronunciamento
sobre o discurso”.12
A leitura atenta de A auto-afirmação da universidade alemã gera
boa dose de perplexidade. Ali está, de fato, claramente expresso o
compromisso com uma universidade voltada para o constante exame
reflexivo de suas próprias bases13, para um “questionamento capaz de
estilhaçar o encapsulamento das ciências em disciplinas separadas”14 e,
sobretudo, determinado a pôr fim à idéia do conhecimento universitário
como “treinamento rápido para uma profissão ‘distinta’”. É também
claro o alinhamento desse projeto a uma missão espiritual (geistige Auftrag)
do povo alemão, missão de, em meio a um Ocidente decadente, cuja
desgastada cultura de aparências se encontraria em vias de se deixar
asfixiar na loucura, formar líderes (die Führer) capazes de fundamentar
sua autoridade na capacidade de deixar-se guiar (führen) por esse destino
espiritual.16
Tudo isso é claro nesse discurso, cujo tom dificilmente poderia ser
mais conclamatório, mais incisivo. Mas, que tipo de recepção Heidegger
poderia efetivamente reivindicar? Em que termos poderia esperar, por
exemplo, uma “compreensão genuína” da dita “missão espiritual do
Heidegger, 1945, p. 226 (trad. port., p. 201).
Idem, ibidem, p. 229 (trad. port. p. 204).
13
Heidegger, 1933, p. 8-9. As traduções deste texto são todas minhas.
14
Heidegger, 1933, p. 22-23.
15
Idem, ibidem, p. 30-31.
16
Idem, ibidem, p. 42-43.
11
12
40
Edgar Lyra
povo alemão”? Em que medida o espírito alemão, que nele, Heidegger,
assumia a linguagem como sua “realidade fundamental” – linguagem,
diga-se, que em 1927 era alvo de justificada violência e que agora se
tornava tão estridente –, em que medida esse espírito estaria pronto para
sua missão? As ressalvas presentes no discurso, insistindo na relação
dessa missão com a prática constante e rigorosa do questionamento,
deveriam, por acaso, ser suficientes para gerar o entendimento, o grau de
compromisso e responsabilidade que Heidegger entendia aí envolvido?
Em que medida, enfim, esse discurso lograria deslocar o entendimento
simplificadamente nacionalista e voluntarista, ufanista mesmo, da
expressão “missão espiritual do povo alemão” para o âmbito de um
questionamento que permanecesse, nas palavras do discurso, “firme, a
descoberto, em meio à incerteza da totalidade do ente”17 ?
Heidegger parecia pautar-se por uma esperança de poder
contar com uma “elite espiritual” de professores e alunos capazes de,
naquele momento histórico, entregar-se ao risco de fazer frente tanto
à cristalização dogmática do “novo”, isto é, a uma ciência política que
emergia apoiada em bases étnicas e com pretenso amparo filosófico,
quanto à inércia do “velho”, da velha universidade, simplesmente entregue
à compartimentalização disciplinar e aos mandarinatos acadêmicos.18 E
conclamava essa virtual elite a acompanhá-lo na sua revolução.
O primeiro lugar em abundância no discurso reitoral é, inclusive,
disputado entre a palavra espírito (Geist)19 e o verbo querer (wollen)
usado em tom conclamatório. Várias vezes Heidegger disse: queremos
ou não queremos essa universidade, essa luta, essa transformação
real? Mesmo que se tente justificar o tom a partir das urgências do
momento, a situação permanece insólita quando se fixa a vista no
que, para o autor de Ser e tempo, devia estar implicado nesse “querer”.
Ele chamava atenção para a cota de sacrifício e para a dificuldade aí
envolvida, mas parecia não se aperceber que esse querer a si mesmo,
agora coletivo, essa decisão por um espírito alemão capaz de salvar o
17
18
19
Idem, ibidem, p. 22-24/23-25.
Cf. Heidegger, 1945.
Cf. a respeito dessa presença da palavra “espírito”, Derrida, 1987: De l’Esprit.
Heidegger e a Educação
41
mundo, se chocava, no fim das contas, com a raridade e a singularidade
de disposições como a “decisão” de Ser e tempo, mesmo com a disposição
“audaz”20 para o enfrentamento da constante possibilidade do Nada,
presente em O que é metafísica? (1929). É quase como se nessa passagem
do individual ao coletivo, o momento histórico e a conclamação do reitor
se confundissem com o apelo angustiante oriundo do próprio Ser, apelo
que, seis anos antes, Heidegger dissera dirigido a um Dasein sempre às
voltas com a tendência, constitutiva, frise-se, de fazer como todo mundo
faz, de furtar-se a experiências profundas e responsabilidades reais. Não
se pode, fora isso, deixar de perguntar: seria mesmo uma atitude líquida
para todo Dasein decidido lançar-se naquele momento numa reforma
universitária supostamente capaz de mudar a base ôntica do mundo?
Dificíl mesmo, para sintetizar esse inventário de perplexidades, é imaginar
que a ligação do mundo espiritual de um povo com a “conservação
mais profunda das suas forças de solo e sangue (seiner erd- und bluthaften
Kräfte)”,21 pudesse ser recebida de forma “filosófica”, isto é, depurada
de componentes ideológicos.
Não é de se estranhar, portanto, dentro desse quadro insólito,
que o discurso de posse tenha tido a repercussão que teve. Rüdiger
Safranski lista na sua biografia vários comentários díspares. Karl
Löwith, por exemplo, teria dito sobre “o efeito imediato desse discurso
que [os que o ouviram] não sabiam se deviam estudar os pré-socráticos
ou entrar na SA”; Karl Jaspers, em carta de 23/08/1933, escreveu a
Heidegger agradecido, registrando sua comoção em face da menção à
Antigüidade Grega e dizendo que sua confiança no filosofar do colega
“não se perturba com as características de momento desse discurso,
com algo que nele parece um pouco forçado”; Benedeto Croce, para
encerrar, também em carta, afirmava: “Finalmente li todo o discurso
de Heidegger, que é ao mesmo tempo tolo e servil”.22
Cf. Heidegger, 1929/49, p. 34 (trad. br., p. 240).
Heidegger, 1933, p. 24-25.
22
Cf. Safranski, 1999, p. 298. A tradução do trecho atribuído a Jaspers foi modificada a partir de
Heidegger-Jaspers, 1920/1963, p. 155. Anos mais tarde Jaspers diria ter procurado “interpretar o
discurso da ‘melhor maneira’ para poder continuar dialogando com Heidegger, mas que, na realidade,
sentira repulsa pelo ‘nível insuportavelmente (unerträglich) profundo e estranho’ da fala e das atitudes
de Heidegger” (cf. Safranski, 1999, p. 299 e Heidegger-Jaspers, 1920/1963, p. 258).
20
21
Edgar Lyra
42
Foi o próprio Heidegger, enfim, que qualificou esse reitorado
como “a grande estupidez (die grösste Dummheit) da sua vida”.23
VI
O desabafo feito a François Fédier não fecha decerto a questão,
sobretudo quando se trata não de apurar uma culpa, mas de tentar
aprender algo sobre as possibilidades do pensamento no ruidoso
mundo contemporâneo. Olhando mais de perto o texto de 1945, no
qual Heidegger comenta o período do reitorado, percebe-se que ele se
apoiava na sua história docente para reivindicar eco ao seu discurso e
mandato. Alegava que em 1933, ano da posse reitoral, seu discurso de
cátedra em Freiburg, o já mencionado O que é metafísica?, de 1929, já se
encontrava “traduzido para o francês, italiano, espanhol e japonês”.
Alegava também que a conferência Sobre a essência da verdade havia sido
pronunciada entre 1930 e 1932 em vários lugares da Alemanha e que “por
toda a parte se podia saber o que eu pensava sobre a universidade alemã
e o que considerava ser a sua exigência mais imperiosa”.24 Imaginava,
ao ser convidado para o cargo, estar sendo entendido e ter amparo não
só dentro da universidade como fora dela. Com efeito, lendo Hannah
Arendt e seu Martin Heidegger faz oitenta anos 25 entende-se que corria um
rumor pela Alemanha, antes mesmo da publicação de Ser e tempo, de
que havia em atividade um mestre capaz de dar carnadura ao projeto
de Husserl de pensar não de forma exegética, vazia ou doutrinal, mas
tomando por base as “coisas mesmas”. Ainda o biógrafo Safranski
descreve o período de Heidegger em Marburg como de grande
popularidade e intensidade, relatando que preleções suas dadas às sete
horas da manhã chegaram, após dois semestres, a contar com uma
assistência de 150 alunos.26 As expectativas de Heidegger se deslocam,
por conseguinte, da simples cobrança de resposta a um discurso isolado
Cf. Fédier, 1988, trad. br., p. 164.
Heidegger, 1945, p. 218 (trad. port., p. 194).
Cf. Arendt, 1969.
26
Cf. Safranski, 1999, p. 167 et seq.
23
24
25
Heidegger e a Educação
43
para entranhar-se num outro tempo e modo de interação com o mundo
dos seus possíveis interlocutores.
Vale ainda assinalar o quanto, nessa época, ele apostava em
experiências do tipo “acampamento de alunos e professores”, nos
quais se podia trabalhar o pensamento num outro nível de proximidade,
diferente dos cursos em salas de aula.27 Muito citado é o episódio do
tumultuado acampamento de Todnauberg, no inverno de 1933 para
1934, no qual o reitor Heidegger teria tentado esclarecer a professores
e alunos, em discussões abertas, “a parte central do Discurso do reitorado
e apresentar de uma maneira mais penetrante a tarefa da universidade,
tendo em conta os perigos[...]”.28
Por fim, digna de registro é também aquela que teria sido sua
última cartada político-pedagógica, a colaboração, depois da demissão
do reitorado, com o projeto da Academia ou Escola de professores do Reich,
colaboração amiúde descrita por Vitor Farias no seu Heidegger e o nazismo
(1987).29 Farias diz: “Parece que Martin Heidegger teve chances reais
de se tornar diretor de uma instituição destinada a controlar a seleção e
a doutrinação de todos os jovens acadêmicos e, através disso, a médio
prazo, de toda vida universitária do Reich”.30 Na medida em que Hugo
Ott, no seu Martin Heidegger – a caminho da sua biografia (1988), também
atesta essa mesma chance na descrição de reações internas no partido a
essa nomeação, o projeto assume um perfil destacado. Mas esta não é a
ocasião para discutir os trechos – hoje bem conhecidos – das acusações
Cf. Ott, 1988, p. 219 et seq.
Heidegger, 1945, p. 231 (trad. port. p. 206).
29
O livro de Vitor Farias é bem conhecido pela sua parcialidade interpretativa. Mas deve também
ser reconhecido pela sua contribuição em pesquisa de fontes e arquivos. Há duas excelentes réplicas
a esse livro – Fédier, 1988: Heidegger: anatomia de um escândalo e Loparic, 1990: Heidegger
réu – um ensaio sobre a periculosidade da filosofia. O primeiro é um trabalho exaustivo de defesa de
Heidegger feito a partir do rastreamento das mesmas fontes e da problematização dos argumentos
usados por Farias; já o segundo transcende em muito o âmbito de uma defesa, sendo um texto
filosófico de envergadura ampla e, pode-se dizer, mais de inclinação kantiana que heideggeriana.
Atualmente, o livro de maior visibilidade sobre o envolvimento de Heidegger com o nazismo, mais
do que isso, sobre o teor nazista de sua filosofia, é o de Faye, 2005: Heidegger, l’introduction
du nazisme dans la philosophie. Entrar no mérito das suas teses e revelações demandaria um
exame cuidadoso do material de que se serve o autor, trabalho esse até agora desestimulado pelas
suas interpretações incrivelmente tendenciosas dos textos mais conhecidos de Heidegger por
exemplo, a que compara Ser e tempo a Mein Kampf, de Hitler (op. cit., p. 12).
30
Farias, 1987, p. 270.
27
28
Edgar Lyra
44
dirigidas a Heidegger pelo psicólogo Erich Jaensch em relatório destinado
a bloquear sua nomeação para o cargo da Academia, relatório no qual
as idéias filosóficas de Heidegger são ditas fraudulentes e “capazes
de degenerar em psicose de massa”,31 além de serem espiritualmente
aparentadas ao judaísmo.32
Mais necessário é assinalar que, no projeto que foi alvo da crítica
de Jaensch, Heidegger se mostrava incisivamente atento ao problema
do compartilhamento do pensar. Falava enfaticamente da necessidade
de “despertar e consolidar a atitude educativa (pois o professor não é o
pesquisador comunicando o resultado de suas próprias pesquisas e das
de outros)”. “Cursos não”, dizia, “mas sim uma verdadeira escola”,33 na
qual propunha a “alternância natural de trabalho científico, recreação,
concentração, artes marciais, trabalho físico, marchas, esportes e
festas”.34 O trecho a seguir é particularmente ilustrativo:
[...] aprenderão a dialogar, a dirigir uma disputatio, a saber escutar,
a apreender o essencial, a raciocinar de maneira concisa, a
conduzir a luta com um máximo de perspicácia e, sobretudo, a
respeitar estritamente a orientação da questão e o encadeamento
dos argumentos. O laxismo e a incapacidade de pensar, a falta
de domínio da palavra e do conceito que caracterizam hoje,
e há muitíssimo tempo, os seminários universitários, passam
dos limites. Só será possível remediá-los através de uma nova
educação de professores universitários”.35
VII
Analisando esses episódios político-pedagógicos à luz do que
foi dito sobre a viravolta de Heidegger, a impressão que fica é, por
um lado, a de um Dasein certamente lúcido quanto à importância de
um solo mundano propício ao pensamento; por outro, esse mesmo
Farias, 1987, p. 272.
Ott, 1988, p. 248.
33
Farias, 1987, p. 264.
34
Idem, ibidem, p. 265.
35
Idem, ibidem, p. 266.
31
32
Heidegger e a Educação
45
Dasein parece disposto a providenciar esse solo a todo custo. Pelo tom
e conteúdo dos vários textos e discursos que se encontram hoje
disponíveis, é como se toda sorte de movimentos se justificasse em
prol de uma chance única de resgate da universidade como centro de
questionamento radical e formação de verdadeiros líderes capazes
de zelar por um espírito alemão à altura da tarefa de salvaguardar o
pensamento do Ser.
O que costuma ser difícil de aceitar num pensador da envergadura
de Heidegger é a subavaliação do furor técnico-burocrático que grassava
por toda parte, paralelamente à hiperavaliação das possibilidades de
consolidação de uma “elite” realmente pensante e dialogante que pudesse
fazer frente ao extravio geral. Ambos os equívocos de avaliação revelariam
uma trágica incapacidade de perceber em sua consistência e força própria
o estofo histórico do mundo, ou, segundo a metáfora buscada logo em
seguida em Hölderlin, a correnteza do rio do mundo.
O que há de menos interessante, todavia, é atermo-nos à miopia
política de Heidegger como se ela fosse mera estupidez ou desvio de
caráter. Pois, salvo a singularidade daquele momento alemão, o problema
então enfrentado continua de pé: o que fazer, por exemplo, num cenário
técnico mundial que, nas universidades – para ficar nas universidades –
se reflete em disciplinas cada vez mais incapazes de pôr-se em questão
nos seus implícitos de produtividade?
O que parece de mais importante ter ocorrido a Heidegger
depois do desastre do reitorado, foi a percepção de que o mundo
no qual o pensamento tem que acontecer, precisa, antes de qualquer
coisa, ser objeto de atenção em sua plástica, em seus destinos, em seu
relevo ou correnteza.
VIII
Esta recuperação toda do movimento de Heidegger no período
em que se deu o reitorado possibilita pensar, com o devido tempo e
paciência, as diversas direções da obra posterior a 1934, por exemplo,
46
Edgar Lyra
o surgimento de uma atenção à poesia e à arte, até então inexistente no
seu pensamento. Heidegger passou, enfim, por um período de ativismo
apenas dentro do qual se encontra algo como um projeto político-pedagógico
em seu pensamento, projeto que visava, ao que parece, a uma nova
“Paidéia ocidental”.
Passado o período de cassação dos seus direitos docentes,
determinado pelo comitê de desnazificação da Alemanha, o filósofo
ministrou de início, entre 1951 e 1952, dois cursos em Freiburg. Escolheu
para título desses cursos uma pergunta: Was heißt Denken?, A que chamamos
Pensar?, ou, simplesmente, Que quer dizer Pensar? Salta aos olhos que seja
esse o título e o tema escolhido, sobretudo se levarmos em conta que se
trata da volta à mesma universidade que ele, quase duas décadas antes,
quisera ativamente transformar em trincheira de pensamento.
Boa parte das direções do diálogo com o mundo que Heidegger
foi entabulando após a viravolta, se encontra nesse texto. Atenho-me
aqui ao primeiro dos cursos, no qual aparece repetidamente a instigante
afirmação de que “ainda não pensamos”. Há nessas aulas uma conversa
próxima com Hölderlin e Nietzsche, ambos em evidência no cenário
nacional-socialista dos anos 1930, ambos incessantemente lidos e
reinterpretados por Heidegger depois de 1934.
O recurso a Hölderlin continua a buscar reverberação, partindo
de palavra poética factualmente presente no mundo, da relação com
um Ser que nos chama a pensar justo no que se retira, no que nos nega
qualquer compreensão acabada. Ein Zeichen sind wir/ deutungslos (Somos
um signo/ sem sentido) – é o verso que, tirado do poema Mnemosyne,
remete a algo que escapa, que não se deixar capturar, fixar, precisar. Um
segundo verso do mesmo poema é citado: Schmerzlos sind wir und haben
fast/ Die Sprache in der Fremde verloren (Somos incapazes de dor e quase/
perdemos a linguagem na terra estranha). A terra estranha, aquela na
qual quase perdemos a linguagem, Heidegger nos deixa a supor que seja
o lugar onde viemos parar tentando capturar o sentido último e fugitivo
daquilo que nos faz pensar. Heidegger não comenta explicitamente o
verso: prossegue abordando imediatamente a questão da cisão entre
Heidegger e a Educação
47
Mythos e Logos. Alude ao fato do pensamento sobre o pensamento ter-se
desdobrado no Ocidente como “lógica”, mudada pouco a pouco em
“logística”, isto é, ciência comprometida com o desenvolvimento de
um “pensamento sobre trilhos” (eingleisig Denken), cuja busca de eficácia
geraria, dentre outras coisas, nossa atual submissão a formulários, tabelas
e índices de avaliação, bem como, mais despercebidamente ainda, o uso
corrente de uma linguagem altamente instrumentalizada, presente, por
exemplo, no Brasil, em siglas mais ou menos fugazes como RG, CPF,
PIB, CPMF, MEC, AVC, etc.
Nietzsche é evocado pela primeira vez a partir de uma palavra
proferida pela sombra de Zaratustra. Ele, a sombra, escolhe para título
de uma canção: “o deserto cresce: ai daquele que abriga desertos”.36 Essa
sombra, embora Heidegger não o diga explicitamente, é para Nietzsche
o europeu expatriado à procura do seu lar, a quem Zaratustra adverte
afetuosamente: “Não é pequeno o perigo que corres, ó espírito livre
e errante! Tivestes um mau dia; cuida de que não te colha uma noite
ainda pior! Para criaturas sem pouso, como tu, até uma prisão, no fim,
parece uma ventura”.37
A palavra que introduz Nietzsche no curso – “o deserto cresce...”
– é também evocada na esteira de uma série de considerações sobre a
hegemonia da técnica, com exemplos detalhados da tecnicização da
universidade e do empobrecimento geral da linguagem, ligando-se
assim, intimamente, à apropriação da poesia de Hölderlin. Mas essas
considerações todas não são jamais feitas em tom de lamúria, isto é,
acusando uma mera decadência do Ocidente, mesmo porque assim
proceder seria matar toda a disposição para pensar esse movimento do
destino em seus enigmas. Nietzsche, no caso, é contraposto a um certo
“romance jornalístico”, que “chafurda na decadência e na depressão”, diz
Heidegger nomeando Spengler como expoente dessa literatura. Nietzsche,
eleito o último pensador da metafísica, é o “tímido” que berra tentando
pensar o que precisa ser pensado, dizer o que precisa ser dito:
36
37
Zaratustra IV, “As filhas do deserto”.
Zaratustra IV, “A sombra”
Edgar Lyra
48
E, no entanto, ao ensinar, tem-se de vez em quando que elevar
a voz. Tem-se mesmo que gritar e gritar, e mesmo quando se
trata de convidar a aprender coisa tão quieta quanto o pensar.
Nietzsche, que foi um dos homens mais quietos e tímidos,
conhecia essa necessidade. Ele suportou a agonia de ter que
gritar. Numa década em que o mundo público ainda nada sabia
de guerras mundiais, em que a fé no “progresso” se tornara quase
a religião dos povos e estados civilizados, Nietzsche anunciou
aos berros: “O deserto cresce...” Com isso perguntava aos seus
semelhantes e sobretudo a si mesmo: “Será preciso primeiro
despedaçar-lhes os ouvidos para que possam ouvir com os
olhos? Será preciso matraquear como tambores ou pregadores
de sermões?” (Assim falou Zaratustra, Prólogo, 5) Mas, enigma
sobre enigma! O que uma vez foi grito: “O deserto cresce...”,
ameaça agora tornar-se conversa fiada. O caráter ameaçador dessa
reviravolta (Verkehrung) pertence àquilo que nos dá a pensar.38
X
O problema, bem se vê na apropriação de Hölderlin e Nietzsche
feita em 1951, é o de encontrar caminhos para o pensamento num
mundo instrumentalizado, ruidoso, desassossegado, empobrecido por
uma linguagem voltada para o que é útil e imediato, sobretudo partindo
da memória de uma “grande estupidez”. Pois é justamente em meio
a esse núcleo de preocupações que Heidegger fala mais diretamente
sobre o ensinar e o aprender, a saber, a um grupo bastante numeroso
e qualificado de alunos.39
Traduzi e transcrevo a longa passagem, situada na transição da
primeira para a segunda aula do curso, para em seguida comentá-la e
finalizar estas notas:
Buscamos no curso desta aula aprender o pensar. O caminho
é amplo. Arriscamos apenas poucos passos. Eles conduzem,
quando bem dados, aos contrafortes do pensamento. Levam
a lugares que temos que atravessar para, de lá em diante,
Heidegger, 1951/52, p. 19. As traduções de Was heißt Denken? são todas minhas.
Como é possível depreender da correspondência da época entre Heidegger e Arendt (cf. Heidegger;
Arendt, 1925/1975) e, também, como pude conferir em conversa recente com Ernst Tugendhat, um
dos que lá estiveram presentes, esses cursos foram assistidos por cerca de 1200 pessoas distribuídas
em 3 salas. Heidegger diz à revista Der Spiegel em 1966 que, apesar de editado com rapidez, já em
1954, pela Neske, o texto é talvez “o menos lido de todos aqueles que publiquei.”
38
39
Heidegger e a Educação
49
chegarmos onde apenas o salto ainda tem serventia. Só o salto
nos leva à região do pensamento. Por isso, aprendemos desde o
início do caminho alguns exercícios preliminares de salto, sem
imediatamente notá-los ou precisarmos notar.
À diferença de um progresso constante, no qual despercebidamente
passamos de uma coisa a outra e no qual tudo permanece
igual, o salto nos leva de súbito para lá onde tudo é outro,
nos desconcertando. O súbito, o vácuo, é o que, abrupto,
repentinamente despenca ou se eleva. Marca a beira do abismo.
Mesmo se não nos precipitamos num tal salto, nos des-norteia
aquilo que ao salto nos leva.
É perfeitamente razoável, pois, que já no princípio do nosso
caminho nos deparemos com o desnorteante. Entretanto, não
seria bom se o desconcertante adviesse apenas pelo fato de vocês
ainda não prestarem nisso suficiente e precisa atenção. Nesse
caso, lhes teria passado inteiramente despercebido justamente
aquele desconcerto que reside na própria coisa em questão. A
coisa do pensamento é sempre algo desnorteante. E tão mais
desnorteante quanto mais livres de juízos preconcebidos nos
mantivermos. Para isso, é preciso disponibilidade para ouvir. Essa
disponibilidade nos leva a transpor as cercas da opinião comum e
chegar a um terreno mais aberto. Insiramos agora, no intuito de
ampará-la, algumas notas intermediárias que, simultaneamente,
servirão para todas as horas de aula restantes.
O perigo de que haja um mau entendimento em face do
pensamento é particularmente grande nas universidades,
sobretudo nas ocasiões em que o discurso lida imediatamente
com a ciência. Pois, em que outro lugar se exige de forma mais
coercitiva que nós quebremos a cabeça do que nas instituições
de pesquisa e ensino ligadas ao trabalho científico? Que arte e
ciência – ainda que em discursos solenes sejam invocadas sempre
juntas – são totalmente diferentes uma da outra, é coisa que
todo mundo admite sem reservas. Quando, por outro lado, o
pensamento é diferenciado da ciência e posto em contraste com
ela, isto é tomado com um rebaixamento. Teme-se até mesmo que
o pensamento se mostre hostil em relação à ciência, que torne
obscura a seriedade e estrague o prazer do trabalho científico.
Mesmo se tais temores fossem legítimos, o que não é
absolutamente o caso, permaneceria ao mesmo tempo uma
50
Edgar Lyra
falta de tato e de gosto dispor-se contra a ciência num lugar
destinado à instrução científica. Já o tato leva aqui a evitar
toda polêmica. Mas não é só disso que se trata. Cada forma
de polêmica compromete já de antemão a atitude própria do
pensamento. A postura de um adversário não é a do pensar. Um
pensamento só pensa quando segue algo que fala por alguma
coisa. Todo esse falar defensivo tem aqui exclusivamente o
sentido de proteger o que está em questão. Posto que em nosso
caminho a ciência tem que ser assunto, falamos não contra, mas
ao seu favor, a saber, a favor da clareza sobre o que seja a sua
essência. Há, sim, neste particular, a convicção de que as ciências
são em si algo de positivamente essencial. Sua essência, todavia,
é de natureza francamente diferente daquela que nas nossas
universidades, ainda hoje, se apreciaria conceber. É como se, em
todo caso, ainda temêssemos nos voltar para o lado provocante
do atual estado de coisas e levar a sério o fato das ciências de
hoje pertencerem ao âmbito da essência da técnica moderna, e
somente a ele. Fique bem claro, digo “ao âmbito da essência da
técnica”, não simplesmente “ao âmbito da técnica”. Paira ainda
uma névoa em torno da essência da ciência moderna. Essa névoa,
contudo, não é gerada do interior da ciência, individualmente, por
pesquisadores e eruditos. Não é sequer produzida pelo homem.
Ela se ergue da região do que é mais problemático e ainda não
pensado por nós; ainda não por nós todos, incluído este que
aqui fala e mesmo em primeiro lugar.
Por isso procuramos aqui aprender o Pensar. Percorremos
conjuntamente um caminho; não se trata de nenhuma cobrança.
Aprender significa: levar o que se faz e deixa de fazer à
sintonia com o que a cada vez, essencialmente, se dirige a nós.
Dependendo da forma desta coisa essencial, dependendo do
âmbito do qual vem esse chamamento, é diferente a sintonia e,
com isso, a forma do aprendizado.
Um aprendiz de carpinteiro por exemplo, alguém que aprende a
fazer arcas e coisas semelhantes, exercita no aprendizado não só
a destreza no uso de ferramentas. Tampouco trava conhecimento
apenas com as formas habituais das coisas que tem que construir.
Quando se torna um autêntico carpinteiro põe-se em sintonia,
antes de mais nada, com os diferentes tipos de madeira e com
as formas adormecidas no seu interior, com a madeira no seu
modo de, com a riqueza oculta da sua essência, adentrar a morada
Heidegger e a Educação
51
do homem. Esta relação com a madeira sustenta mesmo todo
ofício. Sem esta relação ele afunda na atividade vazia. A ocupação
torna-se, então, meramente definida como negócio. Todo ofício,
todo o agir humano, lida perpetuamente com esse perigo. Disso
se excetuam tão pouco o poetizar quanto o pensar.
Se o aprendiz de carpinteiro, todavia, chega ou não no
aprendizado à sintonia com a madeira e com as coisas de madeira,
isso depende manifestamente de que lá esteja alguém que lhe
ensine essa sintonia.
Realmente. Ensinar é ainda mais difícil que aprender. Sabe-se
bem disso, mas é raro que tal coisa seja levada em consideração.
Por que motivo ensinar é mais difícil que aprender? Não
porque aquele que ensina deva possuir um maior conjunto de
conhecimentos e tê-los prontos a cada momento. Ensinar é mais
difícil que aprender porque ensinar significa: convidar a aprender
(lernen lassen). O autêntico professor não ajuda mesmo a aprender
nada que não seja – o aprender (das Lernen). Por isso sua ação dá
a impressão, até com freqüência, de que com ele não se aprende
propriamente nada. É que, inadvertidamente, por “aprender”
agora se entende apenas a aquisição de conhecimentos úteis.
O professor está adiante dos aprendizes numa única coisa:
tem ainda mais do que eles a aprender, a saber, o “convidar-aaprender”. O professor tem que ser mais capaz de aprendizado
que os aprendizes. O professor está muito menos seguro do seu
assunto do que aqueles que estão aprendendo do deles. Por isso,
na relação entre o professor e aqueles que estão aprendendo,
quando verdadeira, não entra em jogo nem a autoridade do
sabe-tudo nem a influência autoritária daqueles que detêm
cargos. Por isso permanece uma grande coisa tornar-se um
professor, algo que é totalmente diferente de ser um docente
famoso. Decorre, presumivelmente, dessa grande coisa e de sua
grandeza que, hoje, quando tudo se mede pelo que é baixo e
vem de baixo, por exemplo, do âmbito dos negócios, ninguém
mais deseje tornar-se professor. É também presumível que essa
aversão esteja relacionada ao mais problemático, ao que dá a
pensar. Temos que manter bem à vista a genuína relação entre
professor e aprendizes, caso queiramos que, no decorrer deste
curso, um aprendizado possa despertar.40
40
Heidegger, 1951/1952, p. 48-51.
52
Edgar Lyra
A passagem é densa e permite retomar boa parte das teses até
aqui apresentadas. Heidegger fala de aprender a Pensar – verbo Denken
grafado com “D” maiúsculo. Compara o Pensar ao ofício do carpinteiro
com o intuito de figurá-lo como o mais fundamental ofício concernente a
todo ser humano. Aprender a pensar é tomar a direção do que o homem
tem de mais próprio, daquilo com que tem que entrar em sintonia para
“tornar-se o que é”. Tal sintonia, por sua vez, envolve a experiência e
a capacidade de acolhimento do que é essencialmente desnorteante,
vertiginoso, espantoso.
A relação insigne com o desnorteante está decerto presente em
momentos precedentes da sua obra, mesmo no discurso do reitorado,
quando Heidegger fala numa permanência “firme, a descoberto, em
meio a incerteza da totalidade do ente”. Muda, todavia, a afinação afetiva
ligada a essa permanência e à possibilidade do seu cultivo. Muda, em
outras palavras, a relação de Heidegger com o solo mundano sobre o
qual o aprendizado dessa sintonia pode e tem que se dar.
A hegemonia das ciências continua em foco. Heidegger afirma
agora que “a ciência, de sua parte, não pensa e não pode pensar”41, mas
não propõe mais nenhum mutirão espiritual capaz de abruptamente
transformar a universidade em outra coisa que não uma coleção de
escolas especializadas. Chama atenção para a atual subordinação da
ciência à essência da técnica, isto é, para o mundo da tecnologia e
da cibernética, e convida alunos e leitores a uma reflexão sobre o
sentido dessa estranha dominância. Fala ainda, no mesmo contexto,
da possibilidade de enganarmo-nos a respeito do pensamento pelo
fato de filosofarmos e, por fim, de algo que permanece continuamente
impensado, inclusive e sobretudo, para ele próprio.
Importa frisar, é dentro desse núcleo de preocupações que surge
a consideração mais pontual sobre o ensino. Heidegger fala de “ensinar a
aprender”, aprender, no fim, a habitar a vizinhança do que nos faz pensar.
Definitivamente não pertence a tal mestria a posse de um saber certo
de si, característico do “sabe-tudo” ou do “docente famoso”. Mestre
41
Heidegger, 1951/1952, p. 4.
Heidegger e a Educação
53
de verdade será quem tenha se exposto aos ventos do pensamento e
aí aprendido o respeito, a escuta, a espera e o instante. Será sobretudo,
segundo Heidegger, alguém “muito menos seguro do seu assunto do
que aqueles que estão aprendendo do deles”: donde a impossibilidade
de recortar qualquer método heideggeriano de ensino.
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Recebido em: 10 de janeiro de 2008
Aprovado em: 30 de janeiro de 2008
Número Especial:
Heidegger e a Educação
Heidegger educador
Pedro Duarte de Andrade*
Resumo: Desde Platão, a filosofia colocou-se a pergunta pelo seu caráter
pedagógico. Mas também foi preciso perguntar pelo caráter filosófico da
educação. Este artigo busca seguir na trilha desta dupla imbricação entre
educação e filosofia através do pensamento de Martin Heidegger, levando em
conta tanto aquilo que ele escreveu como sua experiência propriamente dita
como professor e reitor.
Palavras-chave: Filosofia. Educação. Heidegger. Ser. Aprender
Heidegger as educator
Abstract: Since the time of Plato, philosophy has been concerned about its
educational nature. But it was also necessary to question the philosophical nature
of education. This article will follow the path of the interrelationship between
philosophy and education through the thinking of Martin Heidegger, taking into
account both his writing and his actual experience as professor and dean.
Key-words: Philosophy. Education. Heidegger. Being. Learning.
* Doutorando em Filosofia na PUC-Rio. Professor da Pós-Graduação lato sensu (Especialização)
em Arte e Filosofia, na mesma universidade. E-mail: [email protected]
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação
Vitória da Conquista
Ano VI
n. 10
p. 57-72
2008
Pedro Duarte de Andrade
58
Há um mestre; talvez se possa aprender a pensar.
(Hannah Arendt)
Perguntamos muito, hoje em dia, sobre o lugar da filosofia na
educação. Não se trata, porém, de uma pergunta nova. Pelo contrário, na
própria origem da filosofia, entre os gregos, ela se perguntou sobre seu
caráter pedagógico. Platão considera sua famosa alegoria da caverna, na
República, não mais que uma comparação de nossa natureza “conforme seja
ou não educada”1. Era a paidéia que estava em jogo para ele. No nascimento
da filosofia, portanto, estava já destinado o problema da educação.
Na medida em que definira a verdade metafisicamente, Platão,
ao mesmo tempo, lançava para o homem, inevitavelmente, a tarefa
pedagógica. Se a verdade da realidade não está no mundo físico sensível
mas além (“meta”) dele, precisamos trilhar certo caminho para chegar
até ela, para descobrir o que as coisas são em seu ser. Somente nos
educando, poderíamos fazer a passagem do mundo fenomênico até a
sua compreensão, cuja morada seria supra-sensível.
Na alegoria de Platão, esse caminho é aquele através do qual o
prisioneiro se liberta e pode sair da caverna onde só via sombras até, ao
fim, enxergar a verdadeira luz do sol já fora da caverna. Isso significa
que, antes da educação, tal prisioneiro não apenas só via sombras. Ele
nem sequer sabia que as sombras eram sombras, julgando aquela como
toda a realidade. Platão define, assim, um estado de ignorância inicial
dos homens. É a educação que pode tirá-los daí.
Essa educação, contudo, é muito especial. Platão deixa claro que
não se trata de simplesmente “enfiar na alma o conhecimento que nela
não existe”. Não se trata, diz ele, “de conferir vista à alma, pois vista
ela já possui; mas, por estar mal dirigida e olhar para o que não deve,
a educação promove aquela mudança de direção”2. É uma conversão
da alma. Por ela, deixamos de estar presos às evidências aparentes,
aprendemos a enxergar mais além, descobrimos que o pensamento é
capaz de nos levar mais fundo na realidade do que antes supúnhamos.
1
2
Platão. A República. Belém: Edufpa, 2000. p. 319 (514a).
Idem, ibidem, p. 324 (518c-d).
Heidegger educador
59
Lendo Platão, por vezes podemos até nos confundir: estaria ele falando
da educação ou da filosofia?
Tanto uma quanto outra são, para ele, atividades, em certo sentido,
solitárias. Se lembrarmos mais uma vez da alegoria, sabemos que o
cativo compartilha a companhia dos outros homens enquanto ainda
permanece dentro da caverna, preso. Para sair de lá, parece precisar ir
sozinho, não ser acompanhado por ninguém. Não fica muito claro, na
alegoria, de que modo o prisioneiro é liberto inicialmente das correntes.
Na tradução para o português, lemos apenas assim: “vindo a ser um
deles libertado […]”3. Teria ele sido ajudado por alguém? Não sabemos
ao certo. Mas sabemos que, ao que parece, o trajeto ascendente, pelo
qual o mundo sombrio é abandonado e o mundo solar é conquistado,
será feito pelo homem só.
Esta foi uma importante intuição de Platão. Só o homem que
deixa para trás os preconceitos e as obviedades que o circundam
pode de fato ser educado ou, se quisermos, pode de fato filosofar.
Enquanto permanece na compreensão mediana dos muitos, ele evita
tanto encontrar a verdade quanto, estivesse Platão ciente ou não disso,
encontrar a si mesmo como ser singular neste mundo em que vive. Não
seria precisamente isto que pensou, cerca de dois mil e quinhentos anos
depois, um dos maiores filósofos de nosso tempo, Martin Heidegger?
*
No início dos anos 1930, Heidegger ministrou um curso em que
se dedicou à exploração do significado da alegoria da caverna de Platão,
que para ele decidira, fundamentalmente, o destino do pensamento
ocidental. Dez anos mais tarde, em 1942, este curso seria a base para
um dos mais famosos textos de Heidegger, “A doutrina de Platão sobre
a verdade”, no qual ele pretendia mostrar a relação essencial existente
entre educação4 e verdade. Seu objetivo era explicitar que o ideal de
Idem, ibidem, p. 320 (515c).
Heidegger, por boas razões que não nos interessam particularmente aqui, traduz a palavra paidéia,
de Platão, por Bildung em alemão, que geralmente traduziríamos por “formação” em português,
mas que também pode ser vertida por “educação”, sem problemas.
3
4
60
Pedro Duarte de Andrade
formação do homem, em Platão, dependia da transformação metafísica
que aí acontecia na compreensão do que seja a verdade do real.
Nada mais natural. Todo processo educacional depende daquilo
que ele tem em vista. Em filosofia, o que se tem em vista é sempre a
verdade. Logo, dependendo de como concebemos o que seja a verdade,
necessariamente irá variar o que esperamos e exigimos do processo
educacional. Devemos então, aqui, levar em conta aquilo que Heidegger
observou em relação a Platão. Mas, agora, pensando nele, Heidegger. Pois
também nele podemos dizer que a compreensão do ser do real implicou
certa noção, na maioria das vezes tácita, de um processo de formação
ou de educação do homem, por mais atípico que ele fosse.
Pensemos, por exemplo, em Ser e Tempo, primeira grande obra de
Heidegger, de 1927. Por trás de toda “inadequação e ‘falta de beleza’ do
estilo”5, que o próprio Heidegger reconhece, não poderíamos estar diante
de um grande romance de formação? Talvez Heidegger não gostasse
muito desta interpretação, pois alerta: “uma coisa é fazer um relatório
narrativo sobre os entes, outra coisa é apreender o ente em seu ser”6.
Porém, malgrado sua precaução contra um suposto caráter narrativo,
como evitar que, página após página de Ser e Tempo, sejamos tomados
pela emoção da descoberta de camadas cada vez mais profundas dos
modos de ser das coisas, que parecem corresponder ao sentimento de
uma aventura pela qual somos levados cada vez para mais perto daquilo
que realmente somos? Bem ao gosto das vanguardas modernas, não
teria Heidegger escrito uma narrativa sem contar nenhuma “historinha”,
confiando no pensamento como algo que, por mais abstrato que seja,
traz junto consigo a emoção e o sentimento? Talvez sim, já que, quase
trinta anos depois, Heidegger diria que, para descobrir o que é a filosofia,
“o caminho de nossa discussão deve ser de tal tipo e direção que aquilo
de que a filosofia trata atinja nossa responsabilidade, nos toque, e
justamente em nosso ser”7.
Heidegger, M. Ser e Tempo – parte I. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 70.
Idem, ibidem, p. 70.
Heidegger, M. Que é isto – a filosofia? In: ______. Conferências e escritos filosóficos. São
Paulo: Abril Cultural, 1979a. p. 13.
5
6
7
Heidegger educador
61
Se ousássemos descrever Ser e Tempo como uma narrativa pela
qual um homem pode passar, provavelmente ela teria o feitio de uma
epopéia em que este homem, para falar na linguagem de Kierkeggard,
é lançado no geral e pode, a partir daí, como indivíduo, alçar-se acima
dele. Nos termos de Heidegger, é a relação entre “inautenticidade” e
“autenticidade” que entra em jogo. Sob a égide da questão do ser, é a
investigação do modo de ser daquele que unicamente coloca tal questão
e, junto, coloca em jogo o seu ser que aparece como tarefa preliminar
de Ser e Tempo.8
Heidegger assume, como ponto de partida de sua investigação, a
impossibilidade de se determinar a relação entre homem e mundo através
dos pólos da interioridade e da exterioridade. Desde o início, a ênfase de
seu pensamento esteve na afirmação do modo de ser do homem como
“ser-no-mundo”, como Dasein, literalmente, “ser-aí”. Esses hífens nos
termos buscavam evidenciar o nexo estrutural, necessário e inevitável
entre homem e mundo, denunciando que um jamais é sem o outro,
isto é, que o homem só pode ser já em um mundo. Heidegger, assim,
pretendia não apenas superar a subjetividade da filosofia moderna, mas
também a herança que este subjetivismo ainda deixara na fenomenologia
de Husserl, ponto de inflexão decisivo para ele. Mundo não seria uma
propriedade que o homem pode ou não apresentar, um elemento exterior
com o qual ele pode ou não se relacionar, um lugar fora de si e que ele
pode freqüentar quando bem entende. Mundo não é um acréscimo ao
modo de ser do homem, mas constitui este modo de ser originariamente.
Todo “eu” só é junto ao “mundo”.
Desde que adentramos esse mundo, somos recebidos com um
preenchimento de sentido quase totalizante. Sabemos, mesmo sem
nunca efetivamente perguntarmos, o que fazer, como fazer, sabemos
lidar com isto e com aquilo, usar esta e aquela coisa, sabemos, enfim,
nos orientar neste lugar que chegamos. Isso significa que nossa relação
com o mundo, com as coisas e com os outros homens já está sempre
Na medida em que o projeto de Ser e Tempo foi abandonado por Heidegger antes da metade,
tomou corpo de fato na obra justamente a parte dedicada à “analítica existencial” do modo de
ser do homem.
8
Pedro Duarte de Andrade
62
dada e conta com um sentido pressuposto graças ao qual nos tornamos
familiares com o que nos rodeia. Embora esse sentido tenha importância
vital para nós, enquanto compreensão prévia e orientadora no meio do
ser, ele consiste basicamente na posição típica do que Heidegger chamou
de “impessoal”, ou seja, daquele modo de ser, literalmente, impróprio,
já que se perde no nivelamento mediano das opiniões prontas que dão
conta de todo e qualquer problema sem que aquele que responde seja
convocado naquilo que tem de próprio.
*
Se continuássemos a descrever Ser e Tempo como uma narrativa,
seu protagonista, lançado no mundo desde o nascimento, isto é, lançado
no meio das coisas, dos entes em geral, tem a possibilidade de superar
o fato de que, por este motivo, tende a interpretar tudo, inclusive a
si próprio, através da fisionomia de uma coisa, de um ente, de uma
qüididade. Nos termos de Heidegger, esta aventura é a de uma superação
da compreensão ôntica de tudo aquilo que é por uma compreensão
ontológica, ou seja, por uma compreensão que, diante do ente, pergunta
pelo seu ser sem conceber este último, mais uma vez, pelas feições do
ente, isto é, sem importar os critérios de consideração dos entes para a
consideração do que eles são em seu ser.
Neste sentido, tal aventura diz respeito a como, dada a condição
de ser-no-mundo, ou seja, modernamente, de ser situado na massa,
conquistar para si um olhar e, mesmo, uma vida que não estejam pura e
simplesmente subordinados aos preceitos que este mundo social já sempre
oferece prontos, sem que se precise pensá-los. Nosso senso comum não
é mais do que isso, um sentido comum, isto é, da comunidade, de todos
e que, sendo de todos em geral, não é de ninguém em particular, logo,
dispensa a todos e a cada um da tarefa de pensar. Exatamente porque,
com ele, já se sabe o que fazer, o que dizer e o que pensar, pode-se passar
a vida inteira sem colocar aquela pergunta de simplicidade infantil e que
as crianças, não por acaso, costumam repetir: por quê?
Heidegger educador
63
Isso não apenas deixa sem resposta esta perguntinha, o que, além
de ser de menor importância, nem mesmo é garantido que se consiga ao
colocá-la. Perdida fica, enquanto se permanece na massa e na sua opinião
pública, a chance de assumir a correspondência ao ser e, assim, poder
assumir propriamente a existência como sua, e não apenas como herança
geral recebida passivamente. No mínimo, a pergunta pelo sentido das
coisas e pela sua verdade é capaz de explicitar os pressupostos que, sem
ela, são seguidos cegamente. Testemunhamos o patético desta cegueira
em nossa vida diária quando, no âmbito moral, alguém se defende
com aquela famosa frase: “mas todo mundo faz assim…”. No fundo,
sabemos que fazer alguma coisa apenas porque todo mundo faz assim
é, no mínimo, superficial, senão estúpido. Heidegger chamou a atenção
para isso quando frisou a importância da partícula alemã man, que em
português corresponde ao “se”, como maneira de, sintomaticamente,
indeterminar o sujeito. Enquanto apenas se faz alguma coisa pois
todos o fazem, ninguém propriamente está fazendo – mas o está
impropriamente.
*
Porém, o problema não é de ordem moral, e sim do pensamento.
Esse impessoal não deve ganhar uma conotação pejorativa ou apenas
negativa, pois ele não é uma opção e nem mesmo é eliminável. Ele
faz parte, de acordo com Heidegger, da estrutura essencial do modo
de ser do homem como ser-no-mundo e, nesta medida, é a própria
abertura que se oferece para a conquista de uma outra posição. É na
compreensão mediana, cotidiana e impessoal, “lá onde já estamos”,
que se oferece primeiramente o ser e, dessa maneira, se oferece tanto a
permanecer apenas aí como a se tornar um apelo digno de ser pensado.
Em sua linguagem carregadamente ontológica, Heidegger explicitou
essa situação, quase três décadas depois de Ser e Tempo, no opúsculo “O
que é isto – a filosofia?”, da seguinte maneira.
64
Pedro Duarte de Andrade
Nós residimos, sem dúvida, sempre e em toda a parte, na
correspondência ao ser do ente; entretanto, só raramente somos
atentos à inspiração do ser. Não há dúvida que a correspondência
ao ser do ente permanece nossa morada constante. Mas só de
tempos em tempos ela se torna um comportamento propriamente
assumido por nós e aberto a um desenvolvimento. Só quando
acontece isto correspondemos propriamente àquilo que concerne
à filosofia que está a caminho do ser do ente. O corresponder
ao ser do ente é a filosofia; mas ela o é somente então e apenas
então quando esta correspondência se exerce propriamente e
assim se desenvolve e alarga este desenvolvimento.9
Heidegger está dizendo que nós já sempre estamos situados numa
certa correspondência ao modo pelo qual a realidade se apresenta, ou
seja, sempre recebe a nossa chegada ao mundo uma certa “compreensão
pré-ontológica do ser”, como a chamou em Ser e Tempo, um certo critério
pelo qual se decide o que é e o que não é. Essa é a compreensão corrente,
aquela que, abraçada por todos, não é de ninguém propriamente.
Entretanto, a filosofia só começa quando essa correspondência,
nossa “morada constante”, é assumida com propriedade, ou seja,
quando toma-se para si a tarefa de questioná-la, de pensar os critérios
de julgamento do real que herdamos “naturalmente”. Só quando
assumimos tal correspondência ao ser como nosso comportamento10
e, com isso, damos a chance de desenvolver tal correspondência num
questionamento, só aí dá-se a filosofia.
Neste sentido, o périplo narrado em Ser e Tempo é uma medida
existencial da conquista de um olhar filosófico, de uma relação com o ser
exposta ao desenvolvimento. Por isso, Heidegger afirma que a “questão
do ser não é senão a radicalização de uma tendência ontológica essencial,
própria da pre-sença, a saber, da compreensão pré-ontológica do ser”11.
Reside no modo de ser do homem, do Dasein, uma compreensão prévia
do ser, logo, uma relação com ele. Filosofia não é senão uma maneira
de radicalizar essa relação.
Heidegger, 1979, op. cit., p. 20.
“Toda relação de abertura, pela qual se instaura a abertura para algo, é um comportamento”.
Heidegger, 1979, op. cit., p. 136.
11
Heidegger, 1998, op. cit., p. 41.
9
10
Heidegger educador
65
Por isso, em Ser e Tempo, se tentássemos continuar a narrar esta
obra como uma aventura, é necessário um momento de solidão, que ali é
situado na disposição da angústia. Mas foi num curso ministrado poucos
anos depois de Ser e Tempo, publicado sob o nome de “Os conceitos
fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão”, que Heidegger
explicou melhor a importância da solidão para o pensamento.
Consuma-se por fim uma singularização do homem em seu ser-aí.
Singularização não diz, aqui, que o homem se calcifica em seu
eu diminuto e ressequido, neste eu que se espraia junto a isto ou
aquilo, que ele toma como sendo o mundo. Essa singularização
descreve muito mais aquele ficar só, no qual todo e qualquer
homem se vê pela primeira vez nas proximidades do que há de
essencial em todas as coisas, nas proximidades do mundo.12
Se encontramos, portanto, certo elogio da solidão em Heidegger,
ele não está relacionado com nenhuma sorte de subjetivismo. Decisivo
é que a solidão promove a singularização. Porém, a conquista
da propriedade ou da autenticidade só pode surgir no meio da
impropriedade e da inautenticidade que caracterizam a vida cotidiana,
da qual, aliás, jamais escapamos, mas na qual podemos tentar habitar
de modo menos impessoal do que em geral fazemos. Sempre diante
de si como possibilidade, o homem encontra-se, entretanto, situado
inclusive na possibilidade de não tomá-la para si e desenvolvê-la
singularmente.
Por isso, ainda que criticamente, Heidegger mostrou-se sensível a
explicitar, no curso de 1930 mais tarde publicado sob o título A essência da
liberdade humana, a proximidade da vida em relação à filosofia, no contexto
do que chamou de seu caráter “desafiador”13. Embora resistindo a
entregar a filosofia às demandas da ordem do dia, Heidegger insistia que
“o conteúdo dos problemas filosóficos, em si mesmo e como tal, deixa
que algo aconteça conosco”, mas “de que maneira isto acontece deve-se
12
Heidegger, M. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude e solidão. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 7-8.
13
Heidegger, M.Vom Wesen der menschlichen Freiheit. Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1982. p. 35.
Pedro Duarte de Andrade
66
experimentar no filosofar efetivo”14. Se há um ímpeto existencial em Ser
e Tempo, ele se justifica pela importância de realçar que a questão do ser
só pode, de fato, ser assumida, apropriada, radicalizada e desdobrada
quando aquele que com ela se relaciona também se coloca em questão,
ou seja, a experimenta.
*
Não é diferente com a educação. Se educar significa algo mais do
que inculcar erudição na cabeça dos que não têm, se formar representa algo
mais do que a transmissão de conhecimentos úteis, então estamos diante de
uma tarefa cujo sentido é eminentemente filosófico. Isso significa dizer que
não devemos apenas pensar qual o caráter educacional da filosofia mas, ao
mesmo tempo, qual é o caráter filosófico da educação. Educar, bem como
filosofar, deve trazer o homem para perto de si mesmo, precisa facultar a
apropriação de uma relação com o mundo que só acontecerá a partir do
momento em que ela for feita de modo “íntimo e pessoal”.
Heidegger sabia bem disso. Ele afirmava que “ensinar é ainda mais
difícil do que aprender”15. Essa sua frase, de um curso do início dos anos
1950, não estava relacionada à convicção de que aquele que ensina deve
saber mais do que os que aprendem ou que deve estar mais preparado
para, a qualquer momento, responder ao que lhe for perguntado. Nada
disso. Para Heidegger, ensinar é mais difícil do que aprender porque
ensinar significa, na verdade, “convidar a aprender”. Nenhum professor
“deixa que nada seja aprendido senão – o aprender”16. Ele queria, com
isso, dizer justamente que o processo educacional autêntico é aquele em
que alunos aprendem o próprio significado do aprendizado. Isso implica
que eles aprendam que, somente se forem chamados singularmente pelo
que está em questão, de fato estarão aprendendo.
Se o professor deve ensinar, antes de tudo, um singelo convite,
é porque justamente não se trata aí de transmitir nenhum conteúdo
14
15
16
Idem, ibidem, p. 19.
Heidegger, M. Was Heisst Denken? Tübingen: Max Niemayer, 1954. p. 50.
Idem, ibidem, p. 50.
Heidegger educador
67
específico, mas a forma de relacionamento que é o aprender. “Por
isso, sua conduta, muitas vezes, dá a impressão de que com ele não
aprendemos propriamente nada”17, afirma Heidegger. É que nosso
padrão normal de aprendizado possui uma expectativa contrária ao
verdadeiro aprendizado, já que este último consiste não em sair sabendo
necessariamente mais do que antes do processo educacional, mas em
ter aprendido a aprender. Isso é o que realmente importa.
*
Tudo que conhecemos da prática professoral de Heidegger leva a
crer que este ar que sentimos em seus textos era também lá respirado. Na
bela homenagem que escreveu nos oitenta anos de Heidegger, Hannah
Arendt deixou um testemunho do que foi sua aparição professoral, bem
antes de qualquer publicação.
No caso de Heidegger, não existia nada em que sua fama pudesse
se apoiar, nenhum texto e apenas notas de cursos, que circulavam
de mão em mão; e os cursos tratavam de textos universalmente
conhecidos, sem conter nenhuma doutrina a ser tomada e
transmitida. Não havia senão um nome, mas o nome viajava por
toda a Alemanha como a novidade do rei secreto.18
Desde a Primeira Guerra Mundial, circulava certo mal-estar na
cultura ocidental. Muitos já desconfiavam do progresso da civilização
na direção do melhor. Não era diferente nas universidades alemãs,
onde havia enorme insatisfação na atividade acadêmica docente e
discente. Heidegger nasce intelectualmente neste clima, responde a
ele. Na preleção “Que é Metafísica”, de 1929, podemos ler sua crítica
à “dispersa multiplicidade de disciplinas”, que “é hoje ainda apenas
mantida numa unidade pela organização técnica de universidades e
faculdades e conserva um significado pela fixação das finalidades práticas
Idem, ibidem, p. 50.
Arendt, H. Martin Heidegger faz oitenta anos. In: ______. Homens em tempos sombrios.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 221.
17
18
68
Pedro Duarte de Andrade
das especialidades”19. Heidegger, portanto, não passa incólume pelo
ambiente que se espalhava “por todas as faculdades que fossem algo
além de simples escolas profissionais e todos os estudantes para quem o
estudo significava mais que uma preparação para seus ofícios”20, como
comenta Hannah Arendt.
É isso que determinará sua curta participação como reitor na
universidade de Friburgo em 1933. No famoso “Discurso do reitorado”,
Heidegger observava que para a nova juventude “já não será mais
permitido que o serviço do saber seja a formação anódina e rápida
conducente a uma profissão”21. É que, para ele, não é o saber que está
a serviço das profissões, mas antes o contrário: as profissões deveriam
se fundamentar no saber. Poderíamos dizer o mesmo, aliás, em relação à
política, já que, a despeito de toda a polêmica em torno do envolvimento
de Heidegger com o nacional-socialismo, seu esforço pela “autoafirmação” da universidade significava que ela deveria erguer-se por si
mesma, não subordinada a causas ideológicas. Retrospectivamente, ele
diria que no seu “discurso de posse se exprimia uma posição contrária
a esta politização da ciência”22, tentada pelo nacional-socialismo.
Em suma, tratava-se de colocar a universidade em situação
de não depender de razões extrínsecas ao próprio saber para que se
afirmasse, fossem elas profissionais ou políticas. Nesse sentido, todo esse
discurso de Heidegger pode ser visto como a tentativa de dar conteúdo
e radicalizar a conhecida autonomia universitária. “Dar a si mesmo a
lei, essa é a liberdade mais alta”23, afirma. Porém, para ele, essa festejada
liberdade universitária padecia por ser apenas negativa, legitimando
“despreocupação, arbitrariedade de intenções e de inclinações, ausência
de laços nos fatos e nos gestos”24. É que, para Heidegger, como ele
avaliaria mais tarde, “a auto-afirmação também devia cumprir a missão de
Heidegger, 1979, op. cit., p. 35.
Arendt, op. cit., p. 222.
21
Heidegger, M. Discurso do reitorado. In: ______. Escritos Políticos. Lisboa: Instituto Piaget,
1997, p. 100.
22
Heidegger, M. Heidegger e a Política. O caso de 1933. Revista Tempo Brasileiro, Rio de
Janeiro, n. 50, p. 70, jul./set. 1977.
23
Heidegger,, 1997, op. cit., p. 99.
24
Idem, ibidem, p. 99.
19
20
Heidegger educador
69
dar um novo sentido à Universidade face a uma organização meramente
técnica, a partir de uma reflexão sobre a tradição do pensamento
ocidental-europeu”25 .
Nesse cenário, a filosofia tinha, já bem antes do episódio do
reitorado ou da publicação de Ser e Tempo, importância singular. Segundo
Hannah Arendt, ela “não era um ganha-pão; era antes a disciplina dos
famintos resolutos e, por isso mesmo, muito exigentes”. Foi neste grupo
que a fama de Heidegger cresceu. Suas aulas respondiam à fome de
pensamento que toda a sorte de especialidades não satisfazia.
A novidade que os atraía a Friburgo com o Privatdozent, e um
pouco depois em Marburgo, dizia: há alguém que efetivamente
atinge as coisas que Husserl proclamou; sabe que elas não são
um assunto acadêmico, mas a preocupação do homem pensante
e isso, de fato, não só desde ontem ou hoje, mas desde sempre;
e, exatamente porque para ele o fio da tradição se rompeu,
redescobre o passado. O decisivo no método era que, por
exemplo, não se falava sobre Platão e não se expunha sua doutrina
das idéias, mas seguia-se e se sustentava um diálogo durante
um semestre inteiro, até não ser mais uma doutrina milenar,
mas apenas uma problemática altamente contemporânea. Hoje
em dia, isso sem dúvida nos parece totalmente familiar: agora
muitos procedem assim; antes de Heidegger, ninguém o fazia. A
novidade simplesmente dizia: o pensamento tornou a ser vivo, ele
faz com que falem tesouros culturais do passado considerados
mortos e eis que eles propõem coisas totalmente diferentes do
que desconfiadamente se julgava. Há um mestre; talvez se possa
aprender a pensar.26
Não chegamos a outra conclusão quando lembramos quem foram
os alunos de Heidegger. Herbert Marcuse, Emmanuel Lévinas, Hans
Jonas, Karl Löwith, Hans-Georg Gadamer, Giorgio Agamben, a própria
Hannah Arendt… Essa lista impressiona não apenas pelo seu tamanho
ou pelo porte de cada um dos pensadores, nomes certos entre os grandes
do século que acaba de passar. Impressiona também pela diferença entre
25
26
Heidegger, 1977, op. cit., p. 71.
Arendt, op. cit., p. 223.
Pedro Duarte de Andrade
70
eles, o que prova como o ensino de Heidegger, concretamente, parece ter
realizado com sucesso o tal convite a aprender. Não a aprender o que ele,
Heidegger, tinha a dizer. Mas a aprender a aprender. Por isso, cada um
desses alunos pôde aprender de seu próprio modo, tal como, hoje ainda,
cada um de nós pode fazer ao ler Heidegger. Tudo leva a crer, por isso, que
Heidegger foi um grande professor no mais alto sentido da palavra.
*
Heidegger educador. Nietzsche, na sua juventude, nomeou
a terceira de suas considerações intempestivas de “Schopenhauer
educador”. Em seu estilo literário todo próprio, ele expôs, sem o saber, o
espírito que perpassaria a filosofia de Heidegger e, mais especificamente,
o que podemos depreender como seu sentido educacional. Para ele, os
homens, em geral,
[...] se escondem atrás de costumes e opiniões. No fundo,
todo homem sabe muito bem que não se vive no mundo
senão uma vez, na condição de único, e que nenhum acaso,
por mais estranho que seja, combinará pela segunda vez uma
multiplicidade tão diversa neste todo único que se é: ele o sabe,
mas esconde isso como se tivesse um remorso na consciência –
por quê? Por medo do próximo que exige esta convenção e nela
se oculta. Mas o que obriga o indivíduo a temer o seu vizinho,
a pensar e agir como um animal de rebanho e não se alegrar
consigo próprio? Em alguns muito raros, talvez o pudor. Mas na
maioria dos indivíduos, é a indolência, o comodismo […].27
Educar não pode ser pura transmissão de conhecimento pois nela
permanece o comodismo dos homens. Educar, no alto sentido da palavra,
é chamar o homem para que ele assuma com o ser uma relação própria,
ou seja, que assuma para si tal relação como algo que lhe concerne, e
não apenas como algo dado e já sabido. Por isso, quando Heidegger fala
que o professor ensina não mais do que o convite a aprender, ele está,
Nietzsche, F. III Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador. In: ______. Escritos
sobre Educação. Rio de Janeiro, Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003. p. 138.
27
Heidegger educador
71
ao mesmo tempo, falando do cerne da filosofia, já que o homem deve
ser tomado pela questão do ser de modo pessoal, singular.
No seu Discurso do Reitorado, falando à comunidade universitária,
ele já expunha isso, na medida em que clamava por uma relação
questionadora com o ser, relação esta que só pode acontecer quando
deixamos de ser “animal de rebanho”, como diz Nietzsche. Na parte
mais educativa de todo esse discurso, Heidegger nos coloca diante do
que talvez seja o coração da sua filosofia.
Então, o que inicialmente foi a tarefa dos gregos – a resistência
admirativa perante o ente – transforma-se na de se estar,
plenamente a descoberto, exposto ao que se retira e é incerto,
ou seja, ao que é problemático, isto é, digno de ser posto em
questão. Questionar, então, não é já somente a fase superável
que precede a resposta, que não seria outra coisa do que o saber.
Questionar, pelo contrário, torna-se em si mesmo a figura em
que o saber culmina.28
Somente dessa maneira, o dito “objeto” de estudo, seja ele qual
for, pode abandonar a condição de exterioridade inerte e insípida
diante de um “sujeito” que jamais é colocado em questão. Somente
dessa maneira, tanto educar como filosofar podem ser mais do que
mero conhecimento ou erudição. Pois só assim o homem pode ser
colocado, ele mesmo, em questão – do contrário, restaria a ele apenas
“o comportamento indiferente das mercadorias fabricadas em série,
indignas de contato e de ensino”29, como afirma Nietzsche.
Se há um sentido educativo da filosofia, ele não deve ser diferente
do sentido filosófico da educação: despertar o homem do comodismo
impessoal em que ele não fica à altura do “milagre irrepetível”30 que
sempre é.
28
29
30
Heidegger, 1997, p. 97.
Nietzsche, op. cit., p. 139.
Idem, ibidem, p. 138.
Pedro Duarte de Andrade
72
Referências bibliográficas
ARENDT, Hannah. Martin Heidegger faz oitenta anos. In: ______.
Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras,
1987.
HEIDEGGER, Martin. Was Heisst Denken? Tübingen: Max
Niemayer, 1954.
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Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 50, p. 70, jul./set. 1977.
______. Que é isto – a filosofia? In: ______. Conferências e escritos
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______. Que é metafísica? In: ______. Conferências e escritos
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______. Sobre a essência da verdade. In: ______. Conferências e
escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1979c.
______. Vom Wesen der menschlichen Freiheit. Frankfurt am Main:
Vittorio Klostermann, 1982.
______. Discurso do reitorado. In: ______. Escritos Políticos. Lisboa:
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______. Ser e Tempo – parte I. Petrópolis: Vozes, 1998.
______. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude
e solidão. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich. III Consideração Intempestiva: Schopenhauer
Educador. In: ______. Escritos sobre Educação. Rio de Janeiro: Ed.
PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003.
PLATÃO. A República. Belém: EDUFPA, 2000
Recebido em: 11 de dezembro de 2007.
Aprovado em: 23 de dezembro de 2007.
Número Especial:
Heidegger e a Educação
Kant entre o ficcionalismo de Vaihinger e a
fenomenologia de Heidegger*
Zeljko Loparic**
Resumo: O artigo apresenta, de início, a interpretação ficcionalista de Kant
oferecida por Vaihinger, para, em seguida, mostrar as suas limitações. Na
continuação, analisa a interpretação fenomenológica de Kant elaborada por
Heidegger, fazendo ver o caráter unilateral desta. No final, oferece argumentos
para a tese de que as interpretações de Vaihinger e Heidegger, mesmo
insuficientes, esclarecem pontos importantes freqüentemente negligenciados
do pensamento kantiano. Vaihinger chamou a atenção para a importância no
sistema kantiano dos princípios ficcionais, os quais, mesmo sem terem valor
objetivo determinável, possuem um valor heurístico sem o qual a construção
do sistema do conhecimento natural é impossível. Heidegger destacou o
caráter intuitivo do acesso aos objetos do conhecimento teórico enquanto tais,
deixando, assim, aberto o caminho para uma interpretação da filosofia teórica
de Kant não como psicologia, mas em termos de uma semântica a priori do
tipo construtivista.
Palavras-chave: Kant. Vaihinger. Heidegger. Ficcionalismo. Fenomenologia.
Semântica transcendental.
* Versão modificada da palestra pronunciada em I Jornadas Internacionais: “Figuras da racionalidade:
neokantismo e fenomenologia”, Évora, Universidade de Évora, 18-19/01/2007.
** Doutor em Filosofia pela Université Catholique de Louvain e pós-doutor pela Universidade de
Konstanz. Atualmente é professor na PUC-SP e Unicamp. E-mail: [email protected]
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação
Vitória da Conquista
Ano VI
n. 10
p. 73-100
2008
74
Zeljko Loparic
Kant between Vaihinger’s fictionalism and Heidegger’s phenomenology
Abstract: This paper begins by presenting Vaihinger’s fictional interpretation
of Kant, and its limitations. Next, the paper analyzes the Heidegger’s
phenomenological interpretation of Kant, and shows its unilateral character.
In the final sections, the paper offers arguments for the thesis that despite
their shortcomings Vaihinger and Heidegger’s interpretations clarify frequently
neglected yet important points of Kant’s thought. Vaihinger called attention to the
importance of fictional principles within the Kantian system, which albeit lacking
determinate objective value have a heuristic role without which the construction
of the system of natural knowledge is impossible. Heidegger highlighted the
intuitive character of the access to the objects of theoretical knowledge as such,
and thus paved the way for an interpretation of Kant’s theoretical philosophy not
as a psychology, but in terms of a constructivist-type a priori semantics.
Key-words: Kant. Vaihinger. Heidegger. Fictionalism. Phenomenology.
Transcendental semantics.
1 O ficcionalismo de Vaihinger e a fenomenologia de Heidegger
De acordo com o importante filósofo neokantiano Hans
Vaihinger1 (1927 [1911], p. 12), o pensamento humano é uma “função
orgânica” de caráter ficcional. Próximo do perspectivismo vitalista de
Nietzsche, do fenomenalismo biológico de Mach e do pragmatismo
utilitarista de Peirce, Vaihinger sustenta que a psique humana é uma
“força de formação orgânica” produtora de órgãos em conformidade
com os fins biológicos do organismo humano, os quais incluem a
adaptação às circunstâncias físicas externas e a autopreservação. “Tais
órgãos, que a psique constrói para si em resposta adaptativa a excitações
externas, são, por exemplo, as formas de intuição e de pensamento, bem
como certos conceitos e outras formações lógicas” (p. 3). Portanto, “o
pensamento lógico é uma função orgânica da psique”. Ora, as funções
orgânicas são estritamente análogas às mecânicas. A psique pode e
deve ser tratada como uma máquina, cuja finalidade natural é “executar
Além de ter produzido uma obra importante, em particular o livro Die Philosophie des Als Ob
(A filosofia do como se, 1911), Vaihinger foi fundador da revista Kant-Studien (1895) e da Deutsche
Kant-Gesellschaft (1905).
1
Kant entre o ficcionalismo de Vaihinger e a fenomenologia de Heidegger
75
movimentos que preservam a vida do organismo com o menor uso de
força” (p. 178). A teoria lógica das ficções não é, portanto, outra coisa
que “uma mecânica explicitada do pensamento” ou uma “tecnologia
do pensamento” (p. 180).
O caráter distintivo de todos os produtos do pensamento
humano é o de serem ficções, isto é, “representações conscientemente
falsas” (p. XXIV), cuja expressão lingüística é a fórmula “como se” (p.
XXV, cf. p. 155). A finalidade das ficções não é, portanto, servirem de
reproduções ou réplicas do mundo real (como pensam o senso comum
e os epistemólogos tradicionais), mas a de poderem ser usadas como
instrumentos eficazes para a nossa orientação no mundo (Vaihinger,
1927 [1911], p. 18 e 22). “No domínio teórico, prático e religioso, nós
chegamos ao correto com base e com a ajuda do falso” (p. XXIV),
“operando com representações conscientemente falsas, mas úteis” (p.
XXV). A verdade é tão-somente “um erro conforme a fins” (p. 192).
Tendo renunciado à tarefa de espelhar a “realidade objetiva” na
consciência e, portanto, desistido do conceito de verdade; mais ainda,
tendo substituído o próprio conceito de objeto de conhecimento
pelo de conteúdo sensorial – Vaihinger elogia Mach por ter reduzido
“todo ser e todo acontecer a elementos sensoriais como o último dado
para nós” (p. XXVI) –, o instrumentalismo biologizante de Vaihinger
propõe um conceito de saber livre de qualquer compromisso metafísico
ou ontológico, aplicável sem distinção a todos os fenômenos, tanto
psíquicos quanto físicos, almejando tão-somente fabricar artifícios; tratase de conceitos, operações e, em geral, meios auxiliares para “calcular”
os dados sensoriais de modo a poder “executar os impulsos da nossa
vontade conforme a fins, segundo diretivas de constructos lógicos”
(p. 5). O conhecimento humano é (diz Vaihinger recordando Mach)
“uma elaboração econômica do material sensorial, a serviço da vida” (p.
XXVI). Vaihinger resume a sua posição teórica na fórmula “positivismo
idealista”: positivismo, porque “repousa única e exclusivamente sobre o
dado, sobre os conteúdos empíricos sensoriais” e nega, de modo mais
explícito possível, todo e qualquer outro tipo de objetidade, eliminando,
76
Zeljko Loparic
dessa forma, a distinção entre as ciências naturais e humanas; idealismo,
porque recorre a idéias ficcionais reconhecidamente falsas (p. XXXII).
Essa posição, que exclui toda metafísica (teoria do supra-sensível) e
mesmo toda ontologia (teoria do ente enquanto ente no seu todo),
contenta-se em não ser mais do que uma “filosofia do como se”.
Ainda segundo Vaihinger, o ficcionalismo é uma constante na
história do pensamento ocidental, aparecendo, com particular força, na
obra de Kant. Este não é um metafísico realista, nem na lógica, nem na
física, nem na ética (p. 613). Para o “Kant radical” de Vaihinger, pensar
significa também orientar-se, isto é, resolver problemas de relevância
vital, e não tentar representar fielmente as coisas elas mesmas. Assim,
por exemplo, “o espaço, o tempo e, em particular, as categorias são uma
espécie de representações auxiliares, das quais se serve o ‘ânimo’ para
elaborar sistematicamente o material sensorial; mesmo sendo subjetivas
e, por isso, não-verdadeiras, essas representações são necessárias para
captar o dado. Nessa medida, é possível considerá-las ficções [...]”
(p. 619). As idéias da razão teórica kantiana são também constructos
ficcionais, mais precisamente “ficções heurísticas” (p. 619). O conjunto
dessas idéias, cuja realidade é apenas “heurístico-prática” (p. 628),
não “de existência” (p. 658), constitui uma ferramenta metodológica
preciosa, e mesmo indispensável, na condução da pesquisa empírica
(p. 621 et passim).
O mesmo status ficcional possuem as idéias práticas em geral
(morais, jurídicas, religiosas etc.). “A liberdade é uma idéia, a autonomia
é uma idéia, a lei ética geral é uma idéia – e as idéias são “meras idéias”; a
moral inteira repousa, portanto, sobre ficções” (p. 649). A própria fórmula
da lei moral é “uma nova e especial ficção” (p. 650). Entre as ficções
religiosas de Kant, Vaihinger destaca a do estado originário de inocência,
do qual parte a história moral de humanidade (p. 657), bem como a do
diabo e do inferno, do filho de Deus, do reino de Deus na terra e, por fim,
a ficção do próprio Deus. Em apoio, Vaihinger cita, entre vários outros,
o seguinte trecho de Kant: “A proposição: ‘Deus existe’ não significa a
fé na existência de uma substância [...], mas é apenas um axioma da razão
prática de se impor a si mesma como princípio das ações” (p. 727).
Kant entre o ficcionalismo de Vaihinger e a fenomenologia de Heidegger
77
Contra o ficcionalismo em geral e, em particular, o positivismo
biologizante de Vaihinger, Heidegger, em Ser e tempo, recorre à regra
básica da fenomenologia husserliana: zu den Sachen selbst, que impõe ao
conhecimento a tarefa de representar as coisas elas mesmas tal como elas
são nelas mesmas. Essa tarefa inclui a tematização descritiva de estruturas
a priori das coisas, não recorrendo, para fins de teorização, a “construções
suspensas no ar”.2 É nas próprias coisas que é possível ver fenômenos
ontológicos, possibilitadores, e ônticos, possibilitados; aspectos
deônticos fundantes e fundados. Baseado no acesso fenomenológico
às coisas, Heidegger concebe a filosofia como teoria de fenômenos
ontológicos, ou seja, como ontologia.
Tal como Vaihinger, Heidegger se apropria de Kant. Os fenômenos
e aspectos ontológicos e ônticos também teriam sido tematizados já
pela filosofia crítica kantiana. Entre os ontológicos, estão as formas da
intuição kantianas e as categorias, que não são entidades ficcionais, mas
“fenômenos da fenomenologia”. Nesse mesmo estilo fenomenológico,
Heidegger apresentou, em vários textos da década de 1920, versões
fenomenológicas de outros a priori discursivos tematizados por Kant,
inclusive éticos. Entre estes, o principal é o conceito de dever, que é
interpretado à luz do fenômeno do ter-que-ser, exigência ética originária
constitutiva do existir humano e dada fenomenalmente (Sollensgegebenheit),
de modo que “o dever absoluto seria, então, propriamente a objetidade
originária” (Heidegger, 1987, GA 56/57, p. 44).3
O propósito do presente trabalho é, em primeiro lugar, mostrar
que, apesar de diametralmente opostas, a interpretação ficcionalista
neokantiana de Vaihinger e a fenomenológica de Heidegger – duas
posições ainda hoje vivas em vários círculos – captam, cada uma à sua
maneira, aspectos importantes do pensamento kantiano. Ao mesmo
tempo, contudo, as duas interpretações sofrem de severas limitações.
Além de mostrar isso, proponho-me, em segundo lugar, apresentar uma
2
Cf. Heidegger, 1927, p. 27-28; cf. p. 50, nota. Além de precisar ser remetida a Husserl, convém
aproximar essa posição de Heidegger das teses do idealismo alemão sobre a concretude do Espírito
(cf. Heidegger, 1995, p. 180, 181, 203 e 235).
3
Esse é um dos numerosos trechos da obra de Heidegger que atestam a sua preocupação com
uma ética da responsabilidade, intimamente relacionada à ontologia existencial e à desconstrução
da metafísica.
78
Zeljko Loparic
leitura de Kant capaz de ultrapassar esses defeitos e fornecer um quadro
no qual as duas interpretações, uma vez devidamente reformuladas,
possam ser vistas como complementares. Essa leitura é baseada na
tese de que o conteúdo central da filosofia transcendental de Kant é
uma semântica pura que trata da aplicabilidade de diferentes tipos de
constructos discursivos a priori em diferentes domínios constituídos
ou que possam ser constituídos na experiência cognitiva, prática ou
outra (estética, por exemplo).4 Espero, dessa forma, estimular um estudo
renovado não somente da herança da filosofia de Kant, mas também
do significado do seu pensamento para a filosofia dos nossos dias.
2 Virtudes e limitações da reconstrução ficcionalista de Kant
Não há como discordar de Vaihinger quando este diz que Kant
não é um metafísico, nem mesmo um ontólogo. De fato, segundo o
idealismo transcendental ou crítico kantiano, a metafísica, teoria do
supra-sensível, nunca existiu nem pode existir como ciência (K ant ,
1783, p. 7, 9 e 250) e a ontologia precisa ser substituída por uma teoria
da exposição dos aparecimentos em conceitos puros ou empíricos
(KrV, B 303), teses pelas quais Kant antecipa, sob certos aspectos, o
fenomenalismo posterior, inclusive o de Mach. Tampouco se pode
negar a presença de elementos ficcionais e meramente reguladores no
sistema kantiano da filosofia crítica, em particular, nos procedimentos
kantianos de resolução de problemas, em claro conflito com a linha
de abordagem defendida por Heidegger. Vaihinger tem toda razão em
dizer que as idéias teóricas de Kant (inclusive a de Deus) são “ficções
heurísticas”, a saber, constructos discursivos que servem para “fundar
princípios reguladores5 do uso sistemático do entendimento no
campo da experiência” (KrV, B 799), isto é, princípios do como se
(KrV, B 700).6
Essa tese é exposta em detalhes em Loparic, 2003b.
No original: “regulative”. A tradução brasileira da primeira Crítica, publicada pela Editora Abril
de São Paulo, verte erroneamente esse termo alemão por “recreativos”.
6
Eu mesmo defendi a tese de que Kant reformulou os juízos da metafísica tradicional que
empregam idéias como programa a priori de pesquisa e exemplifiquei essa metodologia especulativa
pela maneira como Kant concebe os primeiros princípios da ciência da natureza (cf. Loparic,
2005 [1982], cap. 9). Mais recentemente, mostrei que a metapsicologia de Freud foi construída
segundo esse mesmo programa de pesquisa (cf. Loparic, 2003d).
4
5
Kant entre o ficcionalismo de Vaihinger e a fenomenologia de Heidegger
79
Kant também deixa claro que as idéias práticas são igualmente
produzidas (gemacht) pela razão (cf., por exemplo, 1797, p. 181). Isso
vale, como Vaihinger enfatizou, para a idéia prática de Deus, que, assim
mesmo, tem um uso importante: ela pode ser aplicada à lei moral, a
fim de qualificar essa lei como divina, revelando-se, nesse caso, “de
maior fertilidade ética” (p. 109). É também inegável que, para Kant,
o ser humano é um solucionador de problemas, sejam estes teóricos,
práticos ou de outra natureza, tese em virtude da qual Kant pode ser
aproximado ao pragmatismo.
Contudo, a reconstrução vaihingeriana da posição de Kant sofre
de uma dificuldade estrutural básica: ela é parcial. Vaihinger não esconde
que destacou e examinou apenas os trechos da obra de Kant que eram
favoráveis a sua própria teoria das ficções, deixando de lado todos aqueles
que admitiam uma interpretação oposta (p. 639). A sua justificativa para
se valer desse procedimento tão problemático são as contradições de
Kant, reconhecidas por todos. No entanto, ao invés de se propor a tarefa
inexeqüível de estabelecer a unidade de uma obra autocontraditória, é
preferível tentar salvar o que dela pode ser resguardado. Antes de se
dar livre curso a interpretações enviesadas, convém, parece-me, estudar
melhor as tensões internas da obra de Kant e determinar com precisão o
sentido das suas afirmações. Se fizermos isso, ficam rapidamente visíveis
as dificuldades da leitura vaihingeriana de Kant. Mostrarei algumas.
Em primeiro lugar, Kant jamais disse (nem poderia dizer) que os
principais problemas da filosofia surgem da nossa necessidade biológica
de orientação no mundo. A sua fonte são os interesses da própria razão
(KrV, B 832), que decorrem das regras a priori de funcionamento do
solucionador humano de problemas. É verdade que Kant (1797, p.
65-66) não exclui que a vida seja uma propriedade da matéria e que
a capacidade teórica do homem, enquanto espécie animal, seja uma
qualidade da vida. Contudo, a capacidade teórica do homem, como
animal racional, não pode ser reduzida à função orgânica darwiniana de
adaptação aos estímulos externos e de autopreservação, pois o cultivo
da capacidade intelectual permite ao homem tratar não somente de fins
80
Zeljko Loparic
biologicamente necessários, mas também de fins autoproduzidos e,
nesse sentido, arbitrários (p. 104).7 Além disso, a razão teórica não pode
colocar nem resolver tarefas moral-práticas, impostas ao homem pela
razão prática, em virtude das quais o homem transcende a condição de
animal racional, tornando-se um ser da razão, elevado acima do reino
da matéria e mesmo da vida (p. 65).
Em segundo lugar, Vaihinger deixa de lado a distinção essencial
entre operações intuitivas e discursivas, e, por conseguinte, a diferença
entre os dois tipos básicos de produtos da cognição humana – os
constructos intuitivos e discursivos. Por isso, ele também negligencia os
problemas da relação entre esses dois tipos de operações e de constructos.
Para Kant, alguns constructos são meras ficções e outros não. Assim,
por exemplo, as minhas fantasias sobre o mundo externo – as quimeras,
da mitologia grega, por exemplo – são ficcionais, pois, por meio delas,
nenhum objeto me é dado. Mas isso não se pode dizer de perceptos (as
percepções). A minha percepção de um objeto é um constructo intuitivo,
sim, mas nem por isso ela é uma mera ficção do tipo como se. Quando
vejo um cachorro, por exemplo, eu não percebo algo como se fosse
um cachorro. A percepção é um constructo “objetivamente real”; por
meio dela um objeto me é dado. Ou seja, as operações e as regras de
construção envolvidas nas fantasias são diferentes das que são usadas
para produzir os perceptos.
Da mesma forma, alguns constructos discursivos são ficções,
outros não. São ficcionais todos aqueles que não podem ser interpretados
por constructos intuitivos objetivamente reais, ou seja, que não podem
ser sensificados na intuição. São não-ficcionais aqueles constructos
discursivos que podem ser sensificados dessa forma, mais precisamente,
que governam operações intuitivas efetivamente exeqüíveis. Os
primeiros são ditos princípios reguladores ou do como se; os segundos,
princípios determinantes. Como as idéias teóricas não são sensificáveis,
todos os princípios que empregam essas idéias são do tipo como se.
Embora construídos e provados a priori, os princípios do entendimento,
7
Sobre a teoria kantiana de problemas, cf. Loparic, 1988a.
Kant entre o ficcionalismo de Vaihinger e a fenomenologia de Heidegger
81
que empregam as categorias − conceitos que, diferentemente de idéias
teóricas, podem ser interpretados direta, adequada e completamente no
domínio da experiência possível −, são determinantes. Os objetos das
percepções, por exemplo, não devem ser pensados como se estivessem
satisfazendo o princípio de causalidade, mas como necessariamente
satisfazendo esse princípio, sob pena de o conhecimento empírico ser
uma quimera. Ou seja, o princípio de causalidade não é regulador, mas
constitutivo, determinando as propriedades estruturais dos objetos
da experiência. No presente contexto, os conceitos de percepção e
de experiência designam operações de sensificação pelas quais são
constituídos os referentes e o significado dos conceitos a priori, bem
como de condições de verdade dos juízos sintéticos a priori. Eles não
devem ser considerados, portanto, como fenômenos psicológicos,
governados por leis naturais e objetos de uma possível psicologia
empírica ou, quem sabe, transcendental, mas como operações do nosso
aparelho cognitivo, exeqüíveis livremente de acordo com as regras do
entendimento e da razão, das quais Kant lança mão para produzir uma
semântica a priori do tipo construtivista.
Essa é a razão – assim chego a minha terceira objeção a
Vaihinger – por que este não discute o problema que o próprio Kant
considerou “tarefa central” da sua filosofia transcendental: o da
possibilidade de juízos sintéticos a priori. Como mostrei em outros
trabalhos, esse problema é resolvido por Kant em termos de uma
semântica a priori, conteúdo central da sua lógica transcendental e
espinha dorsal do seu projeto da crítica da razão pura. Esse projeto
determina, em primeiro lugar, mediante a dedução transcendental e os
procedimentos de esquematização, a validade objetiva e as condições
de aplicação das categorias no domínio de objetos de experiência
possível e, em segundo lugar, explicita as condições de verdade e de
falsidade dos princípios do entendimento nesse mesmo domínio, daí
serem chamados de “possíveis”. Mais ainda, na segunda edição da
primeira Crítica, Kant oferece provas de que esses princípios não são
apenas possíveis (que podem ser objetivamente verdadeiros ou falsos em
82
Zeljko Loparic
relação a objetos da experiência possível), mas também necessariamente
verdadeiros para esses objetos. A totalidade desses juízos constitui a
“verdade transcendental”, a qual – essa é uma tese central da semântica
transcendental de Kant – “precede e torna possível toda a verdade
empírica” (KrV, B 188). Somente juízos que não são interpretáveis de
maneira direta, completa e adequada pelos constructos intuitivos (e
somente eles) carecem de valor de verdade determinado, não podem
ser provados e são ditos princípios do como se. Diferentemente de
Vaihinger, Kant não abandona, portanto, o conceito de objeto do
conhecimento nem o de verdade.
Em quarto lugar, ao tratar da filosofia prática de Kant,
Vaihinger tampouco se ocupa do problema (e das regras de aplicação
à natureza humana) dos princípios da metafísica dos costumes. Mesmo
racionalmente motivados e necessários, os princípios da metafísica
dos costumes, como tais, são vazios de conteúdo objetivo (prático).
As regras de sua aplicação à natureza humana servem precisamente
para preencher esse vazio, dependem das condições da aplicabilidade
da razão prática aos seres humanos, que devem ser pensadas como
dadas na experiência (1797). O estudo dessas condições como parte
da natureza humana permite a Kant dizer que o agir moral humano,
tal como determinado pela metafísica dos costumes, não é uma mera
quimera, um objeto de uma simples ficção prática, mas um produto
efetivo, experiencial, da razão prática, mais precisamente, da lei moral.
Em outras palavras, o homem moral kantiano não é uma ficção,
mas, no máximo, uma ficção necessária feita carne, ou seja, uma
realidade prática, mediante uma semântica (uma teoria da aplicação
dos constructos discursivos – conceitos, juízos, teorias – aos dados
factuais), uma pragmática (teoria do assentamento dos constructos
da razão prática na natureza humana) e uma história do processo de
moralização. Todas essas teorias têm uma parte pura, “produzida” a
priori, e outra sensível, dada.
Em quinto lugar, Vaihinger não distingue em Kant ficções
ou princípios do como se necessários, não-elimináveis, e ficções
Kant entre o ficcionalismo de Vaihinger e a fenomenologia de Heidegger
83
heuristicamente férteis, mas arbitrárias, que, portanto, podem ser
substituídas por outras. Assim, por exemplo, a idéia de uma causa
primeira é um constructo discursivo não determinante, que dá lugar
aos princípios do como se, mas que, assim mesmo, é indispensável para
a economia interna da razão. Entretanto, a idéia de átomo (exemplo
preferido de Vaihinger), também discursiva e não determinante, é
apenas arbitrária, com uma utilidade heurística limitada, tendo sido
substituída, com sucesso (por Boskovic), pela idéia (ficção), também
não determinante, de força de repulsão.
Em resumo, Vaihinger exagerou o ficcionalismo de Kant
em detrimento do seu construtivismo. Ele abraçou o idealismo
transcendental kantiano em sua forma exacerbada – o positivismo
idealista – e deixou de lado o realismo empírico da Crítica da razão pura.
Assim como negligenciou a pergunta kantiana pela realidade objetiva de
princípios teóricos, Vaihinger não deu uma interpretação dos princípios
práticos que possa, ao menos, prometer a garantia da sua realidade
objetiva prática. Essas dificuldades não podem ser atribuídas a eventuais
contradições de Kant; são defeitos de leitura.
3 Um motivo não-ficcionalista: a pragmática pura, objeto da
antropologia moral de Kant
Gostaria de explicitar melhor o problema da interpretação dos
princípios práticos que pertencem à metafísica dos costumes de Kant.
Na Religião e, em seguida, em outras obras da sua fase tardia, Kant tenta
resolver o que pode ser chamado de problema fundamental da filosofia
da religião: o homem é moralmente bom ou moralmente mau? A resposta
a essa pergunta exige, primeiro, que seja explicitado o sentido da oposição
entre os predicados a priori “moralmente bom” e “moralmente mau”,
e, segundo, que se assegure a possibilidade dos juízos sintéticos a priori,
que constituem os dois lados da disjunção em questão.8
8
Para detalhes, cf. Loparic, 2007 e 2008.
84
Zeljko Loparic
A resposta de Kant é alcançada mediante um estudo do
assentamento do discurso religioso, que contém, entre outros, os
predicados “moralmente bom” e “moralmente mau” na natureza humana.
Esse estudo leva Kant a elaborar, já na Religião, uma antropologia moral
que possui uma parte pura − pois contém uma pragmática concebida
como uma teoria do assentamento progressivo dos constructos da razão
prática na natureza humana −, acompanhada de uma teoria a priori da
sensificação dos princípios da religião da razão pela experiência moral
de cada um, que desemboca numa história a priori. Nessa fase inicial, não
dispondo ainda de uma antropologia mais amadurecida, Kant formula
a sua pragmática e a história a priori em termos de princípios (regras)
não determinantes, mas prático-reflexivos do tipo como se – princípios
especulativos, portanto, e não diretamente atestáveis na experiência – e
os sensifica apenas indiretamente, de forma inadequada e incompleta
pela experiência moral de cada um de nós e pelos fatos históricos (com
o esquematismo meramente analógico, baseado no material retirado das
Escrituras, da literatura, da história mundial), procedimento pelo qual o
sentido do discurso religioso não é determinado de maneira adequada,
direta e completa.
Contudo, isso muda na Doutrina da virtude, na qual o procedimento
de mera exemplificação indireta e de esquematização analógica são
substituídos por regras para o exercício e o cultivo de moralidade, todas
elas efetivamente exeqüíveis. Essa pragmática pura, a partir de então
determinante e não mais reflexiva, é completada, na segunda parte
do Conflito das faculdades, por uma história a priori, conectada com uma
experiência efetiva asseguradora da sua realidade objetiva prática – a
do movimento participativo de entusiasmo. Essas duas obras − que
oferecem uma teoria da virtude e uma teoria da história efetiváveis,
sem exigir o uso de idéias especulativas (inclusive a de Deus), a não ser
por motivos estruturais e heurísticos − são, parece-me, o equivalente
maduro da primeira tentativa de Kant, ensaiada na Religião, de tornar
visível a relação entre a moral pura e a natureza humana.
Kant entre o ficcionalismo de Vaihinger e a fenomenologia de Heidegger
85
Esse exemplo ilustra bem uma das objeções essenciais que faço
à leitura vaihingeriana de Kant: o fato de Vaihinger não reconhecer a
importância da distinção entre os princípios do como se e os princípios
determinantes. Concedo que, para certos tipos de problemas, Kant
recomenda o uso de princípios do como se. Admito, além disso, que, em
fases iniciais dos seus estudos, Kant tentou resolver certos problemas,
como o da história moral do homem, mediante o recurso do como se.
Mas faço notar, contudo, que, nas fases seguintes, ele procurou, via de
regra, soluções que podiam ser formuladas como regras determinantes
ou como outros tipos de juízo mais fortes do que as regras meramente
reguladoras. Precisamente esses defeitos, que viciam a reconstrução
vaihingeriana do programa kantiano da crítica da razão pura, abrem o
flanco a objeções como as de Heidegger, mencionadas anteriormente
e que passarei a tratar a seguir.
4 Interpretação fenomenológica heideggeriana do programa
kantiano da crítica da razão teórica
É onipresente em Kant a exigência de sensificação dos
constructos do entendimento e da razão, pela qual (pelo menos alguns
deles) recebem um papel constitutivo da realidade objetiva, teórica ou
prática, perdendo, em virtude disso, o status de meros instrumentos de
cálculo e passando a representar e a determinar as coisas (embora não as
coisas em si). Na sua perspectiva antificcionalista (que tem como pano
de fundo a fenomenologia de Husserl), Heidegger apresentou, em vários
textos da sua primeira fase, uma interpretação da crítica kantiana da
razão pura teórica segundo a qual os conceitos e juízos a priori teóricos
de Kant expressam a estrutura ontológica do mundo natural. Darei
alguns elementos dessa interpretação.
No entender de Heidegger (1977 [1927/1928], GA 25, p. 10),
a crítica da razão pura “não é outra coisa do que a fundamentação
da metafísica como ciência”. Em um dos seus sentidos, o termo
“metafísica” refere-se à ciência ôntica de certa região do ente que é o
86
Zeljko Loparic
supra-sensível (p. 15). Heidegger concede prontamente que, segundo a
crítica kantiana, tal ciência é impossível (p. 61). Entretanto, Kant teria
sido o primeiro a compreender que a tarefa da crítica inclui também a
exigência de que seja esclarecido o conceito de ente em geral, isto é, que
seja elaborada uma ontologia, uma teoria do ser do ente (p. 15), que,
tomada no sentido universal e radical, é a essência da filosofia. Um nome
kantiano para a ontologia é “filosofia transcendental” (p. 58), que é tudo,
salvo uma filosofia do como se. Outro termo com o mesmo sentido é
“metafísica”, não mais entendida como ciência ôntica do supra-sensível,
mas como “apresentação do todo do conhecimento puro possível a priori
em conexão sistemática” (p. 62). Sendo assim, “filosofia transcendental”
e “metafísica” são designações kantianas para a ontologia reeditada
na chave da crítica. Essa ontologia foi elaborada por Kant como
metafísica da natureza no sentido formal, “o ente sendo entendido
como o meramente presente no sentido da natureza em geral”, tanto
física quanto psíquica (p. 63). Trata-se, portanto, da ontologia da
presentidade, sentido do ser do ente que Kant tomou, de modo não
crítico, da “filosofia transcendental” dos antigos (p. 44) e da ciência
moderna (p. 63). Em apoio a essa linha de interpretação, Heidegger
cita, entre outros textos, o trecho da primeira Crítica, no qual se lê
que a filosofia transcendental trata do sistema de “todos os conceitos
e princípios que se referem a objetos em geral sem assumir objetos
que sejam dados” (p. 64; cf. KrV, B ). Entenda-se, comenta Heidegger,
“dados como mera presentidade, quer para o sentido interno, quer
para o externo”. A referência de conceitos e princípios aos objetos em
geral não significa indicação a algo formal em geral, mas aos objetos,
ou seja, aos entes que podem ser encontrados na experiência em geral.
Kant não conhece, acrescenta Heidegger, “a ontologia formal de algo
em geral no sentido de Husserl”.
Kant notou – essa teria sido, segundo Heidegger, sua descoberta
fundamental – que a metafísica como ciência de objetos em geral (restritos,
contudo, a meras presentidades) formula os seus conhecimentos por
meio de juízos sintéticos a priori (p. 51). Isso conduziu Kant à pergunta:
Kant entre o ficcionalismo de Vaihinger e a fenomenologia de Heidegger
87
como são possíveis os juízos sintéticos a priori? Disso resulta a tarefa
fundamental da filosofia transcendental (ontologia) kantiana.9 A solução
oferecida por Kant consistiria na tese de que o pensamento puro e
a pura intuição do tempo pertencem necessariamente um ao outro.
Antecipando a doutrina husserliana de intencionalidade da consciência,
Kant teria sustentado que todo pensamento é, por essência, relacionado
ao objeto, e que essa relação ao objeto é, primariamente, a intuição.
Não se trata de intuição originária (atribuída pela filosofia tradicional a
Deus), da qual surge o intuído, mas de intuição finita, humana, que não
produz o seu objeto, entretanto, pelo contrário, “apenas se deixa dar o já
meramente presente” (p. 85). Sendo assim, “todo conhecimento está a
serviço da intuição, repousa sobre o fundamento da intuição dos objetos
e serve tão-somente à interpretação e à determinação do que se tornou
acessível no intuir” humano (p. 83).
Com o abandono da intuição absoluta, que gera as coisas em prol
do encontro imediato com as coisas, cai também, sustenta Heidegger,
o conceito de coisa em si e, por conseguinte, o de coisa supra-sensível.
As coisas (os entes em geral) são aparecimentos, objetos meramente
presentes, e nada mais. “Portanto, quando se nega a coisa em si”, comenta
Heidegger, “não se nega o estar presente das coisas que encontramos
diariamente, mas tão-somente que, além disso, elas sejam ainda objetos
de um Deus faber, de um Demiurgo” (p. 99-100). Essa redução da
ontologia à teoria do meramente presente, que exclui qualquer acesso ao
supra-sensível, representa uma limitação da possibilidade de elaboração
de ontologias explicitada em Ser e tempo e consiste na restrição do acesso
ao ente no seu todo à intuição finita, estilização feita a serviço da ciência
moderna. Para Kant, diz Heidegger (1996, GA 9, p. 73) ainda em 1964,
“objeto significa: objeto existente da experiência da ciência natural”.
Ora, para Kant, a raiz da intuição é a imaginação produtiva a
priori. Esta também seria a raiz do pensamento puro. O Espírito (o
pensamento puro) não cai no tempo, externo a ele, mas se explicita
como tempo, como estrutura e auto-estruturação do tempo. Os juízos
9
Cf., por exemplo, 1977 [1927/1928], GA 25, p. 51; e 1951 [1929], p. 22.
88
Zeljko Loparic
sintéticos a priori filosóficos são, portanto, determinações puras do tempo
(p. 427).10 Como essas determinações têm realidade intuitiva teórica, os
juízos sintéticos a priori da filosofia teórica enunciam as propriedades
estruturais da experiência possível, isto é, constituem a ontologia geral
do mundo sensível. Essa objetificação do ser do ente pode, em seguida,
ser dividida em ontologias regionais, que servem de fundamento para o
lidar ôntico e, em particular, científico com o ente (p. 3).
Heidegger tentou embasar essa interpretação ontológica da
filosofia transcendental com uma análise da Estética transcendental e da
Analítica transcendental da Crítica da razão pura. Em Kant, as percepções
empíricas não são ficções, mas o único acesso possível aos fenômenos
ônticos, isto é, às coisas elas mesmas. As formas da intuição kantianas
não são ficções e sim fenômenos; mais ainda, fenômenos ontológicos,
traços estruturais das coisas elas mesmas. O espaço e o tempo devem
poder mostrar-se, ou seja, devem poder tornar-se fenômenos, se Kant,
ao afirmar que o espaço é o a priori de uma ordem, pretende fazer uma
afirmação transcendental fundamentada, diz Heidegger em Ser e tempo (cf.
1927, p. 31). Fundamentada como? Mediante as estruturas fenomenais a
priori que se mostram em exemplos ônticos da ordem espacial e temporal
no mundo sensível. “Os espaços e os tempos são, portanto, em si mesmos,
sempre unidos, e, na medida em que são dados como algo puramente intuído,
também a sua unidade específica, a totalidade, é dada a priori”, num modo
de dadidade que, nas preleções de Marburg proferidas em 1927/28,
Heidegger chama de “síndose” (1977 [1927/1928], GA 25, p. 264-265).
Seguindo Husserl das Investigações lógicas, Heidegger sustentará
ainda que as categorias são dadas na intuição,11 atribuindo a Kant uma
versão ainda mais forte dessa tese: as categorias não se originariam da
tábua de juízos, como Kant chegou a sustentar de modo não crítico, mas
da intuição (1977 [1927/28], GA 25, p. 211). “O conceito do entendimento
10
Contudo, a posição de Kant não é totalmente satisfatória, visto que este não foi até o fim do
problema do relacionamento entre o pensamento puro e o tempo: a saber, não atentou para o
fato de o tempo precisar ser entendido como “unidade originária da constituição extática do sero-aí [Dasein]” (p. 426).
11
Esse ponto é explicitado por Heidegger, com particular clareza, no seminário de Zähringen, de
1973 (cf. 1986, GA 15, p. 375).
Kant entre o ficcionalismo de Vaihinger e a fenomenologia de Heidegger
89
não é dado mediante uma função formal-lógica, mas surge da síntese imaginativa,
isto é, relacionada à intuição e ao tempo” (p. 284; itálicos no original). O
próprio conteúdo das categorias “origina-se da síntese pura imaginativa
relacionada ao tempo” (p. 300). Por isso, é também possível atribuir a
Kant a tese segundo a qual a origem das categorias é o próprio tempo (p.
365). A tarefa principal da dedução das categorias é exatamente mostrar
que “a intuição pura do tempo e o pensamento puro a priori se encontram
numa relação necessária” (p. 425). A interpretação de Heidegger culmina
na afirmação de que o fundamento último da dedução das categorias
é o esquematismo, teoria da “relação” desses conceitos a formas puras
da intuição temporal (p. 431).
A relação necessária entre o pensamento e a intuição inclui a
união essencial entre o tempo e o eu penso. Nas preleções de 1925/1926
sobre a lógica, Heidegger escreve: “O eu penso não está no tempo
(nessa recusa, Kant está totalmente certo), mas é o próprio tempo,
mais precisamente: um modo do tempo, a saber, o modo de pura
presentificação” (1976 [1925/1926], GA 21, p. 405). Ora, a relação entre
a intuição e o eu penso produz o conhecimento com teor objetivo. Na
união a priori com a apercepção transcendental, o tempo, como intuição
pura, é “a dimensão da qual todas as determinações a priori da intuição
pura pelo pensamento haurem sua legitimidade” (idem). Como, além
disso, o tempo possibilita ao Dasein a pura compreensão do ser e das
determinações do ser, “as categorias, pela sua própria natureza, são
conceitos ontológicos.12
5 As limitações da interpretação fenomenológica heideggeriana
da filosofia teórica de Kant
Filologia à parte, várias dificuldades conceituais acompanham essa
interpretação, que transforma as categorias em conceitos ontológicos
e os juízos sintéticos a priori teóricos de Kant em teses ontológicas –
falando na linguagem de Heidegger, em modos de presentificação ou
objetificação do ente enquanto ente como objeto.
Uma referência sobre esse tema, entre muitas outras, encontra-se em Heidegger 1976 [1925/1926],
GA 21, p. 333.
12
90
Zeljko Loparic
Para começar, fica difícil aceitar a tese de que Kant excluiu a
metafísica do rol das ciências ônticas por ter estreitado o acesso ao ente
e, por conseguinte, o conceito de ente em geral a serviço da ciência
moderna da natureza. Na primeira Crítica e nos Prolegômenos, Kant deixa
muito claro que as dificuldades que assolam a metafísica decorrem
do fato de ela afirmar ou negar os juízos sintéticos a priori, que, por
conterem idéias teóricas que pretendem se referir ao incondicionado,
não podem ser esquematizados temporalmente. Por não poderem ser
sensificados, carecendo de realidade objetiva determinada, esses juízos não
são possíveis. Eles permanecem sem o valor de verdade determinado e
não podem ser provados nem refutados diretamente.13 Sendo assim, a
metafísica tradicional não é ciência. Mais ainda, a metafísica, doutrina
que emprega juízos sintéticos a priori comprovadamente não-possíveis,
jamais poderá se constituir como ciência. Por isso – aqui Vaihinger está
muito mais próximo de Kant do que Heidegger –, esses juízos devem
ser eliminados do discurso filosófico com pretensões científicas ou,
então, reformulados como princípios do como se, de valor meramente
metodológico. Essa conclusão não é resultado da redução do conceito
de ente em geral ao meramente presente e acessível tão-somente na
intuição finita, mas de uma análise semântica dos juízos empregados
pela metafísica como ciência do supra-sensível, estudo motivado pelas
dificuldades de elaborar uma teoria de prova desses juízos.
Mesmo assim, Kant não deixou “cair” o conceito de coisa em si,
nem, menos ainda, “negou” as coisas em si. Em Kant, a expressão “coisa
em si” refere-se a objetos que podem ser pensados sem contradição,
mas que não podem ser exemplificados na experiência possível (KrV, B
310). Conceitos de coisas em si são sistematicamente usados por Kant
em todos os princípios do como se. O referente presumido do conceito
de força gravitacional de Newton, por exemplo, conceito amplamente
usado por Kant na sua filosofia da natureza, é uma coisa em si. É muito
significativo Heidegger ter sistematicamente evitado comentar esses
13
Alguns deles, por exemplo, os cosmológicos, podem ser provados indiretamente, pela redução
ao absurdo de suas negações. Mas esse procedimento leva a antinomias.
Kant entre o ficcionalismo de Vaihinger e a fenomenologia de Heidegger
91
princípios tão claramente enunciados por Kant, que, como disse, não
admitem uma semântica temporal, mas que, mesmo não tendo uma
realidade objetiva, são parte constitutiva da metodologia a priori kantiana
da pesquisa empírica. O grande mérito de Vaihinger foi precisamente o
de ter chamado a atenção para esse fato. Acrescente-se que a negação da
existência de coisas em si é um juízo não-possível, precisamente porque
a expressão “coisa em si” refere-se a objetos que não pertencem ao
domínio da experiência possível. Tal juízo não pode ser provado nem
refutado, não devendo, portanto, fazer parte de nenhuma ciência a priori,
nem a fortiori, da filosofia transcendental de Kant.
É igualmente difícil aceitar a tese de que Kant teria concebido
a sua filosofia transcendental como ontologia da presentidade. Nos
Prolegômenos, Kant (1783, p. 17) apresenta a filosofia transcendental
como “uma ciência totalmente nova, na qual ninguém antes tinha
pensado, da qual a simples idéia era desconhecida e para a qual nada
até agora pôde ser de utilidade, a não ser o aceno dado pelas dúvidas
de Hume”. Essa ciência tem uma única tarefa – responder à pergunta:
como são possíveis juízos sintéticos a priori? (p. 45). É muito difícil
interpretar essas afirmações como um relançamento da metafísica
ou da ontologia. Seja como for, na seção “Fenômenos e númenos”,
parte estratégica da primeira Crítica, Kant fez uma afirmação decisiva
sobre a sorte da ontologia no seu sistema, jamais citada (pelo que sei)
por Heidegger. O resultado importante da analítica transcendental,
diz Kant, é que os princípios do entendimento são tão-somente
“regras de exposição dos aparecimentos”, “devendo o soberbo
nome de ontologia – a qual se arroga o direito de fornecer em uma
doutrina sistemática conhecimentos sintéticos sobre coisas em geral
(por exemplo, o princípio de causalidade) – ceder lugar ao modesto
nome de uma simples analítica do entendimento puro” (KrV, B 303).
Fornecer uma teoria da exposição dos aparecimentos em conceitos
puros ou empíricos – finalidade exclusiva da analítica do entendimento
puro – é o mesmo que estabelecer a base de elaboração de discurso
teórico determinadamente verdadeiro ou falso sobre os aparecimentos,
92
Zeljko Loparic
não sobre o ente no seu todo como tal. Kant não refez, portanto, a
ontologia geral em termos da uma filosofia da natureza no sentido
formal; ele tomou uma atitude totalmente nova na história da filosofia:
condicionou a resposta a toda e qualquer pergunta teórica à solução
de um problema anterior, o da possibilidade de um discurso teórico
significativo em geral. Desta feita, Kant operou um semantic turn na
filosofia moderna, passo revolucionário, cuja natureza jamais foi
adequadamente apreciada por Heidegger.14 A filosofia transcendental
de Kant, tal como apresentada na primeira Crítica, não é metafísica
nem ontologia, é uma semântica a priori.
Vários argumentos simples podem ser apresentados para
fortalecer essa conclusão (que, sem dúvida, exigiria uma análise mais
aprofundada). Um deles consiste em observar que Kant, ao construir
o conceito de experiência possível, não visa a responder à pergunta
sobre “tudo o que há” – essa é a tarefa da filosofia da natureza –, mas
à pergunta de saber como devem ser determinados os objetos de juízos
sintéticos não apenas a priori, mas em geral, para que esses juízos sejam
possíveis (determinadamente verdadeiros ou falsos) em relação a esses
objetos. O conceito de objeto da experiência não tem por fim captar o
que há, no sentido de pura presentidade ou de qualquer outro sentido
do ser, mas especificar os elementos do único domínio a nosso dispor
para assegurar a aplicação determinada dos juízos sintéticos a priori,
tarefa central da filosofia transcendental.15 Tendo sido circunscrito com
fins estritamente lógico-semânticos, e não ontológicos, esse domínio não
esgota o ente no seu todo – na linguagem de Kant, os objetos em geral,
que podem ser pensados sem contradição, tomados problematicamente e
sem decidir se são algo ou nada (KrV, B 332). Note, ainda, que os objetos
kantianos da experiência não são entes no sentido da ontologia tradicional,
mas algo = x, isto é, incógnitas, cujos valores são os dados sensíveis, mas
que, em si mesmas, não são objetos de conhecimento (KrV, A 251).16
Cf. Loparic, 2005 [1982].
Mostrei, em outro lugar (cf. Loparic, 2004), que, conforme sustenta o Heidegger tardio, a
semântica kantiana exclui a possibilidade de uma teoria geral do ente como tal no seu todo.
16
Uma explicação detalhada desse ponto encontra-se em Loparic (2005 [1982], cap. 7).
14
15
Kant entre o ficcionalismo de Vaihinger e a fenomenologia de Heidegger
93
Há, portanto, boas razões para questionar se a frase da primeira
Crítica, B 873, citada por Heidegger (ver anteriormente), realmente afirma
que a filosofia transcendental é uma ciência a priori do ente enquanto
ente (meramente presente). Acrescente-se que, segundo Kant, o saber
que ele chama de transcendental “não se ocupa tanto de objetos, mas
com o nosso modo de conhecer objetos, na medida em que este deve
ser possível a priori” (KrV, B 25). Num outro trecho, o sentido semântico
do conhecimento transcendental é ainda mais claro. Kant avisa que “não
deve ser denominado de transcendental todo conhecimento a priori, mas
somente aquele pelo qual conhecemos que e como certas representações
(intuições ou conceitos) são aplicadas ou possíveis unicamente a priori
(isto é, [pelo qual conhecemos] a possibilidade do conhecimento e o
seu uso a priori)” (KrV, B 80).
Outro argumento consiste em observar – algo que Heidegger
deixou de fazer – que, na primeira Crítica, Kant trata exclusivamente
da possibilidade de juízos sintéticos a priori teóricos e que, ao longo da
realização do seu programa crítico, ele estendeu essa pergunta a todos os
juízos sintéticos a priori, incluindo progressivamente os juízos sintéticos
a priori morais, estéticos, políticos, jurídicos, da doutrina da virtude e
da história. A fim de assegurar a realidade objetiva de cada um desses
conjuntos de juízos, Kant (1797, p. 48) introduziu novos domínios de
interpretação, em particular, uma “estética dos costumes”, que tematiza
sentimentos morais, predisposições morais etc., e é usada para garantir
a sensificação de juízos sintéticos a priori práticos em geral. É óbvio que
os juízos morais ou estéticos, por exemplo, não dizem respeito ao que
há; portanto, não têm relevância ontológica. A filosofia transcendental
ampliada de Kant é, desse modo, uma semântica geral a priori e não uma
ontologia da mera presentidade.
A interpretação heideggeriana da Estética transcendental e da
Analítica transcendental da Crítica da razão pura também incorre em
dificuldades. É difícil ver a relação que haveria entre a estrutura do
tempo extático da ontologia fundamental e as estruturas lógico-formais
(sintáticas) consideradas por Kant na sua teoria das categorias e dos
94
Zeljko Loparic
juízos a priori teóricos. Assim como todos os outros juízos sintéticos, os
juízos a priori são divididos em quatro classes. Essa divisão, que também
se aplica às categorias, não foi contestada por Heidegger. Ora, é mais do
que óbvio que ela não tem nenhuma relação com o tempo, nem com
a intuição; ela é baseada exclusivamente – Kant é muito claro sobre
isso – nas formas puras (isto é, não-interpretadas) do pensamento,
estudadas pela lógica formal. O eu penso kantiano, ou seja, a pura
função de julgar, é um conjunto de modalidades da síntese discursiva,
lógica, e não da intuitiva. Ele não é um modo de presentificação, o qual,
por ser uma operação intuitiva, não tem modalidades lógicas.
Quanto às categorias, elas são descobertas e classificadas com
base nas formas lógicas dos juízos, que visam a determinar objetos
do conhecimento em geral, não tiradas dos modos de temporalização
independentes dos juízos e vazios de objetos. A dedução das categorias
não mostra que a intuição pura do tempo e o pensamento puro a priori
se encontram numa relação necessária, mas sim (como diz Kant ao
resumir o resultado da dedução) que nenhum objeto pode ser pensado
a não ser mediante categorias (KrV, B 165). Produtos das operações
lógicas da mente humana, as categorias expressam as condições também
meramente formais que todo objeto precisa satisfazer a fim de poder
ser determinado por nós em um juízo. Como um objeto só pode ser
conhecido por nós por meio das intuições sensíveis que constituem o
domínio de experiência possível, segue-se que as categorias se aplicam
necessariamente a esse domínio e só a esse domínio, assegurando, dessa
forma, a possibilidade do conhecimento do que é empírico, mas não do
que é supra-sensível. A questão de saber quais são as regras de aplicação
das categorias à experiência possível não faz parte da dedução, mas
do capítulo sobre o esquematismo (KrV, B 167). É, portanto, grave
engano afirmar, como faz Heidegger, que o capítulo do esquematismo
oferece o fundamento da dedução.
A conexão entre os juízos puros do entendimento e o tempo
pode existir, mas não é direta; ela precisa ser estabelecida mediante as
regras do esquematismo. São esses procedimentos não-judicativos, e não
os próprios juízos do entendimento, que produzem as determinações
Kant entre o ficcionalismo de Vaihinger e a fenomenologia de Heidegger
95
do tempo. Ao sensificarem as categorias e as relações entre elas,
afirmadas nesses juízos, as operações do esquematismo temporal
permitem que esses produtos discursivos da nossa faculdade cognitiva
(esse termo pertence à antropologia) sejam aplicáveis aos fenômenos
temporais, ou seja, a aparecimentos em geral. Em outras palavras, o
sentido temporal das categorias não faz parte da definição destas,
decorrendo da aplicação das categorias às formas puras da intuição
mediante regras da semântica kantiana dessas formas (a semântica
transcendental de Kant). Da mesma forma, o sentido temporal dos
princípios do entendimento não faz parte da definição, nem decorre
do modo de produção destes, mas lhes é conferido mediante regras
da semântica a priori de Kant.
Seduzido pela regra de Husserl de retorno às coisas elas mesmas
e pela tese, tirada de Aristóteles, de que a filosofia fundamental é uma
ontologia, Heidegger buscou em Kant uma metafísica que fosse uma
ontologia. Perdeu a oportunidade de perceber nele o teórico de regras
de conceitualização dos fenômenos, elaboradas com a única finalidade
de guiar a resolução de problemas teóricos. Algumas dessas regras são
juízos objetivamente verdadeiros, como os princípios do entendimento
e certas proposições da mecânica de Newton. Outros não o são, como
é o caso dos princípios do como se, juízos que, por carecerem de
conteúdo objetivo, não podem ser interpretados como modos a priori
de presentificação. Os Prolegômenos para toda metafísica futura que poderá se
estabelecer como ciência não relançam a metafísica, são um réquiem para toda
metafísica, passada, presente ou futura, entendida como ciência ôntica
do supra-sensível ou como ontologia da presentidade.17
As dificuldades da interpretação heideggeriana não se tornam
menores pelo fato de ele, assim como Vaihinger, ter reconhecido que
a sua leitura de Kant era unilateral e mesmo “forçada” (gewaltsam, 1977
[1927/1928] GA 25, p. 365). A justificativa para tal leitura não são as
supostas contradições de Kant, mas a regra que impõe ao intérprete
o dever do entender o autor estudado melhor do que ele mesmo se
17
É preciso notar, ainda, que Kant usa o termo “metafísica” também para se referir aos conjuntos
de juízos sintéticos a priori que podem ser sensificados, por exemplo, aos primeiros princípios da
mecânica. Sobre esse ponto (Cf. Loparic, 2003a).
96
Zeljko Loparic
entendeu (p. 3). Aplicada a Kant, essa regra permite não apenas criticar
as incertezas e confusões deste (p. 334), mas também fazê-lo dizer mais
do que disse (p. 67), ir além dele (p. 359) ou, até mesmo, se posicionar
contra ele (pp. 261 e 358). Tudo isso precisava ser feito (e foi feito) com
Kant por interesses superiores do pensamento humano e da própria
filosofia, os mesmos que teriam sido defendidos já por Husserl, contra os
neokantianos, com a teoria que afirma o caráter essencialmente intuitivo
do conhecimento – não apenas ôntico, como também, e sobretudo,
ontológico (p. 83) –, recebendo o seu coroamento pela ontologia
fundamental de Ser e tempo, centrada no fenômeno do relacionamento
objetificante do homem ao ente como ente e ao ser.
É interessante notar que o Heidegger (1969, p. 63) tardio parece
ter chegado muito perto de poder reconhecer vários pontos da crítica
que assinalei. No artigo intitulado “O fim da filosofia e a tarefa do
pensamento”, ele admite que a ciência contemporânea desconhece os
interesses superiores do pensamento humano, tendo caído, depois de
passar por Nietzsche, sob o domínio do positivismo, tomando uma
postura essencialmente não-fenomenológica. Mais ainda, Heidegger
atribui à ciência um modo de teorizar próximo do preconizado por
Vaihinger. O termo “teoria” significa, escreve Heidegger nesse texto,
“suposição de categorias às quais é concedida tão-somente uma função
cibernética, sendo-lhe retirado todo e qualquer sentido ontológico.
O caráter operacional, ligado ao uso de modelos, do pensamento
representacional-calculador chega a predominar” (p. 64; os itálicos são
meus). Esse tipo de atividade precisa apenas de “lógica, no sentido de
lógica formal e semântica” (p. 63).18 Só faltou Heidegger reconhecer
que, ao proceder assim, a ciência se comporta como legítima herdeira de
Kant, que, já em 1781, iniciou um programa de crítica da razão pura com
base na lógica formal da época (a silogística de Aristóteles) e na semântica
a priori de conceitos a priori, em particular, de categorias, e de juízos
sintéticos a priori em geral (lógica transcendental, disciplina criada pela
18
No original: Logik als Logistik und Semantik. Creio poder reconhecer aqui a influência de uma
leitura de Carnap por parte do Heidegger tardio, visível também em outros textos (cf., por exemplo,
1996, GA 9, p. 70). Minha interpretação semântica de Kant e da atividade científica em geral, que
desenvolvi em vários escritos, inspira-se nessa mesma fonte.
Kant entre o ficcionalismo de Vaihinger e a fenomenologia de Heidegger
97
virada semântica de Kant), classificando a ontologia entre as doutrinas
dogmáticas do passado. Heidegger parece, finalmente, ter reconhecido
o fato de a ontologia não ser (se é que realmente foi alguma vez) o
fundamento do “lidar científico com o ente”, tendo sido substituída pelos
diferentes tipos de discursividade meramente operacional, instituída por
Kant e desconhecida por Heidegger durante longos anos.19
Lembro, ainda, que nos seminários de Le Thor, de 1969, Heidegger
(1986, GA 15, p. 355) concede o fato de que a atividade cognitiva
dos nossos dias, representada de modo paradigmático pela ciência
contemporânea, não implica mais a resposta à pergunta fundamental
da metafísica (o que é o ente?), produzindo, ela mesma, as categorias
para os seus campos de pesquisa, com a finalidade exclusiva de poderem
ser usadas, provisoriamente, como guias meramente operacionais,
metodológicos, na pesquisa teórica e factual; portanto, sem terem mais
“qualquer significado ontológico” ou mesmo descritivo.
6 Observações finais
Vaihinger e Heidegger produziram leituras radicalmente distintas
da filosofia crítica da Kant. Cada um reconheceu o caráter unilateral
de sua interpretação. Apresentei vários casos dessa unilateralidade.
Mostrei – para lembrar apenas os pontos absolutamente cruciais – que
as categorias de Kant não são os conceitos meramente ficcionais no
sentido enfatizado por Vaihinger, nem têm conteúdo ontológico, como
afirma Heidegger. Elas são produtos das operações lógicas da mente
humana, que expressam as condições também meramente formais que
todo objeto precisa satisfazer a fim de poder ser pensado e conhecido
por nós num juízo com conteúdo empírico. Fiz ver que os princípios
Essa constatação também põe um sinal de interrogação sobre a tese de Heidegger de que a técnica
moderna seria baseada na forma terminal do saber metafísico, resultado da história da metafísica,
mas esquecida das suas origens. A história da ciência parece mostrar-me, antes, que a metafísica
tradicional não é a fonte nem o fundamento do saber científico, mas uma forma pré-crítica do
saber da qual a ciência precisou se livrar a fim de poder progredir. Se essa leitura estiver correta,
a reconstrução heideggeriana da história do ser deixa de ser a chave da discussão sobre a origem
e o poder da técnica moderna.
19
98
Zeljko Loparic
do entendimento não são princípios do como se, privilegiados por
Vaihinger, nem teses ontológicas, detectadas por Heidegger, mas sim
parte da verdade transcendental, isto é, enunciam as condições de
possibilidade de todos os outros juízos sintéticos, tanto a priori como a
posteriori, que são parte essencial da teoria das provas desses juízos.
Mesmo unilaterais, as interpretações de Vaihinger e Heidegger
esclarecem pontos importantes freqüentemente negligenciados do
pensamento kantiano. Vaihinger chamou a atenção para a importância no
sistema kantiano dos princípios do como se, os quais, mesmo sem terem
valor objetivo determinável, possuem um valor heurístico sem o qual a
construção do sistema do conhecimento natural é impossível. Heidegger
destacou o caráter intuitivo do acesso aos objetos do conhecimento
teórico enquanto tais, deixando, assim, aberto o caminho para uma
interpretação da filosofia teórica de Kant não como psicologia, mas em
termos de uma semântica a priori do tipo construtivista.
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WRIGLEY, Michael B.; SMITH, Plínio J. (Org.). O filósofo e sua
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UNICAMP, 2003.
Recebido em: 23 de janeiro de 2008.
Aprovado em: 10 de fevereiro de 2008.
Número Especial:
Heidegger e a Educação
A determinação ontológica do Mundo:
um perfeito a priori
Sônia Barreto*
I
Resumo: O artigo analisa o conceito ontológico de mundo seguindo alguns
passos da desconstrução dos conceitos tradicionais de tempo, transcendência e
mundo, além da categoria de realidade a qual determina, matematicamente, o
grau de efetividade dos aparecimentos, tradicionalmente compreendidos como
coisas ou objetos simplesmente dados. Nesse sentido, partimos da afirmação
de Heidegger (1988, p. 131), de que “o fenômeno do mundo é o contexto em
quê (Worin) da compreensão referencial, enquanto perspectiva de um deixar e
fazer encontrar um ente no modo de ser da conjuntura”. Nesta afirmação, fica
delimitado o primado ontológico da constituição existencial do Dasein, frente
ao primado lógico da constituição categorial do sujeito.
Palavras-chave: Mundo. Realidade. Ontologia. Lógica
World’s ontological determination: a perfect a priori
Abstract: This article analyses the ontological concept of world, accompanying
a few footsteps from the desconstruction of the traditional concepts of time,
transcendence and world, besides the category of reality, the one what he
* Doutora em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora da
Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail: [email protected]
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação
Vitória da Conquista
Ano VI
n. 10
p. 101-121
2008
Sônia Barreto Freire
102
determines, mathematically, the degree of effectiveness of the appearances,
traditionally understand as a things or objects simply given. In this connection,
we breaked from the afirmation of Heidegger (1988, p. 131), than “The
phenomenon of world is the context in which (Worin) from the compreension
referencial, while perspective of a leave and make find a being in way of being
from conjuncture”. In this afirmation, it is delimited the ontologic precedence
from the existential constitution of the Dasein, forefront the logic precedence
of constitution categoric from the subject.
Key-words: World. Reality. Ontology. Logic.
I
Em Sein und Zeit, Heidegger afirma que a transcendência do
mundo se inscreve no horizonte transcendental do tempo. Esta indicação
demonstra como comparecem, como são possíveis e qual o sentido dos
conceitos de tempo, transcendência e mundo na Analítica da Existência, tanto
no que se refere ao passo desconstrucional do método, quanto na perspectiva
da referibilidade e a significância possibilitada pelos esquemas ekstáticos da
temporalidade. Nessa direção, convém mencionar que uma vez delimitado
o horizonte temporal do qual são retiradas as estruturas existenciais, seguese a interpretação das modalizações da temporalidade, possibilitadas pela
desconstrução do conceito tradicional de tempo, assim como pela elaboração
do construto unitário ser-no-mundo, haurido da desconstrução da relação
sujeito-objeto e da interpretação da significância constitutiva da estrutura
do mundo, com base na desconstrução do conceito tradicional de mundo.
Tal procedimento não se configura num momento fragmentado do passo
construtivo-desconstrutivo do método, mas como sua constituição nuclear,
da qual é extraída a Analítica da Existência.
Nessa perspectiva, ser sob o modo da existência significa
ontologicamente ser a priori conforme o mundo, o que implica dizer que não
ocorre ao Dasein ser primeiramente um ente livre do mundo para depois
assumir uma “relação” de conhecimento com este. A cura (Sorge) não é uma
soma de partes ou o resultado de um procedimento sintético, mas se constitui
numa totalidade estrutural, uma vez que a existência é essencialmente
A determinação ontológica do Mundo: um perfeito a priori
103
mundana e consiste em já ser adiante de si, num modo de ultrapassamento
de si, isto porque de fato, existir é decair junto aos entes.
Mas, o sentido da cura (Sorge), que modaliza ou esquematiza os
modos de acesso aos entes, é a temporalidade que constitui o ser do
Dasein. Usando a terminologia kantiana, o Dasein é constitutivamente o
esquema, uma unidade mundana esquematizada temporalmente, uma
vez que esquemas constituem sentidos e modos de acessos significativos.
Assim, podemos dizer que a estrutura compreensiva do Dasein, em sua
interpretação concreta, pode ser lida como uma semântica existencial
ou como uma semântica mais originária, uma vez que toda interpretação
advém da compreensão que já possui, previamente, a estrutura de algo
como algo (Etwas als Etwas) a qual tem sua concreção na cura (Sorge).1
Ora, os esquemas se determinam a partir da existencialidade
(Existenzialität) e estes mantêm o nexo ekstático horizontal da
temporalidade, o que implica dizer que são esquemas ontológicos e
não logicamente determinados. Assim compreendido, o esquematismo
pode ser considerado como a dimensão temporal operativa da totalidade
estrutural da cura (Sorge) ou, como o âmbito do originariamente
semântico, uma vez que Heidegger considera a impossibilidade da
compreensão e interpretação fora do mundo, porque sequer pode-se
considerar Dasein sem mundo. Sendo assim, o situar-se mundano se
abre de fato, enquanto condição de possibilidade da descoberta de
entes intramundanos. Esses entes se constituem de um modo distinto do
Dasein porque podem ser compreendidos com base na disponibilidade
(Zunhandenheit) ou no modo de ser do objeto (Vorhandenheit), uma vez
que esses modos assinalam o sentido e a significação referencial.
Se for constitutivo da existência ser de fato essencialmente
mundana, e se o “regulador primordial” da unidade ser-no-mundo, (inder-Welt-sein) a temporalidade, esquematiza ekstaticamente, então pode-se
De acordo com Stein (1993, p. 41), “a questão da significabibilidade, ligada ao todo referencial,
ao conjunto das remissões, etc., todas elas são vários tipos de expressões que Heidegger quer
desenvolver sempre na mesma direção. Na direção de que o caráter ontológico do Dasein já é
um caráter que ultrapassa o empírico, mas também está aquém do transcendental subjetivista, do
transcendental egóico. O Dasein está posto entre a questão transcendental e empírica, justamente já
munido por aquilo que Kant vai introduzir, que é a questão do tempo e a questão do esquematismo,
através da imaginação”.
1
104
Sônia Barreto Freire
dizer que os esquemas se configuram em interpretações concretas dos
existenciais. Estes esquemas, enquanto condição de abertura e visão prévia,
possibilitam a significância e referencialidade (Angewiesenheit) a priori, por
isso essa estrutura não é deduzida logicamente, mas fenomenologicamente
descrita e interpretada segundo o caráter antecipativo da previsão e da
pré-compreensão abertas ekstaticamente.
Contudo, convém ainda assinalar que o caráter apriorístico nada tem
de um a priori formal ou interno, assim como o modo da conformidade
com o mundo não é algo dado na relação de “correspondência” ou
“concordância”, a exemplo do modelo operativo sintético do sujeito
transcendental, que encontra o seu lugar primário num enunciado
conformado às formas categoriais, como função determinante de um
juízo acerca de algo dado. Afastado da estrutura categorial e do tempo
que informa os dados externos, a existência (Dasein) é constituída conforme
o mundo, quer se determine de modo próprio, impróprio ou indiferente.
O ser conforme não comporta representação alguma “entre” Dasein e
mundo, porque não há sequer um “entre” que pudesse ainda conformar
uma coisa à outra, como ocorre na relação sujeito objeto. Desse modo,
a totalidade ontológica estruturalmente articulada como cura (Sorge),
significa já ser-em (in Sein) um mundo enquanto unidade.
Mas, perguntar pelo todo estrutural articulado à unidade,
considerando a diversidade de suas modificações, equivale à seguinte
questão: como é possível a cura (Sorge)? Sabemos que esta não é
deduzida, assim como não se funda na identidade indiferenciada de um
sujeito, enquanto substancialidade. A condição de ser sob o modo da
possibilidade, traduz o primado da estrutura modal da temporalidade e
sua estrutura antecipativa. Em vista disso, fica fora do campo aberto a
priori, qualquer tentativa de fundamentar o ser real.
Com a abertura de mundo, já se descobriu o “mundo”.
Sem dúvida, o ente intramundano no sentido de real, de
ser simplesmente dado, pode ficar encoberto. Entretanto,
somente com base num mundo já aberto é que o real pode vir
a ser descoberto ou ficar encoberto. Coloca-se a questão da
“realidade” do “mundo externo” sem se esclarecer previamente
o fenômeno do mundo (1988, p. 269).
A determinação ontológica do Mundo: um perfeito a priori
105
Sendo assim, a interpretação fenomenológica não se configura
numa busca visando desvendar a pergunta “como a realidade é possível”.
Do mesmo modo que o a priori fenomenológico não se constitui em
forma pura propiciadora de conhecimento. Na base da fenomenologia
está o inacabamento, a incompletude que não quer dizer negatividade, mas
somente possibilidade e modificação, o que exclui toda tentativa de prova
da realidade, e elimina qualquer pressuposto “atemporal” fundante.
Até aqui, podemos constatar que a pergunta pelo mundo remete
ao círculo da repetição da pergunta pelo sentido do ser, na medida que
esta requer uma interpretação modal da temporalidade do Dasein, põe
o conceito de existência dentro de seus limites e repete, do mesmo modo,
a questão do tempo, eliminando com base na possibilidade, o modelo
“imortalista de filosofia” e com este, o seu caráter de infinitude e
presentidade. Porque o tempo acompanha infinitamente os chamados
dados reais, ele é tradicionalmente concebido como presentidade; a via
limitativa da existência à esfera da finitude, destitui a principal tese da
representação vulgar do tempo, a de que ele é “infinito”.2
Mas a interpretação ontológica do Dasein, em sua íntima
conexão com a temporalidade, inclui do mesmo modo, a interpretação
da espacialidade (Räumlichkeit), tendo em vista o nexo ontológico
possibilitado pela cura (Sorge) enquanto totalidade existencial significante
e mundanidade como totalidade referencial significativa. No horizonte da
destruição, a consideração da realidade e possibilidade do mundo como
problema ontológico acontece com base no retorno à modernidade,
“estação decisiva” nesse percurso.
Desse modo, não somente a concepção kantiana do tempo, mas
também a de espaço será submetida ao crivo analítico da problemática
ontológica do mundo inclusive porque, na semântica kantiana, espaço
e tempo constituem o ponto de partida da experiência possível.
Tradicionalmente a compreensão do ser acontece a partir do ente e depois
é construída, por meio de operações de síntese, enquanto via de acesso na
relação sujeito-objeto. Nesta direção, Heidegger considera que a relação
2
Heidegger (1988, p. 232-241).
106
Sônia Barreto Freire
tradicional acerca do sujeito e do mundo, compreendida como uma
relação entre dois entes simplesmente dados, culminou numa interpretação
inadequada. Primeiro encontra-se o sujeito, depois aparece o mundo, mas
é justamente o sujeito que suspende o mundo que empreende a tentativa
de conhecimento do mundo. Ora, o princípio que guia essas interpretações
se ancora, primeiramente, na constituição da subjetividade, considerada
desde Descartes como algo evidente por si mesmo. Assim posto, não
haveria evidência mais imediata, embora necessitasse de mediação, que
a referência de um sujeito a um objeto. Para a ontologia tradicional,
este se constitui num pressuposto necessário e ponto de partida evidente.
Todavia, considerando-se que o sujeito precisa de algum modo ligar-se ao
mundo, a ontologia sempre procurou uma forma de demonstrar como o
conhecimento consiste em “ligar” o sujeito ao mundo.
Heidegger compreende o sentido ontológico do ser-nomundo como estrutura unitária. O que Kant considera o sujeito do
conhecimento, que se determina de modo distinto do sujeito da ação,
o teórico e o prático, Heidegger encontra na unidade da cura (Sorge).
Assim, ontologicamente a compreensão de mundo não acontece como
conhecimento do mundo, na medida em que, do ponto de vista da
analítica, é considerada vã qualquer tentativa de dedução, ou de prova
da relação de conhecimento entre sujeito e mundo, que considerasse,
de início, a interioridade do sujeito, referida à exterioridade do mundo,
a fim de garantir-lhe realidade, no sentido de efetividade.
Se as estruturas fundamentais do Dasein podem ser visualizadas
a partir de seu percurso temporal no mundo, então
A perfectio do homem, o ser para aquilo que em sua liberdade
pode ser para suas possibilidades mais próprias (para o projeto), é
um desempenho da cura (Sorge). De modo igualmente originário
ela determina, porém, o modo fundamental desse ente, segundo
o qual ele está entregue ao mundo da ocupação (estar-lançado)
(Heidegger, 1988, p. 265).
Por isso a investigação ontológica examina, na estrutura da
mundanidade, os modos de ser da manualidade e do ser simplesmente
A determinação ontológica do Mundo: um perfeito a priori
107
dado. Mas Heidegger adverte que diante da polissemia da palavra
“mundo”, sua clarificação trará à tona “seus nexos referidos nas diferentes
significações”, o que demonstra por que a interpretação da significância
e da referibilidade suscitam a retomada da tradicional consideração
do problema da realidade do mundo, tendo em vista a necessidade de
colocá-lo no âmbito de suas condições e limites.
II
Ao questionar as formas tradicionais de investigação e
interpretação, ligadas à possibilidade de fundamentar uma prova da
realidade do mundo, Heidegger tenta algo totalmente distinto da
tradição ontológica. Pela via fenomenológica, ele considera supérflua a
necessidade de busca de um fundamento de prova para a existência do
mundo. Ao elaborar uma analítica do Dasein, nela fica determinado que
sendo este ente o único existente, e estando sua existência determinada
pelo fato de ser-no-mundo, então “a existência entendida corretamente,
resiste a tais provas porque ela já sempre é, em seu ser, aquilo que
as provas posteriores supõem como o que se deve necessariamente
demonstrar” (Heidegger, 1988, p. 271).
Nesta direção, a interpretação ontológica do conceito de mundo,
não requisita o sujeito do conhecimento, mas parte da interpretação da
conjuntura, enquanto modo de ser dos entes intramundanos. Contudo,
considerando que a totalidade conjuntural não constitui nenhum manual,
este se determina como ser-no-mundo (in-der-Welt-sein) e nesta estrutura
a mundanidade pertence à sua constituição. No sentido ôntico, o deixar
e fazer em conjunto, no manuseio ocupado com entes que se liberam,
é ontologicamente interpretado enquanto liberação prévia do manual
ou, descoberta de possibilidade de deixar vir ao encontro, o ente no seu
modo de ser. Afastando-se da consideração objetiva dos entes, Heidegger
(1988, p. 129) dirá que,
Esse deixar e fazer em conjunto “a priori”, é a condição de
possibilidade para o manual vir ao encontro de tal maneira que,
108
Sônia Barreto Freire
no modo de lidar ôntico com o encontro dos entes, o Dasein
possa deixar e fazer em conjunto, em sentido ôntico. Do ponto
de vista ontológico, porém, deixar e fazer ser em conjunto diz
respeito à liberação de todo manual como manual.
De acordo com a determinação mundana do Dasein também
denominada por Heidegger como um “perfeito transcendental”3, e
frente ao modo como a tradição põe a questão do mundo, algumas
considerações são retomadas e submetidas à ontologia fundamental.
Uma primeira questão diz respeito à aceitação da orientação
ontológica do mundo como um quid, como algo que se determina
categorialmente em sua quididade. Heidegger pergunta: deve a
investigação filosófica indagar acerca do fundamento de legitimidade
da realidade do mundo? Como é possível ser no mundo, e ao mesmo
tempo ainda exigir provas da existência do mundo? De que modo
a analítica estabelece a estrutura a priori que analisa Dasein, mundo e
manualidade como unidade?
Heidegger contextualiza a discussão do conceito de realidade no
âmbito dos embates epistemológicos, a saber, no âmbito do realismo
e do idealismo, com base nas quais, a questão do ser teria tomado uma
direção desviante. Nesse sentido, nos voltamos para o diálogo que
Heidegger estabelece com Kant, seguindo alguns passos na direção do
problema da prova da existência objetiva do mundo, oferecida pela sua
semântica transcendental.
Vimos precedentemente, que quando Heidegger nomeia Kant
como um “herdeiro de Descartes” torna-se mais clara a alusão feita
no § 6 de Sein und Zeit no que se refere ao recuo de Kant frente a
Nas notas extraídas da edição de Sein und Zeit, constante das obras completas (Frankfurt am
Main: Vittorio Klostermann, 1977), Heidegger explicita o uso do vocábulo perfeito dizendo que,
“no mesmo parágrafo, falou-se da ‘liberação prévia’ – a saber (falando-se em geral), do ser para
a possível revelação dos entes. Nesse sentido ontológico, ‘prévia’ significa lat. a priori, em grego
προτερον τη φυσει Aristóteles, Física A 1; ainda mais claramente Metafísica E 1025 b 29 το τι τν
ειναι ‘o que já foi ser’, o que sempre já vigorou antecipadamente, o passado-presente, o perfeito. O
verbo grego ειναι não conhece nenhuma forma de perfeito; esse é aqui evocado no ην ειναι. Não
o que onticamente passou, mas o que é sempre mais cedo, ao qual nos referimos retroativamente
na questão dos entes como tais; ao invés de perfeito a priori, poder-se-ia também dizer: perfeito
ontológico ou transcendental (cf. a doutrina kantiana do esquematismo)” (ST, 1988, § 18, p. 127134 e p. 304-305, nota 55).
3
A determinação ontológica do Mundo: um perfeito a priori
109
uma investigação explícita acerca “dos juízos mais secretos da “razão
universal”, cuja análise foi apresentada por Kant como o “ofício
dos filósofos” (1988, p. 52). A aceitação da evidência da res cogitans e
sua preeminência frente a res extensa culminam conseqüentemente, na
necessidade de uma prova da existência do mundo, da extensio.
Assim, a falta de uma “analítica prévia”, por parte de Kant,
resultou da aceitação da evidência do sujeito. Em conseqüência disso
a crítica kantiana precisaria estabelecer condições que permitissem a
unidade entre o sujeito e o mundo, o que Kant encontra na “doutrina
do esquematismo”. Sabemos que os esquemas transcendentais são
processados com as representações dos materiais dados exteriormente,
trazidos do mundo, os aparecimentos; o processo sintético que possibilita
a unidade das representações comparece na filosofia crítica, como
condição determinante para o conhecimento de objetos.
Não é por acaso que Heidegger nomeia Kant como o legítimo
herdeiro de Descartes. Kant (1994, p. 347) mesmo ao tratar dos
Paralogismos da Idealidade (Da relação externa), dirá que
Descartes tinha razão ao limitar toda percepção no sentido
estrito, à proposição: Eu sou (como ser pensante). É claro que
como o externo não está em mim, não posso encontrá-lo na
minha percepção [...], mas apenas, partindo da minha percepção
interna, concluir a existência delas [...].
Ora, não é sem propósito que o estabelecimento de um diálogo
com Kant implica, ao mesmo tempo, num retorno à Descartes, às
origens da subjetividade, o que inevitavelmente acontece na elaboração
de Ser e Tempo. Nessa direção, a interpretação da estrutura constitutiva
da existência, em sua conformidade com o mundo requer, também, uma
interpretação fenomenológica da Refutação do Idealismo4, empreendida
por Kant na Crítica da Razão Pura.
Remetendo-se a Kant, Heidegger empreende uma análise fenomenológica da Refutação do Idealismo.
Esta refutação foi acrescentada por Kant na segunda edição da Crítica da Razão Pura, a título de
demonstração de uma “prova rigorosa [...] da realidade objetiva da intuição externa”.
4
110
Sônia Barreto Freire
Convém lembrar, porém, que a raiz do problema ali tratado reside
não somente na aceitação da evidência do sujeito cartesiano, mas também
na concepção kantiana do tempo, a qual se move dentro das estruturas
ontológicas apresentadas por Aristóteles. Assim, o idealismo semântico
de Kant busca um fundamento de prova da existência efetiva de objetos
“fora de mim”, na exterioridade do mundo. Este se fundamenta com
base num procedimento sintético operado “em mim”, na estrutura
interna do sujeito5.
De acordo com a interpretação de Heidegger, na prova de Kant
fica já estabelecida a diferença, entre o que constitui uma analítica, no
sentido transcendental, e o que significa analítica existencial. Inicialmente
essa diferença pode ser assinalada pela necessidade de prova da
realidade na filosofia transcendental, fato que resultaria no primado do
categorial kantiano frente ao modal heideggeriano, ou seja: na semântica
transcendental o tempo deve operar com categorias e esquematizar
para determinar objetivamente o conhecimento. Na analítica existencial,
as modalizações da temporalidade indicam somente modos possíveis
de acesso ao ente, considerando que esquemas existenciais traduzem
modificação e significância modal e não determinação categorial. É nesse
sentido que consideramos o primado do modal na analítica existencial,
frente ao primado do categorial na Analítica Transcendental.
A aproximação com Kant e ainda a diferença em relação a
Kant, pode ser também compreendida com base na consideração
de Heidegger, quando explica porque empreende uma analítica da
existência. Ele diz:
Aqui cabe lembrar por que no § 6 de Ser e Tempo, ao tratar da destruição Heidegger afirma que
Kant fracassou “na medida em que assume a posição ontológica de Descartes”. Assim, tal como
é concebida, a Semântica Transcendental busca, a partir do método de análise e síntese, a solução
para o problema da comprovação da realidade de um mundo exterior, frente à realidade interna
de um eu consciente e operativo que tem, em última instância, uma raiz originada no mentalismo
cartesiano. Em Descartes, cumpre-se de forma radical um giro de cunho subjetivo. Este solipsismo
egóico torna patente, em sua pura interioridade, uma exterioridade subjetiva, somente objetivável
como mundo, em sua dimensão extensa e constituída como o outro do sujeito, de onde resulta a
existência de duas substâncias finitas distintas, a saber, a res cogitans e a res extensa. Temos assim um
fundamento novo, resultante das cogitações e do não-ser do mundo apesar de ser incessantemente
experimentado. É esta estrutura subjetiva que se alarga, na perspectiva transcendental inaugurada por
Kant que, como “herdeiro de Descartes”, empreende uma analítica transcendental na qual concede
ao sujeito o estatuto de legislador da natureza, não cabendo mais a pergunta se é possível conhecer,
mas como é possível o conhecimento, ou como é possível o mundo? (Cf. Loparic, 1985; 1997).
5
A determinação ontológica do Mundo: um perfeito a priori
111
Kant usa a expressão analítica em sua “Crítica da Razão Pura”.
Foi daí que tirei a palavra analítica no título Analítica do Dasein.
Mas, isto não significa que a Analítica do Dasein em “Ser e Tempo”
seria apenas uma continuação da posição de Kant (Zollikon
Seminar, trad. p. 140).
Uma vez que a analítica do Dasein, não é apenas uma continuação
da Analítica Transcendental fica indicado, por sua vez, o retorno a Kant
e ao mesmo tempo, o ultrapassamento. Mas, voltemos à Refutação do
Idealismo. Kant considera um “escândalo da filosofia”, justamente o fato
de ainda se admitir a existência somente a título de crença, e não se ter
uma prova rigorosa, uma demonstração suficiente das coisas exteriores
a nós. Ora, Heidegger também se refere ao “escândalo da Filosofia”,
contudo distingue-se de Kant quanto ao fato que origina o escândalo. Para
Heidegger, o escândalo se instaura quando se admite a suposta necessidade
de sempre se buscar ainda uma prova da existência do mundo.
III
Como é possível o mundo? Esta é uma questão “que de há
muito inquieta a filosofia, embora as tentativas de satisfazê-la sempre
tenham fracassado” (Heidegger, 1988, p. 89). Somente um “sujeito”
desmundanizado poderia perguntar se o mundo existe. Na analítica
heideggeriana, a compreensão constitutiva do Dasein possibilita que este
ente possa compreender-se como um ente que é o como do mundo. Essa
determinação ontológica específica possibilita que uma interpretação
desse ente se depare com a interpretação ontológica do mundo. Nesse
sentido, Heidegger afasta-se diametralmente da perspectiva do sujeito
uma vez que o Dasein dispensa uma “prova da realidade do mundo”.
Assim, se a questão acerca da realidade do mundo tem sua origem
nos primórdios da Filosofia, então não é por acaso que ao mesmo tempo
em que a questão é posta, prevalece também com ela e numa mesma
dimensão, a sua insolubilidade. Essa procura incessante é denunciada
por Kant, quando afirma que:
112
Sônia Barreto Freire
Por muito inocente que se considere o idealismo em relação aos
fins essenciais da metafísica, (e na verdade não é), não deixa de
ser um escândalo para a filosofia e para o senso comum em geral
que se admita apenas a título de crença a existência das coisas
exteriores a nós (das quais afinal provém toda a matéria para o
conhecimento, mesmo para o sentido interno) e que se não possa
contrapor uma demonstração suficiente a quem se lembrar de a
por em dúvida (KrV, B XXXIX, CrP, p. 32, grifo nosso).
Uma leitura atenta da Refutação do Idealismo demonstra primeiramente
que a semântica transcendental considera a estrutura a priori das
operações categoriais com base na união esquemática entre categorias
e tempo, como condição de possibilidade para a determinação objetiva
dos dados exteriores. Seguindo a via crítica, podemos afirmar que a
construção da semântica kantiana é determinada pelo fio condutor do
tempo, como operador dos esquemas, e esta função aponta na direção
de uma primazia da forma pura do sentido interno, frente ao sentido
externo: o espaço.
De acordo com Loparic (2000, p. 23),
Kant prova que, à medida que deve ser possível o conhecimento
objetivo de aparecimentos [...] as formas intuitivas das
determinações temporais puras e as categoriais correspondentes
a elas têm também que se aplicar a aparecimentos ou intuições
empíricas. [...] Essa semântica transcendental, que interpreta
“categorias” sobre os domínios das determinações temporais
puras e das percepções empíricas, é também chamada por Kant
“lógica da verdade” (B 87).
Determinadas as condições operativas mentais, estas funcionam
na interioridade do sujeito para determinar a exterioridade do mundo. A
unidade sintética no esquema é processada com a mediação do tempo,
no qual reside a condição de possibilidade de um ente que se transforma
e outro que permanece, ou seja: da existência efetiva, tanto do em mim,
quanto do fora de mim.
A determinação ontológica do Mundo: um perfeito a priori
113
Para Kant (1994, BXL), “a realidade do sentido externo está
necessariamente ligada à realidade do sentido interno para possibilitar
a experiência em geral [...] a consciência de que eu próprio existo no
tempo”.6 Certamente Heidegger considera que o grande passo dado
por Kant consiste justamente em orientar a questão ontológica em sua
articulação necessária com o fenômeno do tempo. Mas, tendo em vista
que a demonstração do nexo entre o em mim e o fora de mim não
seriam elementos suficientes para justificar uma análise das estruturas
da subjetividade, Heidegger considera que teria faltado a Kant uma
analítica das estruturas da subjetividade do sujeito que poderia culminar
na temporalidade originária e assim reconduziria essas estruturas à base
unitária ser-no-mundo (in-der-Welt-sein).
Heidegger (1988, p. 271) faz notar ainda que é justamente esse
modo de ser mundano, constitutivo da existência (Dasein) que permanece
ainda encoberto na prova de Kant; razão pela qual torna-se ainda
necessária a discussão acerca de uma prova. Nesta direção ele dirá que,
“O ‘escândalo da filosofia’ não reside no fato dessa prova ainda inexistir
e sim no fato de sempre ainda se esperar e buscar essa prova.[...] Insuficientes
não são as provas. O modo de ser desse ente que prova e exige provas
é que é subdeterminado”.
Assim, na medida em que se busca uma prova, ou ao menos
se considera necessária uma prova, tais expectativas são pressupostas
e baseadas numa investigação ontológica inadequada. Ao conceber
o problema do mundo, dentro de seus limites, Heidegger considera a
questão não mais ligada ao fundamento de prova. Agora o que deve
mover a questão, não se confunde com provas, mas deve apontar somente
para a necessidade de uma ontologia explícita do Dasein.
De acordo com o tratamento tradicional da questão, toda vez que
a realidade do “mundo exterior” necessitar de legitimação, haverá sempre
um sujeito desmundanizado, mas ávido de conhecimento de mundo e cuja
“interioridade” se move na direção de uma compreensão “externa”
do ser como algo simplesmente dado. Nessa direção, a pergunta pela
6
Sobre o tema ver Almeida, 1997; Stein, 1987; 1993.
Sônia Barreto Freire
114
existência efetiva do mundo, torna-se destituída de sentido, uma vez que
esta não comporta uma solução epistemológica.7
A analítica existencial, ao mesmo tempo em que dispensa provas
da existência do mundo, exibe um “fundamento mostrativo”, que faz ver
o ser-no-mundo (in-der-Welt-sein) como determinação modal de um ente
duplamente privilegiado. “O mundo se temporaliza na temporalidade.
[...] Se não existir pre-sença alguma, então também nenhum mundo se
faz ‘pre’-sente” (Heidegeer, 1988, p. 167). Assim, qualquer tentativa
de demonstração da realidade do mundo como conhecimento possível,
decidido e estabelecido logicamente, torna-se não somente vaga, mas
também fora do propósito que rege a Analítica heideggeriana: torna-se,
um “escândalo”.
IV
Consideremos a questão do ponto de vista ontológico: entes
intramundanos não se configuram como coisas dadas no mundo, e o
Dasein não consiste numa estrutura subjetiva que seria afetada pelos
aparecimentos, então as ocupações cotidianas constituem um modo
primário e fundamental de acesso ao mundo. O estar-junto do ente
intramundano é a condição de possibilidade de acesso aos múltiplos
modos da ocupação, dentre as quais o manuseio ocupado. Contudo,
Heidegger assinala para o fato de que, desde os primórdios, o ente
sempre esteve atrelado à questão do ser, mas chama a atenção para o fato
da análise ontológica do mundo constituir, propriamente, uma abertura
explicativa do ser e não uma tematização do ente.
Na interpretação fenomenológica o ente aqui tratado é antes
de tudo pré-temático, não se constituindo, assim, como objeto de
conhecimento, uma vez que não se trata de estabelecer um conhecimento
“Descartes radicalizou o estreitamento da questão do mundo, reduzindo-a à questão sobre a
coisalidade da natureza enquanto ente intramundano acessível em primeiro lugar. Consolidou a
opinião de que o conhecimento ôntico de um ente, pretensamente o mais rigoroso, também constitui
a via de acesso possível para o ser primário do ente que se descobre neste caminho. Trata-se, no
entanto, de perceber também que mesmo as “complementações” da ontologia da coisa movem-se,
em princípio, sobre a mesma base dogmática de Descartes” (Heidegger, 1988, p. 147).
7
A determinação ontológica do Mundo: um perfeito a priori
115
seguro das propriedades entitativas dos entes, mas tão somente de
interpretar a estrutura de seu ser. Ao deparar-se com a análise do mundo,
a primeira dificuldade que ocorre é justamente aquela de perguntar
previamente qual é o ente pré-temático e encontrar uma resposta,
comum e aparentemente evidente que o nomeia, de forma tendenciosa
e encobridora, não permitindo que apareça o ente tal como este é em
si mesmo.
Heidegger considera que já os gregos, quanto pretendiam falar
acerca das “coisas”, utilizavam o termo pragmata. Mas, uma vez que
faltara uma justificação ontológica do caráter “pragmático” dos pragmata,
estes foram, em conseqüência disso, determinados imediatamente como
“coisas”. É importante observarmos que a tradução do termo grego
“pragmata” por “coisa”, é já um “costume consagrado” e isto se observa
porque quase sempre as traduções vem acompanhadas de uma nota que
tenta dizer o que é a “coisa”.8 “Ao se interpelar o ente como ‘coisa’
(res), já se recorre implicitamente a uma caracterização ontológica prévia.
A análise que estende a questão dos entes para o ser já se depara com
coisalidade e realidade” (Heidegger, 1988, p. 109).
Assim considerada tradicionalmente, a interpretação do ente
como coisa permite que permaneça velado o significado mesmo de
8
A questão acerca da coisa, na medida que encobre a tematização do ser, permanece evocada por
Heidegger como tema central, mesmo após Ser e Tempo. No curso ministrado em 1935/1936, titulado
Die Frage nach dem Ding, Heidegger (1992, p. 16-18) faz a seguinte observação acerca da pergunta
pela coisa: “Coisa em sentido lato significa qualquer assunto, qualquer coisa que aconteça, de um
modo ou de outro, as coisas que se passam ‘no mundo’, acontecimentos, eventos. Finalmente, há
um emprego da palavra em sentido ainda mais lato; foi preparado há muito tempo e generalizouse, sobretudo, na filosofia do século XVIII. Assim, Kant fala, por exemplo, ‘de coisa em si’,
distinguindo-a, de fato, da ‘coisa para nós’, quer dizer, de fenômeno. Uma coisa em si é aquela
que não é acessível para nós homens, através da experiência, tal como uma pedra, uma planta ou
animal. Qualquer coisa para nós é também, enquanto coisa, uma coisa em si, quer dizer, torna-se
conhecida de modo absoluto no conhecimento divino absoluto; mas nem toda a coisa em si é uma
coisa para nós. Uma coisa em si é, por exemplo, Deus, tomada a palavra tal como Kant a entende,
no sentido da teologia cristã. Quando Kant chama a Deus uma coisa, não quer dizer que Deus seja
uma gigantesca formação gazeiforme, que oculta algures a sua essência. Coisa significa aqui, apenas,
segundo um rigoroso uso da linguagem, o mesmo que ‘qualquer coisa’, aquilo que é contrário
do nada. Podemos, com a palavra e o conceito ‘Deus’, pensar qualquer coisa, mas não podemos
experimentar o próprio Deus, do modo que experimentamos este giz, acerca do qual exprimimos
em comum e verificamos informações, tais como: ‘se o deixarmos cair ele cai a uma determinada
velocidade’. [...] ‘Que é uma coisa?’ Vê-se imediatamente que a questão está mal colocada, pois
que aquilo que deve ser posto em questão, a ‘coisa’, oscila no seu significado; com efeito, aquilo
que deve ser questionado, deve ser determinado em si mesmo de modo suficiente, para poder ser
apropriadamente questionado”.
116
Sônia Barreto Freire
“coisa”, além de suscitar a problemática entre coisalidade e realidade
(Dinglichkeit und Realität), questões com as quais sabemos que Kant
também se ocupara, uma vez que destas também resultam os caracteres
ontológicos da substancialidade, materialidade e extensão.
Do ponto de vista fenomenológico, o estatuto categorial encobre
o modo primário e mais próximo de acessibilidade do ente. Este vem
ao encontro na ocupação como instrumento (Zeug). Uma vez que o
instrumento é algo para... (etwas, um zu...) na estrutura do seu ser para (Umzu) encontra-se uma referência de algo para algo (von etwas aufetwas). Assim,
instrumentos são para, quando relacionados num todo instrumental
porque no se mostrar da instrumentalidade, reside o modo genuíno de
ser do instrumento. Assim, uma vez que o modo primário de acesso, não se
constitui primeiramente como uma visão teórica, no sentido tradicional do
termo, o ente se mostra, primeiramente, na descoberta do manual. Nessa
direção, a compreensão que caracteriza o manuseio, é ontologicamente
uma circunvisão (Umsicht), temporalizada e espacializante.
Contudo, no manuseio, o que vem imediatamente à visão, é
aquilo que será produto, a obra produzida que caracteriza o para que
(Wozu) se usa determinado instrumento. A obra sustenta a totalidade das
referências, por isso a visão prévia compreensiva não pode ser concebida
como uma atitude ateórica.
A atitude “prática” não é “ateórica” no sentido de ser desprovida
de visão. A sua diferença para com a atitude teórica reside não
somente no fato de que uma age e a outra contempla, e de que,
para não ficar cego, o agir faz uso de conhecimentos teóricos, mas,
sobretudo, porque originariamente tanto contemplar é ocupação
como agir possui sua visão (Heidegger, 1988, p. 111).
Disponível para o manuseio, o instrumento se mostra na
manualidade, no modo de lidar que guia o manuseio. Esses referentes
utilitários apontam para a totalidade referencial aberta na circunvisão, e
formam a significação. Aqui fica acentuada, mais uma vez, a diferença
entre a estrutura existencial do Dasein, frente à estrutura categorial do
sujeito. O ente que se mostra na ocupação é antes de tudo pré-temático.
A determinação ontológica do Mundo: um perfeito a priori
117
Então, o mostrar-se dos entes no manuseio como instrumentos, acontece
antes da sua visualização como entes simplesmente dados à visão.
Heidegger (1988, p. 113) enfatiza que
Com a obra, portanto, não se dá ao encontro apenas um ente
manual, mas também entes que possuem o modo de ser do
homem, para os quais o produto se acha à mão na ocupação. Junto
com isso, vem ao encontro o mundo em que vivem os portadores
e usuários, mundo que é, ao mesmo tempo, o nosso.
Assim, a cotidianidade não comporta somente o mundo
doméstico, mas também o mundo público no qual se descobre a
natureza do mundo circundante.
Sendo assim, quando assinalamos para a diferença entre a
significância ontologicamente compreendida e a significação produzida
pelo entendimento do sujeito, esta mesma diferenciação acontece
quando se trata da referência. No âmbito da ontologia fundamental, a
referência não se constitui enquanto determinação ôntica de um manual,
a medida em que é a constituição ontológica primordial do instrumento,
uma vez que mundo já se descobre antecipadamente. A caracterização
da constituição instrumental como referência, em nada se assemelha à
teoria da coisa, mas tão somente a um específico ser para isso (Dazu),
uma vez que, no conjunto instrumental, anuncia-se o mundo.
No modo de ser para (Um zu), os entes vêm ao encontro na
serventia, no dano, na possibilidade de emprego, mas sempre como
referências determinadas. Nesse sentido, a referência enquanto remissão
conjuntural funda-se na serventia e, uma vez que esta constitui a
manualidade, não deve, por isso, ser considerada uma determinação
ôntica do manual. Assim, a abertura prévia da perspectiva a partir da
qual os entes vêm ao encontro acontece porque a compreensão se deixa
referenciar nessas e para essas remissões, uma vez que o Dasein já está
sempre em relação e constitui a instância originária do significado: o
semântico por excelência.
118
Sônia Barreto Freire
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Recebido em: 10 de novembro de 2007.
Aprovado em: 03 de janeiro de 2008.
Número Especial:
Heidegger e a Educação
Freud se encaixaria no rol dos operários
(Handwerker) das ciências naturais? Considerações
heideggerianas acerca da psicanálise freudiana
Caroline Vasconcelos Ribeiro*
Resumo: O artigo pretende abordar a veemente crítica de Heidegger à
psicanálise freudiana apontando, sobretudo, sua filiação à metafísica moderna e
ao modo de proceder das ciências naturais. Tendo como base a obra Seminários
de Zollikon – que reúne as atas dos seminários, diálogos e cartas trocadas
entre Heidegger e o psiquiatra Medard Boss –, visa a pontuar a concepção
heideggeriana de ciência natural, extremamente vinculada à sua leitura acerca
da história da metafísica. Em seguida, além de colocar em apreço a natureza
da crítica de Heidegger à psicanálise, almeja avaliar a assumida pretensão de
Freud em alcançar o estatuto de cientista natural.
Palavras-chave: Heidegger. Freud. Ciências naturais. Psicanálise. Ontologia.
Does Freud fit into the role of a natural sciences worksman
(Handwerker)? Heidegger’s considerations on freudian psychoanalysis
Abstract: This article intends to approach Heideggers vehement critics of the
Freudian psychoanalysis by pointing out his link with modern metaphysics and
the form of his rooting in natural sciences. Based on the Zollikon Seminars
– which join the summaries of the lessons, dialogues and letters exchanged
* Doutora em Filosofia da Psicanálise pela Unicamp. Docente da Universidade Estadual do Sudoeste
da Bahia (Uesb). E-mail: [email protected]
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação
Vitória da Conquista
Ano VI
n. 10
p. 123-158
2008
124
Caroline Vasconcelos Ribeiro
between Heidegger and the psychiatrist Medard Boss – it stresses Heidegger´s
conception of natural sciences, which is extremely linked with his interpretation
of the history of metaphysics. Besides considering the nature of Heidegger´s
critics of psychoanalysis it intends to evaluate Freud´s proven attempt of
achieving the status of a natural scientist.
Key-words: Heidegger. Freud. Natural sciences. Psychoanalysis. Ontology.
Por um período de dez anos Heidegger se reuniu em Zollikon,
na Suíça, com psiquiatras e estudantes de medicina com a tarefa de
descortinar para este público noções básicas de filosofia e, tendo
como guia o seu pensamento, investigar os fundamentos ontológicos
subjacentes ao arcabouço teórico das ciências que estudam a saúde e
o adoecimento psíquico. Atendendo ao convite do psiquiatra Medard
Boss, o filósofo da floresta negra aceitou o desafio de freqüentar a sua
casa para ministrar aulas e debater com um público diverso dos seus
costumeiros alunos.1 Sendo assim, empenhou-se em preparar preleções
que introduzissem o grupo no âmbito da suspeita filosófica. Apresentou
o modo de questionamento operado por sua filosofia, ousou analisar
temas específicos da clínica psiquiátrica juntamente com representantes
desta ciência, investigou com certa minúcia pressupostos metafísicos
herdados pelas ciências que estudam os fenômenos psíquicos e atevese a conceitos cardeais da psicanálise freudiana munido com sua
postura desconstrutora. O resultado foi fecundo, mas não por isso
pouco trabalhoso, dada a rígida formação de seus interlocutores e a
profundidade dos temas abordados.
Ao fazer referências ao pensamento sobre o ser, ao falar em
fundamento, metafísica, ontologia, tradição filosófica, imperativo
cientificista, entre outros termos, o filósofo de Ser e tempo, no mínimo,
trouxe à baila uma semântica pouco familiar àqueles cientistas. Não é
O início da série de seminários data de 08 de setembro de 1959. Na ocasião, Heidegger fez uma
conferência num grande auditório da clínica psiquiátrica da Universidade de Zurique. Logo em
seguida os encontros passaram a acontecer na casa de Boss, em Zollikon (Cf. Boss, 1987). Para a
obra Zollikoner Seminare (Heidegger, 1987) usaremos inicialmente a paginação do original e, em
seguida, apresentaremos a página da tradução brasileira. Nas citações das obras a seguir, caso haja
o registro de duas paginações, estaremos seguindo este modo de apresentação: a primeira referente
à original e a segunda à tradução.
1
Freud se encaixaria no rol dos operários (Handwerker) das ciências naturais? Considerações ... 125
à toa que Medard Boss ressalta – em seu prefácio à obra que reúne
as atas das aulas, diálogos e cartas trocadas entre ele e Heidegger,
intitulada Seminários de Zollikon – que “[...] a maioria das questões de
Martin Heidegger nunca tinham encontrado os médicos formados em
ciências naturais, enquanto questões”. Acentuando o desconcerto muitas
vezes gerado nas aulas, Boss (1987, XIV/13) acrescenta que muitos
participantes “pareciam até mesmo chocados e indignados com o fato
de alguém se permitir colocar tais questões”.
Ora, o testemunho do anfitrião Medard Boss não é espantoso,
afinal, a pujança dos questionamentos heideggerianos muitas vezes é
inaugural até mesmo para representantes da tradição filosófica, quiçá
para cientistas naturais. Quer dizer: o desconcerto provocado pela
filosofia de Heidegger é incontornável. Em se tratando de cientistas,
mais ainda.
Para além de uma mera apresentação de um linguajar impreciso
e estrangeiro ao fazer científico, o propósito do professor consistiu
também em enfatizar que, para a ciência, a tentativa de pensar o ser, de
pensar os fenômenos ontologicamente, “parece arbitrária e ‘mística’”
(Heidegger, 1987, p. 21/45).2 Mística porque não está na ordem das
urgências, dos resultados e não auxilia planificações e empreendimentos
na realidade. Mas, não obstante a aparente perda de tempo em se
colocar questões julgadas pouco dignas, Heidegger tentou, sem anunciar
explicitamente, criar um enlace entre a supostamente abstrata e inútil
filosofia e a vida costumeira. Nas primeiras atas dos seminários podemos
testemunhar que os caminhos eleitos para conduzir os cientistas rumo
à seara especificamente filosófica foram cuidadosamente preparados.
Seguindo passos curtos, o professor tomou como exemplo familiares
mesas, copos e estações de trem e indagou sobre os modos de relação
que poderiam ser estabelecidas com tais coisas, ou seja, elegeu como o
fio condutor para o âmbito da filosofia o que se mostra cotidianamente
à mão e tampouco necessita de explicitação teórica para deflagrar
Vale pontuar que, para Heidegger, não se trata de um demérito da ciência o fato desta não se
ater a questões de caráter ontológico. Entretanto, o que o autor quer acentuar é que, uma vez que
esta forma de saber se impõe como a administradora da verdade, tudo o mais fica renegado ao
campo da imprecisão e do misticismo.
2
126
Caroline Vasconcelos Ribeiro
intimidade. Assim, perguntando sobre a proximidade das mesas, a
presentidade dos copos e as representações dos participantes sobre
a estação central de Zurique, Heidegger levantou questões que, aos
poucos, foram desconstruindo certezas inquestionáveis. Ao colocar
em xeque os assegurados conceitos de presentidade, representação,
proximidade, estar-junto, realidade, entre outros, o filósofo, assumindo
o risco de parecer perguntar absurdos, revelou àqueles psiquiatras o
quanto a visão que eles tinham sobre simples coisas cotidianas estava,
silenciosamente, sob a tutela do pensamento metafísico. Neste sentido,
tentou mostrar que a filosofia, em particular a metafísica, não consistia
em um pensamento trancado em livros seculares, disponíveis apenas
para o manuseio de raros leitores. E, não se absteve de alertar que o
entendimento da filosofia como algo inócuo e longínquo da realidade
em função de sua pouca aplicabilidade, reverberava o vício cientificista
que elege a apresentação de resultados imediatos como a única forma
de um pensamento fazer-se presente.
O viés utilizado pelo professor para demarcar o modo como
a metafísica se faz presente nas mais variadas esferas da vida, mais
precisamente, para delimitar o elo entre a história da metafísica e o
proceder científico, consistiu na apuração histórico-filosófica do conceito
de objeto e de objetificação (Vergegenständlichung). Por diversas vezes
Heidegger insistiu em afirmar que toda atividade científica transita e
ergue-se sobre um solo ontológico, determinado historicamente.3 Em
outros termos: o filósofo preocupou-se em apontar aos alunos o fato
de que as ciências particulares se realizam e se consolidam, a partir de
um “território” pré-jacente que não é instaurado por esta ou aquela
atividade científica.
Este “território” pressuposto pelo procedimento científico é o
“território” da objetividade. Refere-se ao âmbito que assegura à ciência a
certeza de que ao ater-se ao real, ao entrecortá-lo em domínios regionais
Em traços largos, falar em solo ontológico significa acentuar a concepção de ser que subjaz à
determinada atividade científica. A palavra grega On é o particípio presente de einai (ser). Então a
ontologia, enquanto um lógos sobre o on, é um modo de investigação filosófica, cujo alvo é o ser.
Heidegger diferencia esta ontologia tanto das ontologias regionais (preocupadas com determinada
região do ser: história, número, arte), quanto das ciências ônticas preocupadas com os entes, não
com o ser.
3
Freud se encaixaria no rol dos operários (Handwerker) das ciências naturais? Considerações ... 127
de pesquisa, encontrará objetos. O problema que daí se segue é da
ordem do conhecimento positivo disto que assim se apresenta, nunca
da constituição deste apresentar. Claro que a ciência se abala, entra em
crise em relação à força de seus métodos. Tal crise, em geral, diz respeito
aos modos de apreensão dos objetos visados ou anuncia o aparecimento
de fenômenos que escapam aos procedimentos instituídos, impondo
reformulações. Mas, por mais pungente que seja a crise de um determinado
conhecimento científico, esta não assola o que está pressuposto: a
constituição da realidade como objetividade e sua disponibilidade enquanto
tal.4 Os abalos que atingem as ciências são do campo dos procedimentos e
verificações, contudo, não resvalam sobre a certeza da existência prévia de
objetos. Pois, como bem lembrou Heidegger aos cientistas suíços, “para
a ciência o âmbito objetivo (gegenständlicher Bereich) já é preestabelecido”
(Heidegger, 1987, p. 20/45.)
Para Heidegger, o preestabelecimento deste âmbito a partir do qual
a ciência opera foi germinado desde a metafísica de Platão alcançando sua
completa configuração com o pensamento moderno, com o pensamento
que autoriza o homem, enquanto sujeito cognoscente, a ser mestre e
possuidor da natureza.5 A partir deste modo de pensar, ou seja, a partir
de Descartes, o “eu”, o “ego” torna-se um sujeito preeminente, um sujeito
“em relação ao qual todas as outras coisas se determinam como tais”
(Heidegger, 1992, p. 108). O cogito torna-se a força de representação
(Vorstellung), de re-apresentar tudo o que se mostra e se apresenta lançado
diante do sujeito. Isto que se apresenta e se opõe ao sujeito, por sua vez,
passa a ser denominado objeto. Desde então, afirma Heidegger (2006,
p. 105) em L’époque des ‘conceptions du monde’, o ente só receberá “a marca
4
Em Ciência e Meditação, Heidegger (2002, p. 53) afirma que a questão acerca da constituição da
objetividade pré-jacente ao fazer científico é estrangeira a este campo. Para ele “a ciência nunca
pode fazer esta pergunta e, muito menos, questionar esta questão. Na condição de teoria, já se
instalou na região da objetividade”.
5
Estamos fazendo referência à sexta parte do Discours de la Méthode pour Bien Conduire Sa Raison et
Chercher la Verité dans les Sciences. Escreve Descartes (1987): “[...] il est possible de parvenir à des
connaissances qui soient fort utiles à la vie, et qu'au lieu de cette philosopie spéculative qu'on
enseigne dans les écoles, on en peut trouver une practique pour laquelle, conaissant la force
et les actions du feu, de l'eau, de l’air, des astres, des cieux et de tous les autres corps que nous
environnent, aussi distinctement que nous connaissons les divers métiers de nous artisans nous
les poirrions emploiyer en même façon à tous les usages auxquels ils sont propres, et ainsi nous
rendre maîtres et possesseurs de la nature”.
128
Caroline Vasconcelos Ribeiro
do ser” se concebido como objeto. Com isto temos a culminância do
que Heidegger denominou nos Seminários de Zollikon de modificação da
presença das coisas.
No seminário de 6 de julho de 1965, Heidegger explicou para
os cientistas a modificação da presença dos entes em objetividade, da
seguinte maneira:
Objetidade (Gegenständlichkeit) é uma certa modificação da presença
das coisas. A presença a partir de si mesma de uma coisa é
entendida aí pela sua possibilidade de representação através de
um sujeito. A presença é compreendida como representação. A
presença não é mais tomada como o que é dado a partir de si
mesma, mas como aquilo que se contrapõe ao sujeito pensante,
como é ob-jezado para dentro de mim. Esta experiência do ente
só existe a partir de Descartes, isto é, desde que o homem alçou
a condição de sujeito (Heidegger, 1987, 129/126).
O filósofo proferiu a afirmação acima num momento pontual
dos seminários, a saber, quando explicitou a mensurabilidade enquanto
característica constitutiva das ciências naturais. Na ocasião assegurou que
a pretensão para mensurar só pode ser aspirada na medida em que o ente
é reduzido à condição de objeto. Além disto, enfatizou a representação
(Vorstellung) enquanto modo, por excelência, de contraposição do sujeito
diante do objeto; enquanto modo hegemônico de o sujeito dispor e fixar
diante de si isto que está aí dado – o objeto.
Com a modernidade, acentua Heidegger (1992, p. 107) em O que
é uma coisa?, o sujeito converte-se no “elemento caracterizador do que,
em sentido próprio, já está antecipadamente aí para a representação”,
o objeto.6
Vale pontuar que, a partir da ótica heideggeriana, a representação
não é uma mera apreensão do que se apresenta, do que está aí. TrataO pensador francês Michel Haar, em Heidegger et l’éssence de l´homme, nos adverte que o homem
não decide, um belo dia, tornar-se sujeito. O que implica dizer, com Heidegger, que “sujeito” é
uma figura historial, construída ao longo do pensamento metafísico, cuja raiz está na passagem
da concepção antiga de subjectum (como o que se sustém constantemente presente) para o subjectum cartesiano situado no eu, na alma, na razão, considerados termos equivalentes (Haar, 1990;
Heidegger, 1987).
6
Freud se encaixaria no rol dos operários (Handwerker) das ciências naturais? Considerações ... 129
se antes de um “procedimento, que procede desde si mesmo, de
uma investigação em um setor assegurado, devendo o setor mesmo
ser assegurado”. Este asseguramento faz com que o ente não seja
entendido como o que está aí, “simplesmente à frente”, “diante de”;
este asseguramento faz com que o ente se domestique às regras de
apreensão clara e objetiva, posto que “o ataque das regras domina”.7
Estas regras governam o modo como o sujeito deve apreender “algo”
clara e distintamente, ou seja, de modo verdadeiro.
Tendo em mãos esta apurada leitura acerca do conceito de
representação, Heidegger esclareceu aos psiquiatras suíços possíveis
relações entre as conquistas do pensamento moderno e os procedimentos
científicos, supostamente alheios ao universo filosófico. Por conseguinte,
analisou na aula de 08 de julho de 1965, a segunda Regula cartesiana
da obra Regulae ad directiionem ingenii, a qual aconselha que devemos
permanecer apenas no âmbito dos objetos cujo conhecimento é seguro e
indubitável (Heidegger, 1987, p. 136/131).8 Indicou que, mediante estes
imperativos, o pensamento foi enrijecido e emoldurado pela pretensão
de certezas e o ente, por sua vez, definitivamente reduzido à condição
de objeto representado pelo soberano sujeito do conhecimento. A
pesquisa científica, clarificou o professor, dispõe do ente desta maneira,
desdobra-se neste território agenciado e aperfeiçoado pela filosofia, em
particular, a filosofia moderna.
Em várias de suas preleções na Suíça, Heidegger se empenhou em
explicitar para os psiquiatras a herança que a ciência moderna lega do
pensamento filosófico, uma vez que a primeira se ergue e se especializa a
partir do pré-domínio inabalável da objetividade, ainda que este legado não
Estas são citações da nota de fim de página número 9, do texto L´époque des ‘conceptions du monde’,
na qual Heidegger (2006, p. 138-145) define com precisão seu conceito de Vorstellung.
Em Zollikon, Heidegger fez várias referências ao escrito inacabado de Descartes e publicado
pela primeira vez meio século após sua morte: o Regulae ad directiionem ingenii. Para o professor é
nesta obra que é cunhado o conceito moderno de ciência, na medida em que o filósofo francês,
ao expor as regras para conduzir o pensamento, enfatiza, na Regula IV, que o método é necessário para investigar a verdade das coisas. Aqui se estabelecem os princípios a partir dos quais se
fundará tudo o que se poderá e se deverá apreender, isto é representar. Convém lembrar que, nos
Seminários de Zollikon, Heidegger não só tematiza as regras II, III e IV como também recorre ao
tema nos diálogos com Boss registrados durante o período de 12 a 17 de maio de 1965, aconselhando ao amigo a leitura da obra. Cf. Heidegger, 1987, p. 244/212. Sobre o assunto ver também:
Heidegger, 1992, p. 105.
7
8
130
Caroline Vasconcelos Ribeiro
seja assumido expressamente. Entretanto, não assumir não significa aniquilálo, afinal, como assevera Heidegger (1991, p. 73) em O fim da filosofia e tarefa
do pensamento, os cientistas podem “[...] sem dúvida, negar sua procedência,
não podem, contudo, rejeitá-la. Pois a pretensão de cientificidade das
ciências é a certidão que atesta seu nascimento da filosofia”.
A explanação acerca desta herança metafísica da qual se serve
a ciência, deve ter sido recebida com certo espanto na sala da casa de
Medard Boss. Ao analisar o processo de objetificação (Vergegenständlichung)
dos entes, Heidegger nomeou e ofertou as “certidões de nascimento”
(Geburtsbriefe) deste legado. Em seguida, evidenciou o efetivo enlace entre
o ofício científico e a aparentemente longínqua filosofia.
O processo de objetificação consiste em fazer de qualquer
coisa objeto, subordinar o advento da totalidade dos entes ao domínio
objetivo. Isto significa: nada pode advir, vir à luz (aufweisen) que não seja
determinado como tal (Heidegger, 1982, p. 46). E tudo advém para
um sujeito inquiridor, senhor de sua racionalidade, cuja tarefa é nivelar
e explorar isto que a ele se contrapõe. Na esteira desta configuração, o
cientista moderno assume a tarefa de investigar e intervir sobre o que já
está antecipadamente decidido como realidade – o domínio dos objetos
–, esquecendo-se ou sequer percebendo seu caráter dado. É sobre este
solo que se tomará como coisa natural e desde sempre configurada a
dicotomia sujeito-objeto. Uma vez imposta esta dicotomia como índice
elementar de toda relação com o real, caberá ao sujeito, certo do poder
de sua racionalidade, forçar tudo o que existe a responder a partir do
domínio de sua representação.
O cientista moderno, herdeiro deste processo de objetificação,
constitui e especializa seu ofício, interpelando os entes como objetos
disponíveis. A própria pretensão de mensurabilidade, repetimos, tem sua
execução garantida pela objetividade, tomada como algo indiscutivelmente
dado. Em função disto, Heidegger (1987, p. 128/125), numa aula de 06
de julho de 1965, alertou aos cientistas que a mensurabilidade pertence “à
coisa como objeto (Gegenstand)”, acentuando que “o medir só é possível
quando uma coisa (Ding) é pensada como objeto, representada em sua
objetidade (Gegenständlichkeit)”.
Freud se encaixaria no rol dos operários (Handwerker) das ciências naturais? Considerações ... 131
Embora reconheçamos que a filosofia não forneça unidades de
medidas para quantificar isto ou aquilo, não podemos concluir que ela
nada tem a ver com as pretensões de mensuração pertencentes ao modo
como as ciências, sobretudo as ciências naturais, se atêm a determinadas
regiões de entes. E, por mais que os experimentos científicos tratem de
fenômenos impensáveis e ininteligíveis ao âmbito filosófico, por mais
que seus resultados eficazes reforcem a visível inutilidade da filosofia,
por mais que seus problemas tenham um caráter de urgência e estejam
na “ordem do dia”, aprendemos, com Heidegger, a admitir a filiação
da pesquisa científica em relação ao pensamento filosófico. Dito de
outra maneira: aprendemos com o professor dos Seminários de Zollikon
que filosofia e metafísica não são denominações bibliotecárias que se
enclausuram em linhas quando se fecham os livros, muito menos mera
diversão de uma elite desocupada.
Mesmo que tenhamos exposto, em linhas gerais, o vínculo entre
a filosofia e a ciência, sabemos que a pergunta que intitula este artigo
está longe de ter sido respondida. Ou seja, estamos cientes de nossa
pendência em relação à análise de Heidegger sobre uma ciência em
particular, a psicanálise. Mais que isso: deixamos em absoluta falta de
investigação a pergunta inquietante sobre a filiação de Freud ao rol
dos cientistas naturais. Seria então, a psicanálise uma ciência moldada
segundo os parâmetros das Naturwissenschaften? Eis o que devemos
esclarecer a seguir.
A concepção heideggeriana de ciência natural e a caracterização
da psicanálise como tal
Inicialmente, julgamos conveniente sumariar a posição de
Heidegger em relação à ciência freudiana para depois fundamentar seus
argumentos. Para o professor dos seminários suíços tal ciência configurase enquanto fiel herdeira da metafísica moderna e executora do programa
de pesquisa das ciências naturais. Isto autoriza Heidegger a concluir que
a psicanálise, enquanto ciência que versa sobre o homem, não só deixa de
132
Caroline Vasconcelos Ribeiro
contemplar o existir humano em seus modos não objetificantes de lidar
com o mundo e com os outros, como também, ao se impor como modo
hegemônico de entendimento da vida psíquica, obstrui a possibilidade
de pensá-lo mais genuinamente.
É neste caminho que segue a crítica de Heidegger a Freud.
Para a execução de suas veementes análises sobre a teoria
e o método psicanalítico, Heidegger tinha em mãos os resultados
alcançados em Ser e Tempo (1927) com a analítica do existir humano,
bem como a já referida investigação histórico-filosófica do processo
de objetificação.
Uma das características inequívocas do tratado de 1927 é uma
abordagem do ente humano que escapa às categorias herdadas da
metafísica, quais sejam: animal racional, ego cogito, espírito, sujeito
transcendental, enfim.9 Nesta obra, o autor escolhe o termo Dasein
– que literalmente significa “ser-aí” – para reunir numa só palavra,
tanto a relação do ser com a essência do homem, como também essa
referência fundamental do homem à abertura (“aí”) do ser enquanto tal
(Heidegger, 1976, 372/58).10 Tal escolha não se deve a um preciosismo
semântico, antes, se refere a um pensar fundamental acerca do privilégio
ontológico do homem, qual seja: a sua relação com o ser. Tal relação
pauta-se originalmente não na subjetividade que representa, mas na
compreensão de ser (Seinsverständnis), que abre possibilidades fáticas de
sermos no mundo. Esta compreensão de ser não equivale a um domínio
teórico sobre o tema, a uma atitude do pensamento representativoconceitual. A relação do homem com o ser que, ao olhar de cientistas,
pode parecer abstrata ou mística, constitui o que nos é mais familiar,
uma vez que desde sempre nos movemos neste horizonte. Grosso modo,
a compreensão de ser refere-se, de início e na maioria das vezes, a uma
relação pré-teórica pautada na lida cotidiana, cravada no âmbito das
relações não objetificantes com o mundo.
Cf. Heidegger, 2006b.
Quanto ao termo Dasein, por existir certa diversidade em sua tradução, optamos por mantê-lo
em alemão.
9
10
Freud se encaixaria no rol dos operários (Handwerker) das ciências naturais? Considerações ... 133
Com este modo de abordar o homem Heidegger rompe com
o imperativo moderno que o enclausura na condição de sujeito que
objetifica. Pois, como afirma Lévinas (2001) em En Découvrant l´Existence
avec Husserl et Heidegger, na medida em que a compreensão de ser não é
uma faculdade cognitiva que o homem, ocasionalmente, recorre para
tomar conhecimento de suas possibilidades de ação, a distinção entre
sujeito que representa e objeto-representado já não pode ser estabelecida
como o elemento mais genuíno da relação do homem com o mundo, de
modo que o puro aferir objetivante passa a ser visto como uma atividade
derivada e não fundante da existência humana.
Ao reivindicar que a dimensão mais fundamental do existir humano
não se assenta na representação de objetos e sim na compreensão préteórica e cotidiana, Heidegger destrona o binômio sujeito-objeto como
índice primevo para o entendimento das relações do homem com o
mundo. Para ele, uma ciência do homem que tome tal binômio como
algo inquestionável e elementar estará sempre deixando de contemplar
o todo do Dasein. A seu ver a metapsicologia de Freud, por reduzir o
homem a um aparelho psíquico determinado por forças pulsionais que
se dirigem a objetos, acaba por concebê-lo como coisa objetificada,
o que torna sua linguagem inadequada para pensar genuinamente o
Dasein.11 Tal fato licencia o filósofo apontar Freud como um corifeu
da modernidade.
Explicaremos em pormenor a natureza desta crítica de Heidegger
ao psicanalista de Viena. Inicialmente cabe-nos esclarecer a característica
do olhar heideggeriano sobre a psicanálise freudiana. Evidentemente não
11
Para Freud (1989c) uma descrição metapsicológica de um fenômeno é justamente a que preza
em abordá-lo a partir dos pontos de vista dinâmico, tópico e econômico. Esta maneira globalizante
de apreender os processos psíquicos é, para o autor, a consumação da pesquisa psicanalítica. Esta
perspectiva de análise configura-se como a superestrutura especulativa, cuja tarefa é servir de guia
tanto para explicar fatos da observação diária, quanto para a obtenção de novos dados. Quanto à
noção de pulsão, vale acentuar que Freud a concebe como uma força constante no indivíduo, como
verdadeira força motriz que se origina dentro do organismo. Em A pulsão e seus destinos, o autor
(1989a) insiste na necessária presença da representação psíquica ligada às excitações endossomáticas,
fonte das pulsões. De maneira sumária, podemos dizer que Freud distingue na pulsão sua origem,
finalidade (Ziel) e objeto. Essa energia propulsora de ações teria então uma fonte (Quelle) dentro do
organismo, uma espécie de excitação de origem somática, tendo como finalidade a remoção desta.
Para atingir tal finalidade, precisa de um objeto (Objekt), escolhido em função das vicissitudes da
história do sujeito, sendo contingente e variável, cobrindo uma envergadura que pode englobar
desde o próprio corpo do indivíduo aos mais diversos objetos externos.
134
Caroline Vasconcelos Ribeiro
se trata primordialmente de uma abordagem científico-epistemológica,
de uma abordagem que discuta exclusivamente sua eficácia, sua
operacionalidade, enfim, sua capacidade de solucionar problemas clínicos
e teóricos. Não que este horizonte não tenha sido vislumbrado em suas
análises na Suíça, mas, vale ressaltar que seu olhar incidiu, especialmente,
sobre os pressupostos ontológicos que, implícita ou assumidamente,
fundamentam o edifício desta ciência.
Afirmar que nos Seminários de Zollikon o endereço privilegiado
da crítica heideggeriana foi a psicanálise de Freud, não significa dizer
que outros ramos das ciências dos fenômenos psíquicos passaram
incólumes em relação ao criterioso olhar deste filósofo. Em particular,
cabe lembrar que a pretensiosa Daseinsanalyse psiquiátrica de Ludwig
Binswanger recebeu um duro apreço da parte de Heidegger, que além
de salientar os equívocos desta apropriação psiquiátrica dos resultados
de Ser e tempo, eximiu-a de qualquer filiação intelectual ou compromisso
filosófico com seu pensamento.
De um modo geral, Heidegger referiu-se à psiquiatria e à
psicanálise, todavia, seus comentários e análises pormenorizados
incidiram prioritariamente sobre a ciência freudiana. Seu principal
argumento, certamente recebido com desconforto numa sala da casa de
Medard Boss, consistiu em enquadrar esta ciência no rol das ciências da
natureza – das Naturwissenschaften – e apontar a forte presença da tutela
da “teoria kantiana da objetividade” em sua doutrina.
Para os psiquiatras suíços Heidegger acentuou que a psicanálise,
comportando-se como fiel executora do programa kantiano para as
ciências é regida pelo princípio de causalidade definido por Kant na
seguinte frase de sua Crítica da Razão Pura (A189): “Tudo que acontece
pressupõe algo que segue segundo uma lei”.12
12
Heidegger (1987, p. 176/160). Aqui vale pontuar a interpretação de Loparic sobre o programa
kantiano para as ciências da natureza. Para o autor, trata-se de um programa a priori de pesquisa
empírica, um guia para a pesquisa, que especifica: 1) a estrutura interna dos problemas relativos
aos aparecimentos pertencentes aos domínios físicos e psíquicos, 2) os métodos de solução destes
problemas e 3) as condições gerais para a aceitação das soluções encontradas (Loparic, 2000, p.
32). Veremos mais adiante que o préstimo básico deste programa é sua função heurística. Sobre
o princípio de causalidade definido por Kant, conferir: Loparic, 2004.
Freud se encaixaria no rol dos operários (Handwerker) das ciências naturais? Considerações ... 135
Para que entendamos este enquadre da psicanálise no rol das
ciências naturais, reputamos que seja pertinente definir o que Heidegger
assim nomeia. Pois bem. Nos Seminários de Zollikon, sua definição de
ciência natural é categórica e sumária. Em suas aulas concentrou-se em
explicitar que tal insígnia refere-se à ciência que representa, objetifica,
mensura e calcula os entes, estabelecendo leis causais. Isto posto, o
filósofo se encarregou de investigar histórico-filosoficamente estes
elementos constituintes do modo de proceder das ciências naturais. Elegeu
a física clássica como seu emblema maior, analisou seus pressupostos
ontológicos salientando como esta ciência “força” e predetermina a
natureza a “co-responder”, enquanto objeto, às condições de manipulação
e mensurabilidade, regidas por inequívocas leis de causalidade.13 O
desdobramento desta perspectiva consiste no encarceramento da natureza
na condição de um objeto representado por um sujeito soberano,
que dela se apropria a partir da sóbria frieza que calcula e da prosaica
planificação que oferece garantias. No âmbito científico não encontramos
o questionamento acerca da proeminente disposição do ente para a
representação. Isto pressuposto, resta ao cientista executar e especializar
pesquisas, conduzidas no garantido reino da objetividade.
Tendo em mãos esta concepção de ciências naturais Heidegger
designou a psicanálise como fiel representante destas ciências. Fez isto
desde o segundo encontro com aqueles psiquiatras suíços, desavisados
acerca da postura desconstrutiva que iriam testemunhar ao longo de
dez profícuos anos. Já na segunda ata dos seminários – que data do dia
24 de janeiro de 196414 – temos o registro do quanto o filósofo abalou
qualquer pretensão de salvaguardar a psicanálise da condição de corifeu
dos imperativos da modernidade. Sem meias palavras, afirmou que
Freud, ao realizar uma “observação psicodinâmica” dos fenômenos
13
Sobre a caracterização das ciências naturais, conferir: Heidegger, 1987. p. 23/47; 28/50; 28/51,
157-173/147-154.
14
A conferência de abertura dos seminários (1959) foi registrada em ata. Só depois de quase 5 anos
de encontros é que Boss resolveu, ele mesmo, “[...] transcrever palavra por palavra cada afirmação
de Martin Heidegger”. Deste modo, entre a primeira e a segunda ata temos um hiato de mais de
quatro anos. Importa dizer que depois de datilografadas, as atas eram encaminhadas para o autor
em Friburgo. Segundo Boss (1987, p. XIV/12), “ele corrigia com o maior cuidado, acrescentava
aqui e ali pequenas e, às vezes, também maiores observações com sua letra gótica e o devolvia para
mim, assim, corrigido e complementado”.
136
Caroline Vasconcelos Ribeiro
clínicos, “toma como real e como ente”, mais precisamente, “como real e
verdadeiro” aquilo que “pode ser subordinado a ininterruptas conexões
causais de forças psicológicas”. Ao fazer tal assertiva, imediatamente
remeteu os alunos à figura do então mundialmente conhecido físico
moderno Max Planck que, textualmente, assegurou que “só o que pode
ser medido é real”.15
Esta aula deu o tom do que adviria nos próximos encontros:
a marcante associação da psicanálise freudiana com a física clássica
e, consequentemente, com a ciência natural, e a denúncia de sua
incapacidade de pensar genuinamente o existir humano, visto que sua
linguagem objetificante – devedora da metafísica moderna – não abrange
o ente humano de maneira devida, uma vez que o homem não é redutível
a uma mera objetividade. Certamente estas afirmações não poderiam
ser recebidas com a passividade de quem se convence de imediato,
deste modo, não foram poucas as insurgências dos participantes destas
preleções. Em algumas aulas o visível incômodo foi veiculado através
de perguntas incisivas, impacientes pedidos de esclarecimentos acerca
de temas que, até o fatídico encontro com o pensamento de Heidegger,
lhes pareciam banalmente óbvios. Não por acaso temos o registro de um
esclarecimento heideggeriano sobre sua postura de professor. Trata-se
da aula de 05 de novembro de 1964, na qual Heidegger caracteriza a
peculiaridade de seu horizonte filosófico, com a seguinte afirmação:
No intervalo pareceu haver uma certa admiração de alguns pelo
fato de persistirmos tanto em determinadas palavras. Seria um
grande erro ver nisto um capricho pessoal de nossa parte. Pois
uma determinada palavra da língua diz isto e apenas isto, e este
é o segredo da língua. Por isso não se pode simplesmente falar
a esmo e usar quaisquer chamados sinônimos para as mesmas
coisas (Heidegger, 1987, p. 41/60).
O rigor característico das análises etimológicas e filosóficas, caras
a Heidegger, foi recebido com certa impaciência. Mas, gradativamente, os
15
Todas as citações encontram-se em Heidegger, M. 1987, p. 07/36. O filósofo também se refere a
esta frase de Planck no texto “Ciência e meditação”, tematizando-a em pormenor (2002, p. 49).
Freud se encaixaria no rol dos operários (Handwerker) das ciências naturais? Considerações ... 137
psiquiatras foram criando fôlego para tolerar as minuciosas peregrinações
heideggerianas em torno de temas que gozavam de uma suposta
transparência conceitual. Os pretensamente esclarecidos conceitos de
tempo, espaço, corpo, objeto, representação, causalidade, entre outros,
foram enfocados com uma radicalidade capaz de dispensar as certezas
advindas do consenso científico, obrigando os ouvintes a direcionar
a atenção para as raízes do que, até então, se mostrava assentado e
assegurado pela ciência. Esta radicalidade caracterizou a desconstrutora
postura do filósofo nas aulas da Suíça.
Convém entender a natureza de uma desconstrução de molde
heideggeriano, peculiar não só em suas análises em Zollikon, mas em
todo seu percurso de pensamento. De modo sintético, no que tange
à ciência, vale ressaltar que a pujança desta atitude desconstrutora
não envolve hostilidades nem lamentações em relação à inevitável e
maciça presença dos feitos científicos nas mais variadas esferas da
vida. Tal atitude pretende pensar criticamente a sua impostura como
administradora do real. No caso específico das aulas na Suíça, pretendeu
também perguntar se a ciência psicanalítica, na medida em que é servil
aos ditames das ciências naturais e da objetividade moderna, alcança o
homem de maneira plena, em todos os seus modos de existir.
Mas, o que precisamente define o modo como Heidegger concebe
a ciência natural?
Almejando atender a esta indagação podemos começar pela análise
de uma característica que é peculiar ao procedimento científico-natural,
mesmo que de modo subjacente. Qual seja: a eleição da representação
como via de acesso ao real.
Ora, se tomamos a representação com elemento fundante das
relações com o real, confirmamos a máxima moderna de que este último,
enquanto conjunto de objetos, deve oferecer-se servil aos ditames da
racionalidade que planifica e calcula. Como dissemos outrora, o que está
implicado na eleição da representação como índice primevo da relação
com o real, é o asseguramento de sua objetificação (Vergegenständlichung).
Neste sentido, ressalta Michel Haar (1990), a representação é uma
138
Caroline Vasconcelos Ribeiro
procura indiscreta e indiscriminada que visa apossar-se totalmente
do ente pela racionalidade calculante. Segundo ele, tanto o método
cartesiano, quanto a busca kantiana pelas condições de possibilidade do
conhecimento em geral, quanto a vontade de poder nietzscheana são
figuras da agressividade crescente da representação.
Esta agressividade se dirige a tudo o que é real, ou melhor, decide,
de antemão, o que é real. Desta decisão se vale a ciência moderna! Mais
que isso, os desdobramentos desta decisão e os feitos intervencionistas
que ela pode engendrar passam a ser administrados e consolidados por
esta ciência. De modo que, ao invés de tomar a filosofia como algo
repugnante e longínquo das fronteiras das atividades científicas, um
cientista que, mobilizado pelas provocações heideggerianas, pretenda
refletir sobre seu ofício, deve, mesmo que de forma reticente, reconhecer
a “tutela da metafísica da subjetividade”.16 Em outras palavras: deve
admitir que a ciência, ao invés de ser responsável pela fundação do
“território” da objetividade é, ao contrário, ela mesma fundada em
pressupostos decorrentes desta metafísica.
Esta admissão certamente não poderia advir de Freud, uma
vez que na conferência de número XXXV, intitulada A questão de uma
Weltanschauung, ele assegura que a filosofia além de não exercer influência
direta sobre a grande massa da humanidade é objeto de interesse de uma
elite restrita, estando fadada a ruir ante cada novo avanço da ciência,
por pretender um quadro do universo sem falhas e absolutamente
coerente. Ao reduzir toda a filosofia a este sistema, Freud não considera
injustificado o ácido comentário do poeta Heinrich Heine quando diz
que o filósofo “com seus barretes de dormir e com os trapos de seu
roupão de noite, ele remenda as falhas do edifício dos mundos (die
Lücken des Weltenbaus)”.17
Loparic, 2001, p. 137.
“Mit seinen Nachtmützen und Schlafrockfetzen/Stopft er die Lücken des Weltenbaus”. HEINE,
H. Die Heimkehr, LVIII. In: Freud, Band I, p. 588/157. A primeira página referida concerne à edição
da Studienausgabe, Band I e a segunda refere-se à tradução brasileira. Quanto à relação de Freud
com os filósofos vale esclarecer que, apesar deste tom mordaz para com a filosofia, o cientista
não se furta de fazer referências a temas filosóficos e até mesmo, de utilizar termos de filósofos
como Kant e Theodor Lipps.
16
17
Freud se encaixaria no rol dos operários (Handwerker) das ciências naturais? Considerações ... 139
Esfarrapadas ou não, as pretensões do pensamento moderno
longe de estarem ilhadas em obras obsoletas ou de serem alardeadas
como o último sopro proveniente de remendos decadentes, se impõem
de maneira incisiva, ao consolidar a vigência do real como objetidade
(Gegenständlichkeit).
Ao expor o virulento perfil da ciência moderna Heidegger insiste
falar em previsibilidade, determinações causais, exploração e perseguição
do real em termos de conseqüências, asseguramento da objetividade e
processamento à vontade dos objetos. Tanto nos Seminários de Zollikon
como na obra Ciência e meditação acentua seu poder domesticador. Este
presunçoso poder é expresso com veemência na já citada frase do físico
Max Planck, que afirma que real é o que se pode medir.
Esta assertiva de um físico deve valer exclusivamente para as
ciências naturais – que têm a física como emblema – ou serviria para a
ciência moderna como um todo? O que tal afirmação teria a ver com a
ciência que trata do adoecer e do sofrimento psíquico?
Para Heidegger a referida frase de Max Planck “só é correta por
expressar algo que pertence à essência da ciência moderna e não apenas
das ciências naturais”, a saber, o cálculo como procedimento processador
do real. Contudo, convém alertar – antes que se insurjam vozes defensivas
a favor das ciências que não lidam com números e quantificações – que,
para Heidegger, estritamente falando, calcular significa “[...] contar
com alguma coisa, ou seja, levá-la em consideração e observá-la, ter
expectativas, esperar dela alguma coisa”. O que implica dizer que “[...]
toda objetificação (Vergegenständlichung) é um cálculo, quer corra atrás de
efeitos e causas, numa explicação causal, quer, enfim, assegure em seus
fundamentos um sistema de relações e ordenamentos”.18
Aqui testemunhamos o alargamento da noção de cálculo e,
consequentemente, de ciência natural. De sorte que, de maneiras
diferentes, se pode fazer ciência natural a partir do processamento de
diversas regiões de entes, e, salvo estas diversidades, o que unifica este
procedimento é o imperativo que força o real a responder pelo crivo da
objetidade, logo, da mensurabilidade. O procedimento científico-natural
18
Todas as citações retiradas de Ciência e Meditação, in: Heidegger, 2002, p. 49-50.
140
Caroline Vasconcelos Ribeiro
se move decisivamente neste território do mensurável e do calculável. Se
entendido de modo suficiente, este é o território que força os fenômenos
a responderem como objetos, o que não significa, necessariamente,
números e quantias.
Heidegger esmerou-se em clarificar esta diferença para os
participantes dos seminários de Zollikon, dedicando praticamente duas
aulas inteiras ao tema – as dos dias 06 e 08 de julho de 1965. Depois de
estender o calcular a uma operação que, originariamente, “conta com
algo” e elencar os vários sentidos que podemos “contar com” alguma
coisa, o filósofo incorreu sua análise sobre a faceta deste calcular na
pesquisa científica. Clarificou então que, para as ciências naturais,
mensurabilidade significa calculabilidade (Berechenbarkeit), ou seja,
significa “[...] uma observação da natureza que permite saber com que
podemos contar em seus processos” (Heidegger, 1987, p. 135/131).
Este modo de conceber a natureza refletirá, necessariamente, no
estabelecimento do modo de acesso a ela. Sendo assim,
Se a natureza for colocada em relação à mensurabilidade de
processos espaço-temporais, a natureza estará num projeto que
não permitirá vê-la como algo presente repousando em si, mas ela
será re-apresentada como objeto em que o perguntar que pesquisa
interferirá no modo da pré-mensuração e controle. Re-presentarse (vor-zu-stellen) como objeto é uma forma de representação
inteiramente moderna (Heidegger, 1987, 184/166).
Descartes, Newton e Galilei são pensadores emblemáticos da
germinação deste pensamento moderno que instaura um modo de
apreensão da natureza que, em última instância, a força a responder e a
co-responder às condições de calculabilidade.19 Daí se segue que todo
ente, com o qual desde sempre “já se conta”, deve mostrar-se como
objeto. O “contar com” não é um cálculo ou operação numérica, mas
sua condição de possibilidade. De modo que qualquer quantificação é
algo derivado da maneira como o pensamento moderno institui a única
forma de acesso à natureza: a representação.
Sobre a distinção da experiência grega de natureza e a moderna, ver O que é uma coisa? Nesta
obra, Heidegger (1992, § 16 a 19) explicita a diferença entre a concepção aristotélica de natureza
e de movimento, e as de Newton e Galileu.
19
Freud se encaixaria no rol dos operários (Handwerker) das ciências naturais? Considerações ... 141
Clarificada a histórica consolidação do solo sobre o qual uma
ciência da natureza é autorizada a intervir no real, mediante cálculos e
planificações, podemos compreender a afirmação de Heidegger (1976,
p. 28/54) em Introdução à metafísica, que assevera que “todo pensar
científico é uma forma derivada e, como tal, consolidada de pensamento
filosófico”.
O caráter preliminar do que a filosofia institui, consente a Heidegger
(1987, p. 265/225) afirmar, num diálogo com Medard Boss, que os
cientistas “naturais de hoje são apenas operários (Handwerker) que seguem
dentro do âmbito que já lhes foi descoberto há muito tempo”. Aqui seria
factível perguntar: Freud se encaixaria no rol deste operariado?
Freud, as ciências naturais e a tutela da metafísica moderna
Encontramo-nos agora diante da tarefa de decidir, não só a partir
de Heidegger, se Freud é um operário das ciências naturais que, como tal,
desenvolve sua atividade científica no âmbito há muito instaurado pela
filosofia, em particular a moderna. Salientamos que não é só a partir das
asserções do professor de Zollikon que avaliaremos o mestre de Viena,
pois pretendemos “chamá-lo” para expressar sua posição.
No que tange à Heidegger (1987, p. 260/222), tomaremos como
elemento iluminador do caminho que almejamos traçar, sua veemente
afirmação: “A metapsicologia de Freud é a transferência da filosofia
neokantiana para o homem. De um lado ele tem as ciências naturais e de
outro a teoria kantiana da objetividade”. Tentaremos explanar de modo
mais detalhado a marcante presença destes dois elementos no bojo do
pensamento freudiano, particularmente, em sua metapsicologia.
Todavia, antes de enfocarmos esta herança apontada por
Heidegger no interior do pensamento freudiano, vale a pena retomarmos
a primeira opinião emitida por Heidegger sobre o fundador da psicanálise,
registrada na segunda ata dos Seminários de Zollikon. Ao colocá-lo lado
a lado do físico Max Planck, Heidegger (1987, p. 07/36) afirma: “Em
relação ao que se toma como real e como ente: só é real e verdadeiro
142
Caroline Vasconcelos Ribeiro
aquilo que pode ser subordinado a ininterruptas conexões causais de
forças psicológicas, na opinião de Freud”.
Esta suposição de que só obtém o estatuto de real o que pode ser
subordinado a conexões causais sem falhas é, para Heidegger (1987, p.
08/36), “fundada numa aceitação (acceptio). Pois admite-se naturalmente:
ser=conexão causal calculável de antemão”. Segundo o filósofo, nesta
premissa o homem também é englobado na condição de objeto causalmente
explicável. Na base desta acceptio, Heidegger localiza a maneira como Kant
representa a natureza de maneira científico-natural, nomeando-o porta-voz
destas ciências, na medida em que define a natureza por sua legalidade, por
sua submissão a leis gerais. Ao apontar Kant como patrono das ciências
naturais, o filósofo lembrou aos alunos suíços uma passagem da Crítica da
Razão Pura (B165) que afirma que a natureza é a legalidade dos fenômenos
no espaço e no tempo, e uma passagem dos Prolegômenos a uma Metafísica
Futura na qual o autor assegura que a natureza é a existência (Existenz) das
coisas, determinadas por leis causais.20
Determinada desta maneira, a natureza é compelida a responder
no modo da legalidade, das leis gerais, o que a reduz a um movimento
espaço-temporal de pontos de massa. Ao executar procedimentos
científico-naturais, o cientista assenta-se nesta legalidade.
Em seu artigo As especulações metapsicológicas de Freud, Fulgencio
(2003, p. 148) lembra que Kant advogou pela presença de uma metafísica
da natureza por trás de toda ciência natural. Em seguida, cita um trecho
da obra Princípios metafísicos da ciência da natureza no qual o filósofo de
Königsberg afirma que o caráter metafísico subjacente a uma ciência da
natureza está no estabelecimento de princípios, isto é, de leis que não
são empíricas, que não se dão na intuição a priori, mas regulam o uso do
entendimento, determinando sua extensão.21 Por carecer da pedra de toque
Kant, I. Prolegomena zu einer künftigen Metaphysik, die als Wissenschaft wird auftreten können. Hamburg:
Hg. K. Vorlander, 1969, § 14. Apud: Heidegger, M. 1987, p. 31/52.
Cabe aqui explanarmos, grosso modo, a maneira como Kant inaugura uma mudança radical no
modo de conceber o objeto. Para ele, nossa razão pode, a partir das idéias, pensar objetos além
da experiência, porém, para conhecer algo é preciso provar sua realidade objetiva, isto é, atribuir
ao conceito, por meio de uma intuição a ele correspondente, um objeto da experiência. Por isso,
Kant (1985, A 46-47) nos alerta que apesar da idéia ser uma representação, uma representação
ainda não é conhecimento. Em suas palavras: “Para que uma representação seja conhecimento
(entendo aqui sempre um conhecimento teórico), é preciso que o conceito e a intuição de um
20
21
Freud se encaixaria no rol dos operários (Handwerker) das ciências naturais? Considerações ... 143
da experiência, estes princípios e leis fornecidos pela razão são conceitos
puros, são idéias. Neste sentido, Fulgencio aponta que, para Kant, estas
idéias, apesar de não serem verificáveis, funcionam como ficções heurísticas
capazes de organizar o uso sistemático do entendimento no campo da
experiência. Estas ficções são convenções, sem correspondência empírica,
que organizam especulativamente a compreensão dos fenômenos. Por
serem inverificáveis na empiria, são considerados por Kant como princípios
metafísicos que guiam a pesquisa empírica.
Loparic, no texto As duas metafísicas de Kant, define com precisão a
função da aplicação de princípios a priori ao campo da natureza material.
Segundo o autor (2003, p. 5-6):
A função básica desses princípios é heurística: eles são usados
como guias da pesquisa empírica no domínio de objetos
materiais sensíveis, ou seja, como princípio a priori da atividade
de resolução de problemas, desenvolvida pela ciência empírica.
O objetivo principal da metafísica da natureza não é o de
simplesmente expor a estrutura a priori da natureza, mas o de
permitir a elaboração de regras de resolução dos problemas
empíricos da ciência da natureza à luz de enunciados que
caracterizam a estrutura desse objeto de estudo.
Uma vez que estes princípios não apresentam validade objetiva,
por não possuírem correspondentes empíricos, não podem ser
considerados verdadeiros ou falsos, e, sendo assim, são factíveis de ser
descartados ou substituídos por outros que assumam melhor utilidade,
que se mostrem mais frutíferos na resolução de problemas. O maior
préstimo destas convenções heurísticas é a descoberta de leis que regem
os fenômenos e a determinação das relações entre eles.
objeto estejam ligados na mesma representação, de maneira que o primeiro seja representado tal
como ele em si contém a última”. Kant nos assegura que só conhecemos a priori nas coisas o que
nós mesmos nelas colocamos. Entenda-se “o que colocamos nas coisas” como as configurações
que a faculdade de conhecimento impõe às coisas para percebê-las como objetos da experiência,
como fenômenos. A experiência, por sua vez, fornece a matéria, o diverso do fenômeno, para que
possa ser ordenado no espírito segundo princípios e conceitos a priori. Com respeito às intuições,
a configuração dos objetos é realizada pelas formas puras da sensibilidade: o espaço (a forma
do sentido exterior) e o tempo (a forma do sentido interior). O que implica dizer que só temos
acesso a fenômenos espácio-temporais. Com respeito ao entendimento tais configurações são
feitas pelos conceitos puros (Kant, 1994, B34-37).
144
Caroline Vasconcelos Ribeiro
Sobre este “solo” germinado pelo projeto kantiano de ciência da
natureza, ressalta Fulgencio, cientistas tais como Fechner, Helmholtz,
Brücke conduziram suas pesquisas impulsionados por ficções heurísticas
– destinadas a facilitar o acesso e a ordenação do material empírico –
cuja utilidade sempre foi admitida de forma momentânea e provisória
(Fulgencio, 2003, p. 146-147). Estes homens receberam não só o
respeito do jovem Freud, como também uma admiração que lhe foi
inspiradora. Em Um estudo autobiográfico (Selbstdarstellung), comentando
acerca do seu interesse difuso por vários campos da ciência e da medicina
propriamente dita, Freud (1996a, p. 17) lembra que só no Laboratório de
Ernst Brücke encontrou tranqüilidade e satisfação plena para trabalhar.
Com o “grande Brücke”, o então estudante de medicina S. Freud,
desenvolveu inclinação para concentrar seus trabalhos em um único
assunto, qual seja, pesquisas fisiológicas que começaram analisando
a medula espinhal de um peixe dos mais inferiores, evoluindo até seu
sistema nervoso central.
Ernst Jones, em Vida e Obra de S. Freud, ressalta o respeito e
a admiração que Freud nutria em relação à autoridade de Brücke,
tomando-o como exemplo de cientista disciplinado, em relação ao
qual, ele próprio, gostaria de se espelhar. Jones (1974, p. 73) destaca que
Brücke – com suas Lições de Fisiologia publicadas em 1874 – apresentou ao
cenário científico uma obra estritamente vinculada ao aspecto dinâmico
da fisiologia. O autor nos lembra que Brücke afirma que diante de um
organismo vivo, quanto menos se conhece ao seu respeito, tanto maiores
serão as espécies de forças que se deverá discriminar: forças mecânicas,
elétricas, magnéticas enfim. Contudo, o progresso no conhecimento
deste organismo, faz com que estas sejam reduzidas a duas espécies –
atração e repulsão. Para o autor das Lições de Fisiologia, tudo isso se aplica
por igual ao homem como organismo22. Jones (1974, p. 74) ressalta que
estas pontuações de Brücke cativaram o estudante Freud.
O laborioso professor de Freud se inseria num abrangente
movimento científico conhecido como a Escola de medicina de
Helmholtz, cujo marco inicial, segundo Jones, data do começo da
22
Cf.: Brücke apud Jones, 1974.
Freud se encaixaria no rol dos operários (Handwerker) das ciências naturais? Considerações ... 145
década de quarenta do século XIX com a amizade entre os fisiologistas
Emil Du Bois-Reymond (1818-1896) e Ernest Brücke (1819-1892),
posteriormente acrescida das figuras de Hermann Helmholtz (18121894) e Carl Ludwig (1816-1895). Para Ernest Jones este grupo era
imbuído de um verdadeiro espírito de cruzada científica, provocando
estímulos intensivos à ciência, guiados por um juramento assim descrito
por Du Bois-Reymond:
Brücke e eu formalizamos um juramento solene para levar à
prática esta verdade: nenhumas outras forças, a não ser as físicoquímicas comuns, acham-se em ação afirmativa no interior do
organismo. No caso em que não se possam obter informações
através dessas forças, eventualmente, ter-se-á de encontrar um
caminho específico ou a forma de sua ação por intermédio do
método físico-matemático ou admitir novas forças, idênticas em
dignidade às forças físico-químicas inerentes à matéria, e que são
redutíveis à força de atração e repulsão (Jones, 1974, p. 73).
A ausência de fronteiras entre um organismo humano e não
humano, a explicação dos fenômenos na perspectiva da física e a
utilização de ficções heurísticas que, ao demonstrarem falhas, podem
ser cambiadas por outras mais frutíferas, são características desta
escola que, em última instância, assentam-se num projeto kantiano das
ciências da natureza.23 Freud não só admirava estes homens da ciência,
como formou seu perfil de pesquisador intimamente vinculado a estes
preceitos. Neste sentido, nunca hesitou em afirmar e reafirmar que
a sua ciência, a psicanálise, não só pertence à “família” das ciências
naturais, como procurou infatigavelmente receber o respeito desta
comunidade científica. Na mencionada conferência sobre A questão de
uma Weltanschauung o já respeitado Freud (1982a, p. 587/156) admite, sem
23
Cf.: Loparic, 1999, p.101. Fulgencio, em sua tese de doutorado intitulada O método especulativo em
Freud, remete-nos a uma passagem na qual Helmholtz acentua a parceria entre suas pesquisas e a
doutrina kantiana, declarando expressamente sua filiação a Kant ao afirmar estar sob o solo do
sistema kantiano (Cf. Helmholtz) “Os fatos da percepção”. Cadernos de História e Filosofia
da Ciência, Série 2, v. 1, 1989, (apud Fulgencio, 2001, p. 306). Freud, por sua vez, inserido nesta
tradição de pesquisa não só reverbera esta filiação como, veremos mais adiante, compara elementos
de sua teoria ao sistema kantiano. Entretanto, sem fazer uma exegese ou qualquer tipo de aplicação
direta desta doutrina à sua ciência.
146
Caroline Vasconcelos Ribeiro
titubear, que a psicanálise, na qualidade de ciência especializada, toma o
intelecto e a alma como objeto de pesquisa científica “[...] exatamente
da mesma forma como o são as coisas não-humanas”, de modo que
sua contribuição à ciência consiste, justamente, em estender a pesquisa
à área mental (das seelische Gebiet).
A diligente pesquisa do pai da psicanálise progride sem deixar
de recorrer a comparações e analogias em relação à mais emblemática
ciência natural, a física. Mais do que isso: sem se furtar em assumir a
linguagem da física como a língua unificadora das ciências. Em Algumas
lições elementares de psicanálise, Freud, ao tentar descrever a constituição
de sua ciência e de seu objeto de pesquisa, propõe que, por analogia,
desloquemos a pergunta pela natureza do psíquico – objeto de seu
oficio de cientista – para a indagação a um físico sobre a natureza da
eletricidade. Segundo ele, um físico responderia tal questão afirmando
que, para sua ciência explicar certos fenômenos, é fundamental
presumir “[...] a existência de forças elétricas que estão presentes nas
coisas e que delas emanam”, sendo necessário então, descobrir as leis
que governam os fenômenos em apreço. Tal descoberta, diria o físico,
satisfaz provisoriamente a pesquisa científica. E, apesar de não se poder
afirmar absolutamente nada acerca da natureza da eletricidade, o trabalho
progride. Em tom conclusivo, resumiria: “é simplesmente como as coisas
acontecem nas ciências naturais”. Diante destas assertivas possíveis
a um físico, Freud refere-se à sua seara admitindo que a psicanálise
também é uma ciência natural.24 Logo em seguida pergunta: “O que mais
pode ser?”. E, assumindo a sua identidade com os procedimentos das
ciências naturais, lança mão do mesmo argumento que concerne à física
e afirma que apesar de não poder assegurar a natureza de seu objeto,
24
É importante salientar que a afinidade do cientista Freud com o modelo físico-químico e com o
entendimento de que a tarefa das ciências é descobrir o jogo de forças – entendimento que vigora
no juramento de Du Bois-Reymond – leva-o a abarcar todos os fenômenos humanos desde esta
perspectiva. Segundo Japiassu, Freud assume o monismo típico do naturalista Ernst Haeckel (18341919) que só admite uma realidade característica do ser, da natureza, estabelecendo uma unidade
profunda entre a natureza orgânica e a inorgânica, entre matéria e espírito. Sendo assim, não haveria
porque aceitar o dualismo proposto por Dilthey entre as Geisteswissenschaften e as Naturwissenschaften.
E como a psicanálise pretende ser ciência, diante da estabelecida homogeneidade entre fenômenos
humanos e naturais, ela só poderá ser uma Naturwissenschaft. Quer dizer: ser uma ciência explicativa
tanto quanto as naturais (Cf.: Japiassu, 1990; Assoun, 1981).
Freud se encaixaria no rol dos operários (Handwerker) das ciências naturais? Considerações ... 147
pode, entretanto, atestar que este não se reduz à consciência, sendo
esta apenas uma de suas qualidades. Deste modo, prossegue o autor,
“o psíquico, seja qual for a sua natureza, é em si mesmo inconsciente
e provavelmente semelhante em espécie a todos os outros processos
naturais de que tivemos conhecimento” (1996b, p. 302).
Em termos filosóficos, poderíamos dizer que a psicanálise não se
preocupa em determinar a quididade deste objeto, o psíquico, antes pretende
fazer ciência utilizando este constructo para organizar e sistematizar fatos
observáveis. Assim procede com seu grande postulado, o inconsciente.
Este nem é anatomicamente localizável, nem constatável de modo imediato
na empiria. Porém, pode assumir o caráter de uma convenção aplicável
ao material empírico. Tais convenções, afirma Freud (1989a), apesar de
serem idéias abstratas,25 não são escolhidas arbitrariamente, visto que se
exige que tenham relação com o material empírico a que se aplicam. A
exatidão científica só se alcança, Freud assinala, a partir de uma investigação
pormenorizada que tendo como guia estas convenções, pode chegar a
determiná-las com mais claridade ou descartá-las por outras mais úteis e
coerentes. Assim, sem fixidez, se avança o conhecimento! Tal como na
física, assume o fundador da psicanálise.
O esforço do pensar científico segue sua marcha de modo
hesitante, trabalhoso, considerando e reconsiderando hipóteses, sendo
forçado a remodelações a partir de novos dados empíricos. Por não se
assentar em inquebrantáveis axiomas, a ciência, como aponta Freud
(1982a, p. 599/168), cambaleia de um experimento para o outro,
colecionando “[...] observações de constâncias no curso dos eventos
que dignifica com o nome de leis e as submete às suas perigosas
interpretações”. Estas idas e vindas da pesquisa científica são expostas
por Freud em seu estudo autobiográfico (Selbstdarstellung), na medida em
que desnuda os percalços do desenvolvimento de sua ciência e os rudes
golpes que ela suportou. Ao declarar que o estabelecimento do conceito
de inconsciente colocou-o em trincheira com alguns filósofos que, por
ignorarem o material patológico de que ele dispunha, advogavam pela
25
Idéia aqui no sentido kantiano, sem o concurso da experiência.
148
Caroline Vasconcelos Ribeiro
redução do psíquico à consciência, Freud (1996a, p. 36) tenta explicar
como foi compelido a “[...] adotar o conceito de inconsciente de maneira
séria”. O que implicou diferenciá-lo não só da consciência, como
também do pré-consciente.26 Freud então elucida da seguinte maneira
os rumos de sua pesquisa sobre este tema:
Seria mais difícil explicar concisamente como veio a acontecer que
a psicanálise fizesse outra distinção no inconsciente e o separasse
em um pré-consciente e em um inconsciente propriamente ditos.
Basta dizer que pareceu ser um caminho natural complementar
da experiência com hipóteses que estavam destinadas a facilitar
o manuseio do material, e que estavam relacionadas com
assuntos que poderiam não ser objeto de observação imediata.
O mesmíssimo método é adotado pelas ciências mais antigas.
A subdivisão do inconsciente faz parte da tentativa de retratar o
aparelho da mente como sendo constituído de grande número de
instâncias ou sistemas, cujas relações mútuas são expressas em
termos espaciais, sem contudo, implicarem qualquer relação
com a anatomia do cérebro. [...] Idéias como estas fazem parte da
superestrutura especulativa (spekulativer Überbau) da psicanálise,
podendo ser abandonada ou modificada, sem perda ou pesar,
momento em que sua insuficiência tenha sido provada (Freud,
1996a, p. 38).
Dada a riqueza deste trecho retirado do texto Um estudo
autobiográfico (Selbstdarstellung) de Freud, resolvemos analisar alguns
26
Aqui cabe distinguir o inconsciente enquanto qualidade psíquica de processos anímicos. Nas
palavras de Freud, diferenciar sua significação puramente descritiva da sua abordagem espacial.
No primeiro sentido trata-se de considerar o inconsciente no sentido factual, descritivo, como
um atributo de processos psíquicos. Na outra perspectiva, o inconsciente deve ser considerado
como um sistema, como uma espécie de “[...] grande salão de entrada no qual os impulsos mentais
se empurram uns aos outros [...]”. Neste caso, trata-se de uma instância psíquica constituída por
conteúdos que foram reprimidos. No quadro da primeira tópica freudiana do aparelho psíquico
o inconsciente é a localização onde se encontram os conteúdos pulsionais que investem força para
retornar à consciência. O pré-consciente designa um sistema distinto do inconsciente, na medida
em que seus conteúdos apesar de não estarem diretamente na consciência, são de mais fácil acesso
do que os inconscientes. Freud separa estes sistemas por uma censura, que não permite a passagem
de conteúdos inconscientes à consciência sem mutilações e distorções. Abordar o inconsciente
de modo não descritivo, equivale a abordá-lo especulativamente, considerando-o a partir do
ponto de vista tópico e dinâmico, acentuando o jogo de forças que ali se trava entre a censura e
o material que pleiteia emergir. A partir de 1920, quando da remodelação da teoria freudiana do
aparelho psíquico, é estabelecido o quadro da segunda tópica, e as instâncias passam ser o Id,
Ego e Superego. Desde esta perspectiva, o inconsciente, como lembra Laplanche e Pontalis, passa
a ter conotação de adjetivo. (Cf.: Freud, 1996c, p. 301; 1996d e cf. tb: Laplanche; Pontalis, 1992,
verbete: inconsciente).
Freud se encaixaria no rol dos operários (Handwerker) das ciências naturais? Considerações ... 149
pontos, explanados aí de maneira concisa. Para o propósito de nosso
artigo interessa menos pormenorizar a distinção entre os sistemas
consciente, inconsciente e pré-consciente, do que destacar os seguintes
pontos da citação acima: 1) ao falar que parece ser um “caminho natural
complementar da experiência com hipóteses”, Freud deixa claro que a
base do edifício psicanalítico é assentada em fatos clínicos, provenientes
da experiência. O resto lhe surge como complementar. Reafirmar a
função cardeal da observação de fatos clínicos implica lembrar que o
ponto de partida desta ciência é factual. Trata-se de distúrbios psíquicos,
cujos sintomas acenam para a forte presença de lacunas na consciência,
fruto de um processo de repressão (Verdrängung)27 do material doloroso
e inoportuno à percepção consciente. Material que, para ser resgatado
enquanto memória, impõe a necessidade de superação de resistências
que se sobrepõem a tal resgate.28 No caminho da elucidação do sintoma
neurótico e no decisivo progresso do tratamento, as teorias da resistência
e da repressão são, segundo Freud, um dos principais constituintes da
estrutura teórica da psicanálise, em outros termos, correspondem à parte
empírica de sua ciência, ao pilar clínico de seu edifício doutrinal.29 Na
citação em apreço, Freud nos fala em complementar a experiência “com
hipóteses que estavam destinadas a facilitar o manuseio do material”. Tal
trecho nos faz por em relevo a seguinte questão: 2) pleiteando gozar da
condição de cientista natural, o pai da psicanálise baseia-se na orientação
metodológica da ciência de seu tempo, servindo-se de uma gama de
conceitos auxiliares, sem pretensão de localização na realidade objetiva,
cuja utilidade metodológica é a de facilitar o manuseio do material clínico
(empírico). Contudo, vale ressaltar que o recurso a estas construções com
função heurística é um recurso complementar, não o mais fundamental.
A tradução de Verdrängung por repressão não é um processo que goza de consenso entre os
psicanalistas. Aventa-se também a possibilidade de usar o termo recalcamento. Aqui optamos seguir
a linha de tradução de Loparic, que advoga pelo termo repressão devido ao elo semântico entre
este termo e Drang (pressão). Tal elo assenta-se também na incisiva influência de Leibniz sobre o
conceito psicanalítico de Pulsão (Trieb), visto que foi este filósofo que inaugurou a concepção de
que em toda e qualquer substância (inclusive a humana) opera uma pressão (Drang) sobre as forças
que ali atuam (cf.: Loparic, 1999; 2001).
28
A repressão e a resistência são fatos clínicos que se impõem ao trabalho do analista quando este
se arvora, junto ao paciente, a reconduzir os sintomas neuróticos às suas fontes.
29
Cf.: Freud, 1996a, p. 45 e 1996c, p. 300.
27
150
Caroline Vasconcelos Ribeiro
Este é, como bem lembra Freud, o mesmíssimo “método adotado pelas
ciências mais antigas”. Esta asserção nos faz evidenciar o seguinte ponto:
3) as ciências mais antigas (leia-se: as ciências naturais) progridem com
conceitos que ressentem de exatidão, de absoluta nudez conceitual,
entretanto, tal fato ao invés de estancar a marcha de sua progressão,
é condição necessária para tanto. Freud (1996a, p. 61) não só assume
esta característica para sua ciência, como advoga em relação a esta
condição afirmando que “a própria física, realmente, jamais teria feito
qualquer progresso se tivesse tido que esperar até que seus conceitos
de matéria, força, gravitação, e assim por diante, houvessem alcançado
grau conveniente de clareza e precisão”. Quer dizer: a psicanálise não
deve receber desprezo e resistência em relação à sua cientificidade por
dispor de conceitos como libido, pulsão, inconsciente, pois, tal como
uma das mais duras ciências, a física, opera numa lenta marcha de
elucidações suportando a falibilidade de suas proposições e dispondo-se
a permanentes reorientações em sua pesquisa.30 Por fim, gostaríamos
de destacar um último elemento da citação analisada: 4) nesta
citação, o autor nos fala de idéias que fazem “parte da superestrutura
especulativa da psicanálise, podendo ser abandonada ou modificada”.
Aqui cabe diferenciar a função basilar da psicologia clínico-descritiva
de Freud – assentada na experiência – e a função de uma suposição
teórico-especulativa que apenas sistematiza e orienta a apreensão de
dados empíricos. Esta última tem função complementar, auxiliando na
descrição de fatos que oferecem lacunas para a teoria empírica. Elas
guiam o olhar do cientista, mas não são o fundamento, a infra-estrutura
da psicanálise. A parte da superestrutura cabe às construções auxiliares,
que por não terem função de fundamentação do edifício psicanalítico,
têm valor provisório, sendo utilizadas na medida em que se mostram
fecundas. Esta superestrutura comporta conceitos nebulosos que devem
ser esclarecidos ao longo da pesquisa, ou então, descartados sem pesar,
pois, como assevera Freud (1989b, p. 45/85), “[...] essas idéias não são
o fundamento da ciência, no qual tudo repousa: este fundamento é tão
30
Em “A pulsão e seus destinos” Freud (1989a, p. 81/123) realiza uma explícita comparação entre
sua ciência e a física, considerando o uso de convenções heurísticas.
Freud se encaixaria no rol dos operários (Handwerker) das ciências naturais? Considerações ... 151
somente a observação. Não são a base, mas o topo da estrutura e podem
ser substituídas e eliminadas sem prejudicá-la”.
Utilizando esta analogia entre a psicanálise e uma edificação,
várias vezes útil ao próprio Freud, Loparic (1985, p. 29) acrescenta que
a psicanálise deve ser pensada como um edifício de vários níveis. Em
Resistências à psicanálise o autor observa que os andares inferiores do
edifício freudiano “[...] abrigam conceitos e proposições que podemos
chamar de factuais, fenomenais ou ainda vivenciais, enquanto os seus
andares superiores acomodam construções teóricas de diferentes tipos”,
incluído aí as já faladas especulações e construções auxiliares.31
Diante de sintomas psíquicos dos pacientes e imbuído em
reafirmar a psicanálise como um procedimento que visa à cura de certos
tipos de patologias dos nervos, Freud, a partir de inúmeras observações
empíricas, base de seu edifício científico, pressupõe a existência do
inconsciente, uma vez que a consciência padece de inúmeras lacunas.
Ao postular que idéias e afetos foram retirados do foco da consciência,
devido à natureza insuportável destes conteúdos, ele nos alerta acerca
do dispêndio persistente de energia psíquica a favor da repressão deste
material, de seu afastamento da consciência e sua manutenção no
inconsciente. Trata-se da força de repressão dirigida ao que não pode
ser rememorado, exposto à luz da consciência. O que deflagra um
marcante jogo de forças no interior do psiquismo. E, mesmo sem
um referente empírico localizável, Freud nos fornece o conceito de
inconsciente com vistas a cobrir as lacunas da vida anímica, oferecendo
uma explicação causal acerca dos sintomas clínicos que o desafiava, em
particular os sintomas neuróticos.
Alicerçado na observação clínica Freud confirma que as
lembranças dolorosas não se perdem, antes, permanecem inconscientes,
prontas a ressurgir na forma de sintomas variados. A suposição da
existência do inconsciente torna-se então uma frutífera construção
31
Vale trazer uma citação do autor sobre este tema, retirada de outro texto: “Se aprofundarmos
a metodologia de Freud, veremos logo que ele usa termos energéticos, assim como era comum
fazer-se na física de sua época, como modelos para descoberta e organização do material clínico,
como convenções frutíferas; e que esses termos fazem parte, não da infra-estrutura de sua teoria.
Por isso eles podem ser descartados desde que se achem outros melhores que façam o mesmo
serviço” (Loparic, 1991, p. 50).
152
Caroline Vasconcelos Ribeiro
para explicação de fenômenos clínicos. Trata-se de uma cara noção
ao corpo teórico desta ciência. Uma noção que, apesar de já ter sido
exigida como parte constitutiva do psíquico por filósofos como
Theodor Lipps, foi assumida por este de forma “[...] tão indefinida e
obscura que não poderia ter exercido influência alguma sobre a ciência”
(Freud, 1996e, p. 172). Denunciando que o conceito de inconsciente
há muito vem batendo na porta da psicologia, sendo distraidamente
manipulado pela literatura e filosofia, Freud (1996b, p. 306) assume que
a sua ciência apossou-se do conceito levando-o a sério, conhecendo
suas características até então insuspeitadas e descobrindo algumas das
leis que o governam.
Da mesma maneira que o físico, o cientista da psicanálise não
precisa determinar a natureza de seu objeto, concentrando-se em
construir especulações que, apesar de organizarem dados empíricos, não
se confundem com eles. Na operacionalização desta organização, tornase imperativo o estabelecimento de leis que governam os fenômenos
observados. Nada mais fiel ao procedimento da escola de Helmholtz, nada
mais fiel ao kantismo. Afinal, lembremos da afirmação kantiana na Crítica da
Razão Pura (A189), citada por Heidegger (1987, p. 176/160) em Zollikon:
“Tudo que acontece pressupõe algo que segue segundo uma lei”.
Nestes seminários Heidegger apresentou Kant aos psiquiatras
como um patrono do modo de proceder das ciências naturais. Logo,
deixou claro que Freud, ao fazer ciência sobre os processos psíquicos
inconscientes, reverberava os ditames kantianos. Neste sentido, o
professor de Zollikon argumentou que Freud, ao deparar-se com as
lacunas na consciência, tentou encontrar a qualquer custo “algo” que
ordenasse a seqüência das conexões, para tanto, “ele precisa inventar o
inconsciente, no qual tem de haver a ausência de lacuna de conexões
causais” (Heidegger, 1987, p. 260/222). Contudo, objetou o filósofo,
esse postulado não é haurido das próprias manifestações anímicas, mas
sim das ciências naturais modernas.
No texto O Inconsciente, Freud (1989c, p. 125/172) enfatiza que
a prova da existência do inconsciente é justamente as lacunas em
Freud se encaixaria no rol dos operários (Handwerker) das ciências naturais? Considerações ... 153
alto grau na consciência tanto dos seres humanos sadios como dos
doentes. Esse modelo de entendimento das vivências humanas se
acomoda confortavelmente no seio da metafísica moderna, reduzindo
o ente humano a algo natural submetido a leis causais. Uma vez que
o inconsciente seja estipulado como fator causal, o homem passa
a ser tomado como um objeto causalmente explicável. Por isso, a
atitude clínica do analista deve ser a de fazer o caminho de volta do
sintoma à etiologia primeira da doença, buscando o elo de ligação
na cadeia de associações (Freud, 1982b). A busca de leis, o recurso a
explicações causais e a assumida pretensão freudiana de encaixar sua
ciência no rol das rígidas ciências naturais, nos autoriza a encarar o
fundador da psicanálise como um operário destas ciências, de modo
que sua ciência progride pressupondo o reino pré-estabelecido da
objetividade.
Aqui vale ressaltar a aceitação (acceptio) que Heidegger denuncia
nas ciências modernas, inclusive na freudiana. Nesta acceptio admite-se
naturalmente: ser=conexão causal calculável de antemão. Sobre este
tema, Loparic (1985, p. 32) acrescenta que, a partir de uma leitura mais
aprofundada dos textos freudianos que versam sobre as resistências
e as forças inconscientes da repressão, é possível localizar a seguinte
pressuposição metodológica: “Toda explicação causal na psicologia deve
ser dinâmica”. Buscar explicações dinâmicas para fenômenos psíquicos
significa entendê-los como jogo de forças que, na medida em que se
opõem, geram distúrbios que representam o efeito causal de processos
explicáveis dinamicamente, em outros termos, quantitativamente. Estas
forças, como na ciência natural mais emblemática, a física, não são
tangíveis, nem disponíveis empiricamente.
Como funcionaria então, esta opção metodológica no
entendimento de fatos clínicos? Tomemos como exemplo a neurose,
ponto de partida clínico de Freud. Para fins de explicações dinâmicas
sobre a etiologia das neuroses, tornou-se necessário, como já pontuamos,
postular a existência de processos inconscientes que, apesar de não
estarem prontamente acessíveis na experiência consciente, regem como
154
Caroline Vasconcelos Ribeiro
força fundamental o funcionamento psíquico. Portanto, o inconsciente,
apesar de incognoscível, prestou-se a explicação de fenômenos
psicológicos observáveis e passíveis de conhecimento, como se os
“estados inconscientes” pudessem ser traduzidos para categorias da
representação consciente.
Aqui se torna explícita a dívida para com a teoria kantiana dos
limites da razão pura. Freud aceita, de forma expressa, a não identidade
entre o fenômeno, dado na experiência empírica, e o noûmeno que,
apesar de incognoscível, pode ser pensado como problema que a
razão impõe a si mesma. Assim, o inconsciente opõe-se ao fenômeno
percebido desde a intuição sensível a priori, e pode ser comparado à
coisa em si, que podemos pensar, mas não conhecer pelas categorias
do entendimento (1989c). Deste modo, visto que não se pode aceder
diretamente ao inconsciente – ou se quisermos, à coisa em si – tornase preciso traduzir (umsetzen) os estados inconscientes em termos de
descrições aplicáveis ao consciente, assumindo que o psíquico em si
não é tal como aparece. O que implica dizer que nada sabemos acerca
de sua natureza do inconsciente.
Ao pensar o inconsciente desta maneira, Freud o situa no interior
da teoria kantiana da objetividade e, consequentemente, do seu modo de
conceber a ciência natural. Evidenciando assim, seu perfil de operário
desta ciência. Sobre o tributo que o conceito freudiano de inconsciente
paga ao sistema kantiano, Loparic (1999, p. 118) afirma:
Embora não possamos decidir qual é a verdadeira natureza dos
estados psíquicos inconscientes nem conhecer qualquer um
de suas eventuais propriedades, podemos projetar sobre essas
coisas em si todas as determinações pelas quais caracterizamos as
coisas para nós, a saber, os fenômenos. Em particular, podemos
tratar os estados inconscientes como se fossem causas, ânsias,
isto é, como se fossem entidades dinâmicas. Depois de ter
subsumido os estados inconscientes às categorias kantianas,
mais precisamente, à teoria kantiana da consciência, Freud
se vê autorizado a concluir que, sim, “sobre vários desses
estados latentes temos que dizer que eles só se distinguem dos
conscientes justamente pela supressão da consciência”.
Freud se encaixaria no rol dos operários (Handwerker) das ciências naturais? Considerações ... 155
Assumindo, com a seguridade do kantismo, o desconhecimento
da natureza em si do inconsciente, ou seja, sua incognoscibilidade, resta
ao cientista abordá-lo desde a maneira que é possível acedê-lo, a partir de
termos acessíveis à luz da consciência, a partir de representações. Neste
sentido, é demasiado apressado afirmar que a noção de inconsciente
rompe em absoluto com as teorias da modernidade, por desalojar no
homem a soberania da consciência. Ora, a aliança freudiana em relação
a Kant não é só reconhecível, mas reconhecida pelo próprio autor. Tal
aliança não se restringe à sua teoria crítica acerca dos limites da razão,
nem à sua concepção de ciências naturais, a influência deste filósofo
se estende ao cardeal conceito de pulsão (Trieb) e a preponderância do
ponto de vista dinâmico na explicação dos fenômenos.32
Poderíamos aqui elencar uma gama de conceitos hauridos da
psicanálise freudiana que foram alvo da crítica heideggeriana nos
Seminários de Zollikon. A mira do filósofo incidiu sobre os conceitos de
pulsão, de libido, de repressão, de esquecimento, de afeto, entre outros.
Porém, dado o escopo de nosso texto não será possível contemplar esta
crítica em uma maior envergadura, cabendo-nos apenas enfatizar que o
foco das colocações heideggerianas a respeito da psicanálise centrou-se
em apontar sua dívida em relação à filosofia moderna e ao modo de
proceder das ciências naturais. A questão que se impõe ao pensamento,
a partir das provocações heideggerianas, reverbera a indagação sobre a
possibilidade de contemplar o existir humano tendo como guia teórico
uma ciência devedora da metafísica, escravizada pelas leis da causalidade,
pelo determinismo fisicalista e marcada pela pretensão de confeccionar
um procedimento científico que é estrangeiro a esta existência.
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32
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Recebido em: 21 de dezembro de 2007.
Aprovado em: 23 de janeiro de 2008.
Número Especial:
Heidegger e a Educação
Sobre a serenidade em Heidegger:
uma reflexão sobre os caminhos do pensamento
Ligia Saramago*
Resumo: O presente texto tem como objetivo apresentar algumas colocações de
Heidegger sobre o pensar, em especial o que ele chama de “outro pensamento”.
Serão tratados aqui apenas dois de seus escritos, Para a discussão da serenidade: de
uma conversa sobre o pensamento que teve lugar num caminho de campo (1944-1945) e
Serenidade (1955), buscando fazer um contraponto com importantes declarações
feitas pelo autor em sua famosa entrevista a Der Spiegel (1966). Os pensamentos
calculador e meditativo serão aqui considerados, bem como a crucial noção de
serenidade, no contexto da reflexão heideggeriana sobre esta questão.
Palavras-chave: Pensamento. Representação. Serenidade
On Heidegger’s gelassenheit: a reflection on the paths of thinking
Abstract: The present paper aims to present some of the Heidegger’s
statements on the thinkig issue in two of its writings, Conversation on a country
path about thinking (1944-1945) and Memorial address (1955), looking forward to
making a counterpoint with important declarations by the author in his famous
interview to Der Spiegel (1966). Here will be considered the calculative and
Doutora em Filosofia e Professora do Departamento de Filosofia e do Curso de Arquitetura e
Urbanismo da PUC-RJ. E-mail: [email protected]
*
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação
Vitória da Conquista
Ano VI
n. 10
p. 159-176
2008
160
Ligia saramago
meditative thinkings, as well as the crucial notion of serenity, in the context
of the heideggerian reflection on this question.
Key words: Thinking. Representation. Serenity
Dois caminhos do pensamento
A reflexão heideggeriana sobre a natureza do pensar não se
restringe a considerações sobre aquela forma de pensamento que
se pretende estrita e propriamente filosófica, tal como usualmente a
entendemos, mas evidencia a absoluta necessidade de adentrar certos
âmbitos tidos como “estranhos” a este pensar, tradicionalmente
concebido, segundo Heidegger, tanto como representação quanto como
querer. O que se pretende aqui é apresentar alguns aspectos de um
segmento bastante específico da reflexão heideggeriana sobre esta
temática, aquele que é demarcado por dois de seus escritos: Serenidade,
de 1955, e Para a discussão da serenidade: de uma conversa sobre o pensamento que
teve lugar num caminho de campo, de 1945, onde Heidegger narra um longo
diálogo entre três personagens, o Investigador, o Erudito e o Professor,
sobre a questão do pensar.1 É o pensamento em sua essência, que
constitui o fio condutor da discussão, e o cenário onde tal diálogo tem
lugar não poderia ser mais indicativo de seu conteúdo: pensar o caminho
do pensamento significa já estar percorrendo este mesmo caminho.
A discussão que ganha corpo nas vozes dos três personagens de
Para a discussão da serenidade – o Investigador, o Erudito e o Professor
– parte da premissa, aparentemente paradoxal, de que só quando
desviamos nosso olhar do próprio pensamento somos capazes de
perceber sua essência. Tomando, então, uma direção contrária àquela
que identifica esta essência do pensamento à representação e ao querer,
o diálogo entre os três personagens se estenderá por um outro caminho
– seguindo, como diz Heidegger, a “direção invisível” que os leva
1
Serenidade reproduz o discurso proferido por Heidegger durante as celebrações do 175° aniversário
de nascimento do compositor Conradin Kreutzer, em Messkirch, em 30 de outubro de 1955. Os
dois escritos mencionados, por sua profunda afinidade temática, foram reunidos numa única obra,
intitulada Serenidade (Gelassenheit), publicada em 1959.
Sobre a serenidade em Heidegger: uma reflexão sobre os caminhos do pensamento
161
pela mão –, explorando regiões outras do pensar. Este difícil caminho
através do não-habitual, caminho “longe das habitações dos homens”,
marcado pelo desafio de “nos desabituarmos da vontade”, como o
expressa o Professor, parece levar a uma outra atitude, ou uma outra
direção do pensamento; esta não representacional e, principalmente,
não voluntarista, que Heidegger identifica à serenidade (die Gelassenheit).
Essencialmente vinculado a esta atitude está o que Heidegger chama de
pensamento meditativo, ou seja, o pensamento reflexivo que se recusa a toda
e qualquer representação, e tampouco se deixa guiar pelo querer.
Contudo, afirma Heidegger, “o homem atual está ‘em fuga do
pensamento’”. Tal fuga, ainda que negada ou questionada, ainda que não
reconhecida, se apresenta, ela própria, porém, como pensamento, mas
um pensamento de um gênero bastante específico: esta fuga do pensar
Heidegger identifica ao domínio contemporâneo do pensamento calculador
(das rechnende Denken). É o pensamento que, tendo diante de si um objeto
a ser investigado ou um objetivo a ser atingido, se lança em inúmeras
conjecturas, em planos e antecipações. Opera no terreno da práxis,
visando sempre ao controle de processos que levarão, inescapavelmente,
aos resultados esperados. O pensamento calculador, no que põe diante
de si seus objetos, os reduz à enumeração das possibilidades de satisfazer
aos fins previamente delineados pelo querer. Tal forma do pensamento
é a que domina no mundo técnico, bem como em todas as formas de
controle e de abordagem do real pela tecnologia contemporânea.
Já em 1943, no posfácio a Que é metafísica?, escrito de 1929,
Heidegger afirmara que “de modo nenhum é o pensamento exato o
pensamento mais rigoroso”, justamente por se prender ao objetivo
último do cálculo, o qual “reduz todo o numerável ao enumerado, para
utilizá-lo na próxima enumeração. O cálculo não admite outra coisa que
o enumerável”.2 O pensamento calculador, ao consumir continuamente
seus objetos – ou os entes então tornados objetos –, revela também o
caráter destruidor do cálculo, que usualmente assume o aspecto contrário,
Heidegger, Martin. Que é metafísica? In: ______. Os Pensadores. Tradução de Ernildo Stein.
São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 247-248.
2
Ligia saramago
162
o da produtividade máxima. Obediente à lógica auto imposta de tudo
abarcar e submeter, o pensamento calculador “não é capaz de suspeitar
que todo o calculável do cálculo já é, antes de suas somas e produtos
calculados, num todo cuja unidade, sem dúvida, pertence ao incalculável
que se subtrai a si e sua estranheza das garras do cálculo” (Heidegger,
1943, p. 248 ). E, em Serenidade, Heidegger (1955, p. 13-14) conclui:
Existem, portanto, dois tipos de pensamento, sendo ambos à sua
maneira, respectivamente, legítimos e necessários: o pensamento
que calcula e a reflexão (das Nachdenken) que medita. [...] um
pensamento que medita surge tão pouco espontaneamente
quanto o pensamento que calcula. O pensamento que medita
exige, por vezes, um grande esforço. Requer um treino demorado.
Carece de cuidados ainda mais delicados do que qualquer outro
verdadeiro ofício. Contudo, tal como o lavrador, também tem
que saber aguardar que a semente desponte e amadureça.
“Estar desperto para a serenidade”
A relação metafísica entre pensamento e vontade – tema recorrente num
período de intensa meditação sobre a obra de Nietzsche3 – é evocada logo
nas primeiras linhas de Para a discussão da serenidade: considerado segundo a
tradição, o pensamento representacional já seria, em si, uma das formas da
vontade. Nesta obra, Heidegger busca, nas vozes de seus três personagens,
conceber um outro pensamento, capaz de liberar-se essencialmente desta
natureza voluntarista. Coloca-se, então, diante do Investigador, do Erudito
e do Professor a tarefa de clarificar o como desta liberação do pensamento,
que possibilitaria uma forma outra de aproximação das coisas, uma
aproximação não objetificadora, não apropriadora, marcada, antes, por
um “estar desperto para a serenidade” (wachbleiben für die Gelassenheit). Esta
serenidade, é importante frisar, não remete a qualquer idéia de passividade,
ou a uma permissividade nascida da fraqueza: o agir que se oculta no
âmago da serenidade é de uma ordem mais elevada do que a das usuais
maquinações humanas e não implica obrigatoriamente atividade, tal como
esta é correntemente compreendida.
3
De meados da década de 30 a meados da década de 40.
Sobre a serenidade em Heidegger: uma reflexão sobre os caminhos do pensamento
163
Situada, de fato, além da dicotomia entre atividade e passividade
– sendo esta última, em geral, erroneamente associada a uma debilidade
do querer –, a serenidade, como caminho do pensamento meditativo, é
apresentada por Heidegger como a mais elevada forma do agir humano.
Isto se explica pelo fato de que a serenidade, aqui, escapa por completo
ao domínio da vontade, servindo, assim, de solo para uma outra forma
de pensamento, que não nos remete mais à ordem dos objetos e
instrumentos em geral, mas àquilo que sempre e já permite o aparecer
dos mesmos enquanto tais. Este pensamento, como não poderia deixar
de ser, não resulta de um ato de vontade de algum “sujeito”, mas, como
diz Heidegger, depende antes de um aguardar. A partir da perplexidade
gerada nos três interlocutores por esta desconcertante constatação, irá
se desenrolar uma das partes mais significativas do diálogo de Para a
discussão da serenidade.
Falar sobre a serenidade, ou sobre o pensamento meditativo,
bem como sobre este aguardar, não é tarefa das mais fáceis, como
constatam os três debatedores. Mesmo porque a tematização da
serenidade por Heidegger se afasta, como ele mesmo coloca, de outras
já realizadas, como a de Meister Eckhart, por exemplo, a quem ele
tanto admirava. Para Heidegger, o conceito eckhartiano de serenidade
estaria ainda inserido no domínio da vontade, no sentido de um abrir
mão da vontade própria em nome de um auto abandono à vontade
divina. Em ambos os casos – o do abandono de si e do não abandono
de Deus – a serenidade permaneceria como um “estado” diretamente
referido ao próprio homem, ou referido a seu próprio querer.4 E apenas
quando nos desabituamos deste querer, diz Heidegger, abrimo-nos à
possibilidade de despertar para a serenidade. É interessante observar que
4
Reiner Schürman, em seu escrito De “tres pensadores del abandono: Meister Eckhart, Heidegger, Susuki”,
afirma que: “O conceito transcendental de abandono em Meister Eckhart continua sendo um
conceito relacional: a verdadeira relação com Deus é a gelassenheit, tanto de Deus, como do homem.
Deus e o homem são um, anônimos, neste idêntico abandono. Em Heidegger, o pensamento da
Gelassenheit deve ser compreendido como um ‘passo atrás’ na categoria da relação e de seu caso
extremo, a identidade. [...] A profundidade da Gelassenheit em Heidegger parece residir no fato de
que ele não a pensa, em última instância, nem a partir do homem, nem, especialmente, com vistas
ao homem. Neste sentido, seu pensamento difere radicalmente do pensamento do ‘velho mestre
do ler e do viver’, que é para ele Meister Eckhart, e de Suzuki, que, segundo Heidegger, expressa
‘o que tive a intenção de dizer em todos os meus escritos’”. Tradução minha, a partir da versão em
espanhol realizada por Carolina Soto, em Heidegger y la mística. Córdoba: Paidéia, 1995, p.53-70.
164
Ligia saramago
este estar desperto para a serenidade não é, obviamente, algo que possa
ser planejado ou provocado por quaisquer meios, mas, nas palavras do
filósofo, a serenidade pode apenas ser permitida, “ela desperta quando
ao nosso ser lhe é permitido aceder a algo que não é um querer”.5 A
serenidade (die Gelassenheit) traz já em si um deixar (lassen) não passivo,
e contudo não ativo, que se aproxima, antes, de um não esquecimento
atento, que simplesmente aguarda.
A serenidade envolve, pois, um aguardar, e mesmo se identifica
a este. É um aguardar de uma natureza única, que implica uma espécie
de abertura ao que quer que sobrevenha, de maneira livre e não
direcionada para qualquer objeto. A própria representação de um
objeto pelo pensamento já escaparia a esta atitude de livre aguardar.
Este livre aguardar nos franquearia, de uma maneira mais aberta, a
proximidade do que é longínquo, independente de suas representações.
O que se aguarda, portanto, é a essência mesma do pensamento, sendo
a serenidade – em uma de suas possíveis definições – o caminho para
se chegar a esta essência.
O movimento do pensar: do horizonte à região
A partir da temática do aguardar, em Para a discussão da serenidade,
Heidegger dará continuidade a uma elaboração densa e abrangente – e,
de certa forma surpreendente também – do conceito de região. Este
conceito, que já vinha sendo elaborado desde seus escritos da década
de 1920, e que fora retomado em seus cursos sobre Heráclito6, ganhou
neste diálogo uma especial vinculação ao pensamento mesmo, vinculação
esta mais explícita e intensa. A intenção de trazer este conceito para a
presente exposição não é outra senão a de apresentar o contraponto
escolhido por Heidegger, em 1945, para o pensamento representacional,
no contexto específico de sua discussão da serenidade.
Heidegger, Martin. Serenidade, p. 34.
Os dois cursos, reunidos na obra Heráclito (Heraklit), vêm a ser A origem do pensamento ocidental
(Der Anfang des abendländischen Denkens) e Lógica. A doutrina heraclítica do logos (Logik. Heraklits Lehre
vom Logos), ministrados nos semestres de verão de 1943 e 1944 respectivamente.
5
6
Sobre a serenidade em Heidegger: uma reflexão sobre os caminhos do pensamento
165
A partir de uma consideração tradicional do pensar como
representação horizontal-transcendental – onde a noção de horizonte
diz respeito ao campo de visibilidade, o “pano de fundo” do pensamento
que permite ao sujeito localizar, pôr e dispor dos objetos diante de si
– os três interlocutores serão levados, em sua discussão, não apenas a
considerar insatisfatória esta forma de abordagem dos fenômenos, como
a se indagar sobre a possibilidade de uma instância ainda mais originária
no âmbito do pensar. Tal instância seria anterior ao próprio horizonte, pois o
horizonte se refere exclusivamente aos objetos e às nossas representações
destes. É precisamente no contexto deste questionamento que este
conceito de região passa a ser compreendido, então, num outro nível,
sendo introduzido na seguinte passagem:
Professor – Dissemos que nós olhamos para dentro do horizonte.
Contudo, o campo de visão (der Gesichtkreis)7 é um aberto, mas
sua abertura não se deve ao nosso olhar para dentro deste.
Erudito – Da mesma forma, nós não colocamos a aparência dos
objetos, que a vista dentro de um campo de visão nos oferece,
dentro deste aberto...
Cientista – [...] antes, ela sai deste e vem ao nosso encontro.
Professor – O que é evidente, então, do horizonte é o lado voltado
para nós de uma abertura que nos rodeia; uma abertura repleta
de vistas daqueles que, para nossa representação, aparecem
como objetos.
Cientista – O horizonte é, pois, algo mais além de um horizonte.
Mas depois do que foi dito, este algo mais é o outro lado de si
mesmo, e assim, é ele mesmo. O senhor diz que o horizonte
é a abertura que nos rodeia. Mas o que é essa abertura
enquanto tal, se desconsiderarmos que ela também pode aparecer
como o horizonte de nossas representações?
Tanto Horizont quanto Gesichtskreis poderiam ser traduzidos como “horizonte” mas, para marcar
o uso alternado dessas duas palavras por Heidegger, optei por seguir aqui a solução adotada na
tradução para o inglês, que usa “Horizon” para Horizont e “field of vision” para Gesichstkreis.
7
166
Ligia saramago
Professor – Ela se me afigura como uma região (eine Gegend ), um
encanto para o qual tudo o que lhe pertence retorna, no qual
repousa.
Erudito – Não estou certo de ter compreendido o que o senhor
disse agora.
Professor – Eu não o compreendo tampouco, se por “compreender”
o senhor quer dizer a capacidade de representar o que se coloca
diante de nós, como se estivesse abrigado em meio ao familiar
e assim seguro; pois eu também careço do familiar no qual
possa colocar o que tentei dizer sobre o aberto como região
(das Offene als Gegend).
Cientista – Isto é, talvez, impossível aqui porque, presumivelmente,
o que o senhor chama de região é aquilo que, em si somente,
permite todo abrigo.
Professor – Eu disse algo assim, mas não apenas isto.
Erudito – O senhor falou de “uma” região na qual tudo retorna
a si mesmo. Uma região para todas as coisas não é uma região
dentre outras, mas a região de todas as regiões (die Gegend aller
Gegenden).
Professor – O senhor está certo, o que está em questão é a
região.
Cientista – E o encanto desta região deve por certo ser o reinar
de sua essência, o [seu] regionar (das Gegnende)8, se assim posso
dizer.9 (Heidegger, 1945, p. 38-40).
A abertura do campo de visão a que se faz alusão aqui não é
fruto da iniciativa de algum sujeito, que tampouco deteria o poder de
aí inserir seus objetos. Antes, o movimento desencadeado pela região, e
que propicia o encontro – ou a compreensão – de qualquer fenômeno a
Optei aqui por verbalizar a palavra “região”, por não encontrar nenhum termo satisfatório em
nossa língua que traduzisse “das Gegnende”, sem que com isso se acrescentassem outras conotações
estranhas ao sentido que Heidegger atribuiu a esta palavra. A tradução para o inglês adotou a
expressão “its regioning”.
9
Tradução minha, a partir da versão em inglês (p. 36-39).
8
Sobre a serenidade em Heidegger: uma reflexão sobre os caminhos do pensamento
167
partir de determinado horizonte, é inerente a esta mesma abertura. Mas
o horizonte, diz Heidegger, é apenas “o lado voltado para nós de uma
abertura que nos rodeia”. Esta abertura que tudo abarca é o que aqui
recebe o nome de região: não se trata de uma região dentre outras, tal
como em Ser e Tempo, mas da “região de todas as regiões”, a região que
é capaz de acolher em si não apenas os “objetos” de nosso pensamento,
mas também o próprio pensamento. É a região que abarca a abertura: o
aberto (das Offene) é rodeado pela região.10
É antes de tudo para dar conta desta nova concepção de região
que Heidegger vai recorrer – num gesto característico seu – à forma mais
antiga desta palavra, substituindo, então, Gegend por Gegnet. Tal mudança
de terminologia visa a sublinhar o fato de que este último termo, Gegnet,
ou seja Região11, só se deixa compreender por um pensamento não
representacional, onde a contraposição sujeito-objeto, aqui identificada
ao conceito de horizonte, dá lugar a um movimento de vir ao encontro. Este
vir ao encontro, formulação desde sempre presente no pensamento de
Heidegger, apresenta em Para a discussão da serenidade, uma novidade: o
encontro é abordado a partir do que o autor identifica como um movimento
mais originário, que desencadeia este encontro, um movimento que antecede
e envolve a própria abertura, ao qual ele denomina die Gegnet: a Região. Este
termo arcaico foi escolhido justamente para diferenciar-se do atual; para
que, trazendo consigo um significado renovado, pudesse traduzir este
“vir ao encontro”, expressão que implica tanto “movimento”, como
“reunião” (ambas noções associadas à idéia de região, ou, melhor ainda,
a um “movimento regionador”). O horizonte está envolvido pela região.
Segundo Jean-Philippe Milet12, a região é o ser mesmo do horizonte, sua
essência e verdade originária. O horizonte se apresenta, porém, numa
estrutura de antecipação, o que não ocorre com a Região: recusando
qualquer antecipação, esta escapa, igualmente, a toda possibilidade de
apropriação temática e objetificadora.
10
O conceito heideggeriano de “aberto” (das Offene) é usado por Heidegger para expressar,
basicamente, abertura de sentido, ou de compreensão. Para o autor, o mundo é o próprio aberto,
é a “totalidade do que não se opõe” a nós, sendo o homem o próprio agente desta abertura.
11
A palavra “região”, quando estiver, no presente contexto, traduzindo Gegnet – esta forma arcaica
do termo alemão Gegend –, aparecerá com maiúscula (Região).
12
Cf. MILET, J. P. – Horizon et contrée chez Heidegger, p. 592-593.
168
Ligia saramago
A compreensão da natureza da Região – ou seja, desse movimento
de vir ao encontro que “dissolve” a dualidade sujeito-objeto – é um
passo fundamental aqui. A Região é, em si, um movimento envolvente
e pulsante, de expansão e recolhimento, e repousa na constância deste
seu movimento. Abarca não apenas o mundo material, mas também o
próprio pensamento. Isto não significa que a Região não possa ser pensada,
mas que esta escapa por completo ao pensamento representacional. Mas
como se daria, então, um pensamento sem objetos, sem representações
e, principalmente, livre de toda vontade de apreensão e representação?
Na serenidade, diz Heidegger, onde se é capaz de aguardar. A natureza deste
aguardar não se identifica a um “esperar por” – que já implicaria, por si,
algum interesse subjetivo, um querer ou expectativa –, mas a um “esperar
em”13, ou seja, um sereno aguardar, pelo pensamento, por aquilo que é
dado, o que se abre como dádiva.14 Aguardar tem aqui o sentido positivo
de abandonar-se, de permanecer serenamente receptivo ao que vem a
nós no movimento da Região.
Serenidade é, portanto, a atividade mais elevada do pensamento,
atividade na qual, como diz Heidegger, ocorre um liberar-se de (losgelassen
aus) uma relação transcendental para com o horizonte. Este primeiro
aspecto da serenidade, porém, não esgota sua essência, e sequer exprime
o que há nela de mais crucial. A serenidade prescinde, inclusive, deste
“estar liberado de”, e se mostra num segundo aspecto de sua natureza,
quando Heidegger alude a um “estar liberado para”, já implícito na
expressão “die Gelassenheit zur Gegnet”, como condição para a serenidade
em seu sentido mais autêntico. Há um claro caráter de decisão aqui
implicado, em vista do qual a natureza da serenidade se deixa perceber
em toda a sua complexidade, uma vez que desta decisão ficam excluídos
quaisquer traços de voluntarismo e subjetividade. O poder de decisão que
“Warten, wohlan; aber niemals erwarten [...].”
John M. Anderson, em sua introdução a Gelassenheit, explicita claramente a distinção entre estas
duas formas do esperar nos seguintes termos: “Normalmente, quando esperamos, esperamos por
algo que nos interessa ou que pode nos dar o que desejamos. Quando esperamos neste modo
humano, a espera envolve nossos desejos, objetivos e necessidades. Mas o esperar não precisa
ser tão decididamente colorido por nossa natureza. Há um sentido no qual podemos esperar
sem sabermos pelo que esperamos. Esperamos, neste sentido, sem esperar por nada; por nada,
isto é, o que pode ser apreendido e expresso em termos humanos e subjetivos”. (Cf. Discourse on
Thinking, p. 22-23).
13
14
Sobre a serenidade em Heidegger: uma reflexão sobre os caminhos do pensamento
169
se enraíza na serenidade concerne a um abrir-se deliberado do homem
para o aberto, este compreendido como inerente à própria Região. O
pensamento, em seu sentido mais elevado, identifica-se, portanto, a um
deixar-se levar serenamente pelo movimento congregador de Região
(Gegnet). E as palavras do professor e do Erudito resumem bem esta
premissa:
Professor – A serenidade seria, então, não apenas o caminho, mas
também o caminhar /movimento.
Erudito – Para onde vai este estranho caminho e onde repousa
o caminhar que lhe é próprio?
Professor – Para onde poderia ser, senão para/na região (Gegnet),
em relação à qual a serenidade é o que é? (Heidegger, 1945,
p. 45 ).15
O caráter de decisão, ou de resolução, implícito no conceito
heideggeriano de serenidade – que, ao mesmo tempo em que marca
sua diferença em relação à vontade, evoca também a não passividade, a
“energia ativa” (die Tratkraft) inerente a ela – encontra-se intimamente
ligado à tematização do pensamento em Para discussão da serenidade.
Isto fica bastante evidente quando, pela boca do Cientista, Heidegger
afirma que “a essência do pensamento, a saber, a serenidade em relação
a Região, seria a resolução pela verdade”16, colocação esta completada
pelo Professor com as seguintes palavras:
[...] na serenidade poderia ocultar-se uma persistência que
consiste simplesmente no fato de a serenidade interiorizar
cada vez mais claramente sua própria essência e nela se instalar
persistentemente (Heidegger, 1945, p. 58).
Trata-se aqui de uma “persistência contida”, que vem a ser
a condição mesma para um repousar da serenidade em sua própria
Transcrição ligeiramente modificada.
Segundo Michael Inwood, Gegnet seria “quase equivalente à verdade, em sentido heideggeriano”
(Dicionário Heidegger, p. 37).
15
16
170
Ligia saramago
essência. Como resume Heidegger, numa única palavra: insistência
(Inständigkeit); isto é, insistência da serenidade em relação à Região.
Um outro pensamento
Em 1944, em seu curso de verão Lógica. A doutrina heraclítica do lógos,
Heidegger viria a tematizar uma certa “prontidão” do pensamento, onde
se observa uma profunda afinidade com o que viria a ser desenvolvido
no ano seguinte, em Para a discussão da serenidade. Esta prontidão responde
ao fato de que, segundo Heidegger, os pensamentos produzidos pelo
homem – aqueles que são provocados pela vontade e “corretamente”
construídos pelas regras da “lógica”, tal como esta é usualmente
compreendida – não dariam conta da realidade. A complexidade desta
última não se deixaria dominar por “pensamentos corretos” apenas,
mas demandaria, para uma mais plena compreensão, de uma outra
dimensão da lógica: a “lógica interna das coisas”, as quais nos conduziriam
conscientemente para pensamentos não propriamente “produzidos”,
mas dispensados a nós. A prontidão do pensamento corresponde,
então, à atitude que aguarda atentamente, na serenidade, que a lógica
interna às coisas nos seja dispensada.17 O que fica clara aqui é a recusa
por Heidegger da idéia de que a ânsia por um domínio objetificador
da realidade, que marca o pensamento calculador, nos levaria ao
conhecimento verdadeiro. Antes, tal atitude do pensamento deixaria
escapar o mais essencial.
Será interessante observar que mais de duas décadas depois, na
famosa entrevista concedida por Heidegger a Der Spiegel em setembro
de 1966 – mas apenas publicada postumamente, em 1976, por expressa
exigência do filósofo –, ele retoma suas considerações sobre a questão do
17
Numa passagem de Lógica. A doutrina heraclítica do lógos, Heidegger (1944, p. 200) deixa isto
bem claro, quando diz: “Alguém pode dominar inteiramente a ‘lógica’ sem, no entanto, jamais
produzir um pensamento verdadeiro. Pensamentos verdadeiros são, porém, muito raros. [...] Os
pensamentos verdadeiros e raros não surgem do pensamento auto-produzido. Também não se
encontram nas coisas, da mesma maneira que uma pedra se encontra no campo, ou uma rede na
água. Os pensamentos verdadeiros são dis-pensados ao homem, e isso somente quando ele se
encontra na correta com-pensação, ou seja, na prontidão exercida para o pensamento, que vem
ao seu encontro como o a-se-pensar”.
Sobre a serenidade em Heidegger: uma reflexão sobre os caminhos do pensamento
171
pensar, não mais usando a terminologia que encontramos em Serenidade,
mas trazendo as mesmas posições de antes para um contexto mais
atual. Respondendo a uma pergunta de seus entrevistadores acerca do
poder da filosofia de influenciar a “rede de inevitabilidades” do mundo
contemporâneo, ou de guiar o indivíduo – ou muitos indivíduos – para
alguma ação específica e eficaz, Heidegger responde:
[...] A filosofia não estará apta a efetuar uma transformação
imediata na presente condição do mundo. Isto é verdadeiro não
apenas para a filosofia, mas para todo pensamento meramente
humano e empenho. Só um deus pode nos salvar. A única
possibilidade que nos é deixada é a de preparar uma espécie de
prontidão, através do pensar e do poetar, para o aparecimento
do deus ou para a ausência do deus em tempo de decadência;
pois perante a face do deus ausente, nós naufragamos.18
Nesta passagem, Heidegger faz alusão a alguns elementos
significativos no que tange às questões que vêm sendo aqui tratadas.
Em primeiro lugar, desincumbe a filosofia – ou o pensamento, de um
modo geral – de produzir efeitos, ou seja, de efetuar transformações de
ordem prática no mundo, apontando assim para uma independência
do pensamento, ou do “valor” do pensamento, em relação a quaisquer
expectativas de mudanças concretas na realidade. Na verdade, ele
constata, antes, uma insuficiência do pensamento por si só – tanto
o filosófico quanto outras formas do pensar – para levar a cabo tal
empresa. Em segundo lugar, faz uma ressalva: isto é válido para
“todo pensamento meramente humano”, fazendo em seguida uma
surpreendente menção ao sagrado, que veio a se tornar a frase mais
comentada de toda a entrevista: “só um deus pode nos salvar”. Antes de
se atribuir, apressadamente, a esta frase um caráter puramente religioso,
deve-se considerar que o que está em questão aqui é, mais do que isto,
uma espécie de apelo à dimensão não objetivável da existência, ao que
não é meramente humano, não dominável pelo cálculo. Trata-se de
dimensões que escapam ao controle da lógica corrente, tais como o
18
Philosophy Today, Inverno de 1976, p. 277, tradução minha.
172
Ligia saramago
da poesia em sentido amplo, e do próprio pensamento, por exemplo,
daquele pensamento não “produzido”, mas dispensado ao homem. A
consideração desta situação leva Heidegger a concluir que a única atitude
do pensar que se nos oferece como confiável é, mais uma vez, “uma
espécie de prontidão”, que nos remete ao aguardar atento.
Ao ser indagado, ainda na entrevista, se haveria alguma relação
causal entre seu pensamento e o advento do deus antes mencionado,
Heidegger afirma que tanto por parte do homem, como da filosofia,
o que se pode fazer, na melhor das hipóteses, é dar o primeiro passo
com a preparação desta prontidão, isto é, estar aberto para a chegada
ou a ausência do sagrado.19
Mas um fator que está diretamente implicado em tudo o que
vem sendo colocado até agora, e que ainda não foi mencionado, é a
relação contemporânea entre pensamento e técnica, ou tecnologia,
tema marcante no pensamento de Heidegger, principalmente a partir da
década de 1950. Segundo ele, o papel até então reservado à filosofia vem
sendo gradativamente assumido pelas ciências, ou, mais precisamente,
vem “se dissolvendo” em ciências particulares, tais como a psicologia,
a lógica ou a ciência política. O que parece ficar evidente é uma
sensação de insuficiência do pensamento propriamente filosófico, tal
como desenvolvido ao longo da tradição, para dar conta das demandas
contemporâneas. Numa passagem de especial interesse para a presente
discussão, a entrevista prossegue nos seguintes termos:
Der Spiegel – E agora, o quê ou quem toma o lugar da
filosofia?
Heidegger – A cibernética.
Der Spiegel – Ou o [homem] pio, que se mantém aberto.
Heidegger – Mas isto não é mais filosofia.
Der Spiegel – O que é, então?
Heidegger – Eu chamo isto o “outro pensamento”.20
Heidegger explica esta ausência com as seguintes palavras: “Ademais, a experiência desta ausência
não é senão a liberação do homem daquilo que chamei ‘queda em meio aos entes’, em Ser e Tempo.
Uma meditação acerca do que ocorre hoje pertence à preparação para a prontidão a qual nos
referimos”. Ibidem, p. 278, tradução minha.
20
Ibidem, p. 279, tradução minha.
19
Sobre a serenidade em Heidegger: uma reflexão sobre os caminhos do pensamento
173
É importante registrar que, para Heidegger, o lugar destinado ao
pensamento nesta época de ausência do sagrado e de uma presença cada
vez maior da tecnologia precisará, obrigatoriamente, se transformar. O
que se mantém expectante e aberto, não é mais a “filosofia”, mas o que
Heidegger chama de “outro pensamento”. Este “outro pensamento”
nada tem a ver com a interpretação da filosofia ocidental empreendida
por Heidegger, ou com seu regresso aos fundamentos históricos do
pensamento, ou mesmo com seu atravessar as questões ainda não
respondidas desde os tempos da filosofia grega. O outro pensamento
tenta, como afirma o próprio Heidegger, abrir “alguma possibilidade
para que se experimente, de uma forma reflexiva, os traços fundamentais
da era tecnológica, uma era que mal começou”.
É importante registrar mais uma vez que Heidegger se recusa,
na entrevista, a apontar os “efeitos” deste outro pensamento, e fala,
então, do silêncio, como aquilo que é requerido para preservar o próprio
pensamento de ser completamente obstruído. O sentido deste silêncio,
tão facilmente mal interpretado – ora como consentimento às injustiças
do mundo, ora como negação a uma participação ativa em assuntos
relevantes, ou mesmo como uma incapacidade de resposta às questões
mais prementes –, remete, antes, a uma outra postura do pensamento,
já fora do registro dualista marcado pela polaridade agir/não agir, onde
este segundo termo tem permanecido tão incompreendido por nós
ocidentais. Pode ser também compreendido como o assumir pelo
pensamento desta atitude de não se identificar a seus efeitos; em outras
palavras, uma não identificação do agir com os frutos ou resultados deste
agir. As palavras de Heidegger, que se seguem, respondem às insistentes
indagações de seus interlocutores de Der Spiegel, no sentido de obter
do filósofo indicações claras e precisas para o pensamento, diante dos
impasses e desafios do mundo contemporâneo. Diz ele:
Não é o caso de se esperar, simplesmente, até que algo ocorra
ao homem nos próximos 300 anos, mas de pensar adiante (sem
proclamações proféticas) a respeito do tempo que está por
vir, pensar do ponto de vista das características fundamentais
Ligia saramago
174
da era presente, ainda muito pouco pensadas. Pensar não é
inatividade, mas é, em si mesmo, o agir que permanece em
diálogo com o destino do mundo (das Weltgeschick). Parece-me
que a distinção, que provém da metafísica, entre teoria e prática,
e a representação de algum tipo de transmissão entre ambas,
obstrui o caminho para uma percepção do que eu compreendo
por pensamento.21
A passagem acima deixa claro que este outro pensamento busca
ultrapassar as duras distinções metafísicas entre teoria e prática, atividade
e inatividade, bem como da idéia de representação, como já vimos. E
é fundamental frisar que a complexidade e a sutileza que marcam este
outro pensamento levam igualmente a uma atitude que não se define
por alguma espécie de resistência ingênua ao domínio tecnológico,
mas, antes, a um lidar muito próprio com o mundo técnico, lidar
este que podemos identificar ao pensamento meditativo. Este último,
por escapar às dualidades e às polarizações tão caras ao pensamento
representacional, se permite transitar “pelo meio”, ou seja, por uma via
capaz de conciliar o que, a princípio, parece inconciliável. No que diz
respeito especificamente à técnica e à tecnologia, ou, mais precisamente,
à nossa absoluta dependência da tecnologia, Heidegger propõe uma “atitude
de sim e não simultâneos ao mundo técnico”. Em Serenidade, admitindo
a insensatez de um pensamento que invista contra este mundo técnico,
ele aponta para a busca e uma liberdade aparentemente muito simples
e singela, muito afim com a natureza do pensamento meditativo, mas
que, de fato, propõe um imenso desafio para a atual relação do mundo
contemporâneo com a tecnologia. Diz Heidegger (1955, p. 23-24):
Podemos utilizar os objetos técnicos e, no entanto, ao utilizá-los
normalmente, permanecer ao mesmo tempo livres deles, de tal
modo que os possamos a qualquer momento largar. Podemos
utilizar os objetos técnicos tal como eles têm de ser utilizados.
Mas podemos, simultaneamente, deixar estes objetos repousar
em si mesmos como algo que não interessa àquilo que temos de
mais íntimo e de mais próprio. Podemos dizer “sim” à utilização
21
Ibidem, p. 280, tradução minha.
Sobre a serenidade em Heidegger: uma reflexão sobre os caminhos do pensamento
175
inevitável dos objetos técnicos e podemos ao mesmo tempo dizer
“não”, impedindo que nos absorvam e, deste modo, verguem,
confundam e, por fim, esgotem nossa natureza (Wesen).
[...] Deixamos os objetos técnicos entrar em nosso mundo
cotidiano e ao mesmo tempo deixamo-los fora, isto é, deixamolos repousar em si mesmos como coisas que não são algo de
absoluto, mas que dependem elas próprias de algo superior.
Gostaria de designar esta atitude do sim e do não simultâneos
em relação ao mundo técnico com uma palavra antiga: a serenidade
para com as coisas (die Gelassenheit zu den Dingen).
*
*
*
A questão que naturalmente se coloca para nós é: até que
ponto estas idéias de Heidegger poderiam encontrar eco no mundo
contemporâneo, especialmente no campo da educação, onde se lida
não apenas com o pensamento, mas também com a preparação do ser
humano, de qualquer idade, para enfrentar desafios de toda sorte? Tais
desafios parecem demandar um “preparo” pessoal voltado para o pleno
cumprimento de metas, onde o querer é fundamental; onde os efeitos
de nosso agir devem ser evidentes e imediatos; onde o cálculo é a base
que antecede qualquer empresa. Idéias como as de um pensamento
meditativo que aguarda por algo a ser a nós dispensado, de uma ausência
do querer que põe e dispõe das coisas, de uma serenidade livre em
relação a todo um aparato tecnológico cuja falta é inimaginável para
nós soam, no mínimo, estranhas e em descompasso com realidade. Mas
talvez a resposta do pensamento a este impasse já esteja muito clara: um
caminho não exclui o outro e esta é, afinal, a premissa de Heidegger,
a conciliação do sim e do não. Se o mesmo poderá ocorrer com o que
hoje identificamos ao pensamento calculador dominante, isto é, se este
poderia acolher em si o seu outro, é talvez a questão que ainda espera por
uma resposta. Resta-nos aguardar.
176
Ligia saramago
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tradução em inglês de Gelassenheit]. Nova York: Harper & Row,
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______. Heráclito. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Rio
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Entrevista a Rudolph Augstein e Georg Folff, para o periódico Der
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INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Tradução de Luisa
Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
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PÖGGELER, Otto. A via do pensamento de Martin Heidegger.
Tradução de Jorge Telles de Menezes. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.
SCHÜRMAN, Reiner. De “tres pensadores del abandono: Meister
Eckhart, Heidegger, Susuki”. Versão em espanhol realizada por Carolina
Soto, em Heidegger y la mística. Córdoba: Paidéia, 1995, p. 53-70.
ZIMMERMAN, Michael. Heidegger and Heraclitus on Spiritual Practice.
Philpsophy Today, v. 27, n. 2/4, p. 87-103, 1983.
Recebido em: 10 de novembro de 2007.
Aprovado em: 21 de novembro de 2007.
Número Especial:
Heidegger e a Educação
A apreensão fenomenológica da
vida fáctica em Heidegger
Roberto Wu *
Resumo: Este artigo se propõe a tratar da contribuição fenomenológica
de Heidegger para o âmbito da educação, mostrando que o método
fenomenológico permanece como um método científico em geral. Para isto,
expomos, em primeiro lugar, o conceito de fenomenologia em Husserl, em
seguida o heideggeriano, e, finalmente, a relação entre fenomenologia, ontologia
e hermenêutica no horizonte da compreensão de ser, analisando obras de
Heidegger de 1922 (Interpretações Fenomenológicas de Aristóteles) a 1927 (Problemas
Básicos da Fenomenologia).
Palavras-chave: Fenomenologia. Ontologia. Hermenêutica. Vida fáctica
Phenomenological Apprehension of Factical Life in Heidegger
Abstract: This paper intends to point the phenomenological contribution
of Heidegger to the scope of education, showing that the phenomenological
method stands as a method of scientific philosophy in general. For this, first
we expose Husserl’s concept of phenomenology, later the Heideggerian one,
and finally the relation between phenomenology, ontology and hermeneutics
in the horizon of the understanding of being, analyzing Heidegger’s works
Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO).
Professor titular dos cursos de Direito, Pedagogia e Psicologia no Unicenp - PR. E-mail:
[email protected]
*
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação
Vitória da Conquista
Ano VI
n. 10
p. 177-202
2008
178
Roberto Wu
from 1922 (Phenomenological Interpretations with Respect to Aristotle) to 1927 (The
Basic Problems of Phenomenology).
Key-words: Phenomenology. Ontology. Hermeneutics. Factical life.
Quem procura, seja de que modo for, por uma contribuição
heideggeriana à educação, não pode deixar de notar que alguns temas
fundamentais permitem um novo horizonte no qual os comportamentos
humanos podem se mostrar sob uma nova ótica. Essa relação entre a
educação e a existência surge muito cedo em Heidegger; já em 1918, ele
pensa a tarefa educativa como valoração e apropriação dos “recursos
da existência”1. Posteriormente, nas obras da ontologia fundamental,
o existente humano seria designado como aquele cujo modo de ser é a
abertura – Dasein, ser-aí –, descrito como um projeto inconclusivo desde
uma relação fáctica com o ser, isto é, um projeto que é desde sempre
compreensão de ser. Fica evidente que se é lícito de alguma forma pensar
a relação de Heidegger com a educação, é porque isso se dá a partir de
uma concepção do existente humano como abertura projetiva ao ser,
e nunca na qualidade de uma poiesis em que o homem se desenvolveria
uma potencialidade inata, seja por meio de um amadurecimento da razão,
seja enquanto erudição intelectual advinda exteriormente pela cultura
reinante. Trata-se, sobretudo, da distinção entre, de um lado, o modo
de ser do existente humano (Dasein) e, de outro, o do mero subsistente,
do meramente disponível, do ente simplesmente dado, daquele que não
compreende ser.
De todas as formas possíveis de se analisar a questão da educação
na filosofia heideggeriana – dentre as quais se destaca a pesquisa do
período de sua atividade como reitor na Universidade de Freiburg (19331934) sob os auspícios do Partido Nacional-Socialista –, abordaremos
uma questão que se nos apresenta como fio-condutor do pensamento
desse filósofo como um todo: a noção de fenomenologia. Por mais que
tenha havido deslocamentos e transformações nas diversas obras que
1
Thompson, I. Heidegger and the Politics of the University. Journal of the History of Philosophy,
v. 41, n. 4, p. 515-542, 2003. Cf. p. 519-520.
A apreensão fenomenológica da vida fáctica em Heidegger
179
Heidegger produziu ao longo de sua vida, é preciso salientar que o autor
defendeu e empreendeu um acesso “às coisas mesmas” da filosofia - para
utilizar o lema fenomenológico que Heidegger atribuiu a Husserl – no
sentido preciso de sua concepção fenomenológica. O fundamental é que
a visão fenomenológica propicia, segundo Heidegger, um acesso ao ser
dos entes, uma apreensão tal como eles se mostram em si mesmos.
Antes mesmo da publicação de Ser e Tempo, Heidegger já havia
alcançado certa fama no mundo acadêmico. Não se tratava de um sistema
novo que suplantasse as teorias filosóficas anteriores mas de uma espécie
de atitude que revitalizava o pensamento de autores consagrados pela
tradição, e que, por isso mesmo, permaneciam cristalizados em manuais e
esquemas que lhes tirava qualquer contribuição contemporânea. A atitude
de Heidegger era, ao mesmo tempo, um confronto e uma apropriação
da tradição a partir de um método – denominado fenomenológico –
herdado de Edmund Husserl.
Não se tratava mais de tomar os temas filosóficos como objetos
de erudição, e sim como coisa pensada, como algo digno de uma reflexão
radical por meio do método fenomenológico que não visa a “simples
enunciação de um estado de coisas”,2 mas uma transformação do
pensamento. Hannah Arendt descreve a revolução acadêmica propiciada
por Heidegger do seguinte modo:
O decisivo no método era que, por exemplo, não se falava sobre
Platão e não se expunha sua doutrina das idéias, mas seguia-se
e se sustentava um diálogo durante um semestre inteiro, até não
ser mais uma doutrina milenar, mas apenas uma problemática
altamente contemporânea. Hoje em dia, isso sem dúvida nos
parece totalmente familiar: agora muitos procedem assim; antes
de Heidegger, ninguém o fazia. A novidade simplesmente dizia:
o pensamento tornou a ser vivo, ele faz com que falem tesouros
culturais do passado considerados mortos e eis que eles propõem
coisas totalmente diferentes do que desconfiadamente se julgava.
Há um mestre; talvez se possa aprender a pensar.3
Heidegger, M. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. São Paulo: Abril Cultural, 1983,
p. 71. (Col. Os Pensadores).
Arendt, H. Martin Heidegger faz oitenta anos. In: ______. Homens em tempos sombrios.
São Paulo: Companhia das letras, 1987. p. 223.
2
3
180
Roberto Wu
Nesse caso, aprender a pensar significa conquistar um acesso
‘às coisas mesmas’, o que envolve a questão diretriz do pensamento
heideggeriano: a questão do ser. Como veremos, o pensamento tornouse vivo porque o confronto com a tradição por meio da questão diretriz
o reavivava.
Heidegger e a Fenomenologia Husserliana
A apropriação heideggeriana da fenomenologia de Husserl
está testemunhada em diversos escritos da década de vinte, dentre
eles: Prolegômenos à história do conceito de tempo, Ser e tempo e Problemas
fundamentais da fenomenologia. Nelas, Heidegger baseou-se principalmente
nas Investigações lógicas, A filosofia como ciência rigorosa e Idéias I. Discutiremos
a seguir a exposição da fenomenologia nos Prolegômenos que envolve a
compreensão heideggeriana do projeto fenomenológico de Husserl.
De modo geral, Heidegger reconhece três contribuições fundamentais
nas descobertas operadas por Husserl: a noção de intencionalidade, de
intuição categorial e do sentido originário do a priori.4
De acordo com Heidegger, Intentio significa “direcionar-se para”.
As relações intencionais são atos que conjugam experiências vividas. Essa
intentio subjaz a cada experiência vivida, a cada comportamento psíquico,
no sentido de que cada comportar-se é um direcionar-se para algo. A
intentio designa um movimento para além de si que correlaciona e liga –
nesse sentido, consciência é sempre consciência de algo: “representação
é uma representação de algo, recordação é uma recordação de algo,
julgamento é um julgamento sobre algo, presumir, aguardar, esperar,
amar, odiar – algo”.5
A intencionalidade consiste na pertença recíproca entre intentio e o
intentum, na medida em que ocorre uma doação pela consciência enquanto
intentio e uma auto-doação pelo intentum – o que se afasta da concepção
de uma atividade unilateral da consciência, já que ela possibilita aos
Cf. Taminiaux, J. Leituras da ontologia fundamental: ensaios sobre Heidegger. Lisboa: Inst.
Piaget, 1995, p. 47.
Heidegger, M. History of the Concept of Time (Prolegomena). Bloomington and Indianapolis:
Indiana University Press, 1992a. p. 29.
4
5
A apreensão fenomenológica da vida fáctica em Heidegger
181
seus correlatos aparecerem apenas enquanto são visados por ela. Por
oposição à atitude natural, o ver fenomenológico descobre o sentido
de cada intenção, isto é, o como do aparecimento do intentum. Desta
forma, a intencionalidade está relacionada ao fato de que a consciência
é sempre consciência de algo, o que significa que toda consciência só
pode ser consciência em conjunto com o seu correlato, de modo que a
idéia de um primado da auto-consciência é uma ilusão objetivista.
Heidegger realiza uma série de críticas em relação à noção de
intencionalidade de Brentano, mostrando como Husserl e Scheler
procuraram se distanciar dele. Para Brentano, segundo Heidegger,
intencionalidade diz respeito apenas ao intentio, a noesis, mas não ao seu
correlato, o intentum, o noema. De modo geral, Brentano identifica a
intencionalidade com o psíquico, e Heidegger vê isso como decorrência
de uma aceitação da imanência da consciência tal como Descartes o
concebeu. As respostas de Husserl e Scheler, tomando a intencionalidade,
ora como estrutura universal da razão (Husserl) – embora num sentido
bem específico, ora como estrutura universal do espírito (Scheler),
tampouco dão conta, segundo Heidegger, do modo de ser dessa
estrutura, o que exigiria um desenvolvimento ainda mais radical e a
pressuposição da tarefa de uma destruição da tradição ontológica que
sustenta os pressupostos da metafísica dogmática que ainda permanecem
na fenomenologia desses dois autores. Nesse sentido, Heidegger afirma
que a “intencionalidade não é uma última explicação do psíquico mas
uma abordagem inicial para superar a aplicação a-crítica de realidades
tradicionalmente definidas como o psíquico, consciência, continuidade
da experiência vivida, razão”.6
Quanto à intuição categorial, pode-se dividir a sua análise em
quatro, cada uma correspondendo a um ato categorial. Por intuição
entende-se a simples apreensão daquilo que se encontra em si mesmo
e que se mostra por si mesmo. A primeira consiste no preenchimento
identificador do visar intencional. Este visar é um ato de identificação
(Identifizierung) e uma mostração (Aufweisung), ou seja, a percepção mostra
6
Idem, ibidem, p. 47.
182
Roberto Wu
na sua identidade o que inicialmente era apenas visado. Denomina-se
evidência um ato intencional específico que consiste na identificação
tanto no sentido de fazer coincidir quanto no de manifestação de
identidade. Esse tornar visível é ao mesmo tempo regional, na medida
em que cada intencionalidade visa a um preenchimento específico, e
universal, enquanto função de todos os atos.
O segundo aspecto da intuição categorial analisado por Heidegger
é a ligação entre intuição e expressão. A expressividade exprime
vivências e comportamentos na significação por meio de proposições e
asserções. Segundo Heidegger, “asserções são atos de significação, e asserções
no sentido de proposições formuladas são apenas formas específicas
de expressividade, onde expressividade tem o sentido de expressar
experiências vividas ou comportamentos através de significação”.7
Entretanto, todo enunciado de percepção implica numa impossibilidade
de identificação entre mostração e percepção. A mostração requer para
si um excesso ou excedente que não pode mais buscado na intuição
sensível, mas no ato intencional de apreensão de uma categoria.
O terceiro ponto diz respeito à interdependência entre síntese e
análise, na medida em que toda análise envolve uma relação de síntese
com a totalidade da coisa. Trata-se de conjunção e disjunção, sintesis e
diairesis, no sentido fenomenológico, ou seja, da conexão de objetos
previamente separados na síntese, por exemplo, mas do fato originário
de que tanto sintesis quanto diairesis possibilitam objetos. Assim,
Taminiaux afirma sobre esse assunto que “o ato de síntese é o ato duplo
de explicitação de uma totalidade e de restituição a ela do momento
destacado. Nesse ato, é o estabelecer a relação que é primeiro e é por
ele que os termos que liga se tornam explícitos”.8
O quarto aspecto da intuição categorial é o ato de ideação, pelo
qual uma essência é intuída na sua universalidade9. Não se trata, de
forma alguma, de uma atividade produtiva do entendimento como o
Idem, ibidem, p. 56.
Taminiaux, J. Leituras da Ontologia Fundamental, p. 52.
9
Por essência, entende-se elementos necessários do momento pré-objetivo. Duque-Estrada,
P. Gadamer´s rehabilitation of Practical Philosophy (An Overview). Thesis of Doctorate.
Boston College, 1993, 180p. Cf. p. 32.
7
8
A apreensão fenomenológica da vida fáctica em Heidegger
183
descrito pelo esquematismo kantiano, diz respeito, antes, a um “deixar o
ente ser visto na sua objetividade”.10 Esses quatro temas que perpassam
a intuição categorial podem ser relacionadas com Aristóteles. Para
Taminiaux, “tudo se passa, a seus olhos, como se a Aufweisung reanimasse
a concepção aristotélica da verdade, como se a ligação revelada por
Husserl entre a intuição e a expressão reanimasse o conceito aristotélico
do logos apophantikos, como se a noção husserliana do ato de síntese
reanimasse a ligação posta em evidência por Aristóteles entre sintesis e
diairesis, como se, por fim, a ideação reanimasse a concepção aristotélica
da abstração”.11 Como veremos adiante, a importância desempenhada
por Aristóteles na concepção fenomenológica de Heidegger ultrapassa
esses quatro temas.
Além da intencionalidade e da intuição categorial, Heidegger
reconhece a descoberta feita por Husserl do sentido originário do
a priori como fundamental, embora atenuada em diversos aspectos
na sua exposição. Heidegger reconhece que Husserl foi responsável
por livrar a noção de a priori da marca subjetivista deixada por Kant.
Entretanto, Heidegger afirma que apesar de Husserl ter chegado a
algumas intuições essenciais, a noção de a priori permaneceu pouco
clara, além de estar atrelada, em vários casos, ainda a limitações
impostas pelo uso de concepções da tradição, e pela insuficiência de
uma compreensão mais originária do tempo. Como expressão do
distanciamento fenomenológico entre Heidegger e Husserl, lemos que
o “a priori compreendido fenomenologicamente não é um título para
comportamento mas um título para o ser”.12 Não se trata, portanto, de
uma compreensão do a priori em termos temporais no sentido do tempo
como seqüência de agoras, mas como elemento fundamental do ser dos
entes. Resumindo os três elementos fundamentais na consideração do
a priori, Heidegger afirma que “a exposição tripartida do a priori - 1) seu
alcance universal e sua indiferença para com a subjetividade, 2) o modo
de acessá-lo (apreensão simples, intuição originária), e 3) preparação
10
11
12
Heidegger, History of the Concept of Time (Prolegomena), p. 71.
Taminiaux, op. cit., p. 54.
Heidegger, History of the Concept of Time (Prolegomena), p. 74.
184
Roberto Wu
para a especificação da estrutura do a priori como característica do ser
dos entes e não uma característica mesma dos entes –revelou-nos o
sentido original do a priori”13. Portanto, o a priori nada tem a ver com
uma estrutura cognitiva do sujeito, mas com o ser dos entes que pode
se fazer acessível mediante a intuição originária.
A articulação das três descobertas fenomenológicas por
Husserl, intencionalidade, intuição categorial e o a priori caracterizam a
fenomenologia como “esforço de investigação”14, e isso significa uma
postura que possibilita a manifestação das coisas em seu sentido, como
se verá a seguir.
O conceito de fenomenologia em Heidegger
A fenomenologia é definida por Heidegger como uma ciência
propedêutica para as demais disciplinas filosóficas. Tal consideração
está diretamente relacionada com o caráter descritivo do método
fenomenológico, isto é, com a articulação do que é em si intuído na
análise. O que se mostra na intuição vem por uma “auto-apreensão
direta”15, isto é, por uma análise descritiva do tema e nunca por uma
experiência indireta. É nesse sentido que Heidegger oferece a seguinte
definição de fenomenologia: “descrição analítica da intencionalidade no
seu a priori”16. Trata-se, portanto, de uma ciência propedêutica que não
tem o caráter de ser uma substituição de doutrinas filosóficas anteriores,
já que exige uma outra postura que não as oferecidas pelas correntes
filosóficas tradicionais. Heidegger chega mesmo a afirmar que se trata de
um “começo libertador” 17 para o pensamento, o que significa também
reconduzir a filosofia para o seu “verdadeiro solo”18.
Essa primeira definição de fenomenologia encontra uma
completude maior pela análise heideggeriana dos termos que a
compõem: phainomenon e logos. Phainomenon remete a phainestai que significa
Idem, ibidem, p. 75.
Idem, ibidem, p. 75.
Idem, ibidem, p. 78.
16
Idem, ibidem, p. 78.
17
Idem, ibidem, p. 79.
18
Idem, ibidem, p. 79.
13
14
15
A apreensão fenomenológica da vida fáctica em Heidegger
185
mostrar-se, de modo que phainomenon é o que se mostra (was sich zeigt),
o que se mostra por si mesmo (Sichzeigende) e que se revela (Offenbare).
Este mostrar-se diz respeito à forma média do termo phainomenon que é
phaino, que significa trazer para a luz, para a claridade. Conseqüentemente,
fenômeno é aquilo que se mostra em si mesmo19. Entretanto, isso não
implica que o encontro com os entes se dê de modo unívoco, pois o
ente pode se mostrar de vários modos.
Um ente pode-se mostrar como o que ele não é. Não se chama
de fenômeno um ente que não se manifesta a si mesmo enquanto o que
ele é, mas de aparência (Schein) o que apenas parece ser. Esse modo de
manifestação é, segundo Heidegger, derivado do modo originário do
phainomenon: “apenas na medida em que algo pretende mostrar-se em seu
sentido, isto é, pretende ser fenômeno, é que pode mostrar-se como algo
que ele mesmo não é, ou pode ‘apenas se fazer ver assim como...’”20. Há,
portanto, uma dependência ontológica do phainomenon como aparência,
o que parece ser, do phainomenon em sentido originário; justamente por
isso, Heidegger passa a designar como fenômeno apenas aquilo que se
manifesta em si mesmo como o ente que é, e de aparência a modificação
privativa derivada do primeiro.
Outro modo do fenômeno ocorrer diz respeito à manifestação
(Erscheinung). A manifestação de algo, o seu aparecimento, anuncia e indica
algo que não se mostra. Ela se diferencia da estrutura do fenômeno, no
sentido derivado da aparência, que pretende mostrar-se como o que não
é, simulando e parecendo um outro. A privação da manifestação, num
primeiro momento, diz respeito ao modo em que a coisa se anuncia
mas não se mostra. Desse ponto de vista, a manifestação é a estrutura
formal da indicação, da apresentação, do sintoma, do símbolo, enfim,
de toda estrutura de remissão referencial. Nos Prolegômenos da História do
Tempo, Heidegger afirma que “o que distingue a referência é precisamente
isso: aquilo a que a manifestação se refere não se mostra em si mesmo
19
Desse ponto de vista, apesar da falta de uma ontologia em Husserl, a fenomenologia heideggeriana
está perfeitamente de acordo com a de seu mestre: fenomenologia é “ver, apreender o que se dá a
si mesmo”, Husserl, E. A idéia da fenomenologia. Lisboa: Ed. 70, 2000, p. 77.
20
Heidegger, M. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1976. p. 29. Citaremos a partir
da edição alemã, cotejando com a tradução de Márcia de Sá Cavalcanti: Ser e Tempo (Parte I).
Petrópolis: Vozes, 1998.
Roberto Wu
186
mas representa meramente, declara pelo caminho da mediação, indica
indiretamente”21. A manifestação refere-se àquilo que não se mostra
em si mesmo.
No desdobramento do conceito de manifestação, Heidegger
mostra que o significado desse conceito é bastante ambíguo:
A palavra “manifestação” ainda pode ter dois significados: uma,
manifestação no sentido de anunciar-se, como um não mostrar-se
em si mesmo, e outra, o que se anuncia em si mesmo - aquilo que,
em seu mostrar-se, aponta e indica algo que não se mostra. E, por
fim, pode-se ainda usar manifestação para dizer o fenômeno em
seu sentido autêntico, como um mostrar-se. A se designar essas
três situações com a palavra ‘manifestação’, torna-se inevitável
a confusão.22
Um fenômeno é, ao mesmo tempo, manifestação, no sentido
específico de que toda manifestação anuncia algo que se vela. A
fenomenologia visa àquilo que se vela no manifestado, em linguagem
heideggeriana, a fenomenologia procura apreender o ser do ente que
se encobre em toda manifestação.
O conceito de logos, por sua vez, é compreendido inicialmente
como discurso (Rede). Principalmente por uma análise da obra De
interpretatione de Aristóteles, Heidegger esclarece que o logos tem a
peculiaridade de fazer e deixar ver, no sentido de phainestai, “aquilo
sobre o que se discorre e o faz para quem discorre (Medium) e para todos
aqueles que discursam uns com os outros”23, a partir daquilo sobre o
que se discorre. Portanto logos está relacionado com deloun, isto é, tornar
manifesto, sendo que o que é feito manifestar inclui aquilo sobre o que
se discorre e como se deve discorrer. Heidegger define o logos mais
detidamente quando o qualifica como logos apophantikos; apophainestai
implica em deixar algo ser visto em si mesmo e o prefixo apo diz, a
partir de si mesmo.
21
22
23
Heidegger, M. History of the Concept of Time (Prolegomena), p. 82.
Heidegger, M. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1976. p. 30.
Idem, ibidem, p. 32.
A apreensão fenomenológica da vida fáctica em Heidegger
187
Embora nas relações humanas o discurso se concretize como um
falar composto de palavras, ou seja, logos no sentido de phone, isto é, voz,
esse não é o seu sentido essencial; pelo contrário, mesmo a voz (phone)
depende do discurso (logos) que deixa algo se manifestar por si mesmo.
Essa manifestação tem um caráter eminentemente visual – num sentido
fenomenológico -, trata-se de deixar tornar visível (phainestai) o que pode
ser visto (phantasia), ou ainda phone meta phantasias, articulação verbal
em que algo sempre é visualizado. Essa forma particular de discurso,
o discurso apofântico, é definido por Heidegger como o discurso
autêntico, aquele que demonstra e deixa ver por si mesmo. Outra forma
de discurso possível que não o apofântico é o semantikos, discurso que
também significa algo, embora revelando de um modo outro que o
apofântico. Exemplos do discurso semântico são: uma exclamação, um
pedido, um desejo e uma prece24.
Ainda sobre o logos apophantikos é preciso mencionar que ele possui
a estrutura de sintesis, isto é, de articulação com algo outro que permite
que possa deixar e fazer ver. Na medida em que o logos consiste nesse
deixar e fazer ver é que ele pode ser verdadeiro, ao retirar o ente de seu
velamento (aletheia), ou falso, ao encobrir o ente ao propô-lo como o
que ele não é (pseudestai).
Fenomenologia, portanto, tem a tarefa de “deixar e fazer ver por si
mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo”25,
o que já analisamos anteriormente como legein ta phainomena ou, o que
dá no mesmo, apophainestai ta phainomena. O caráter metodológico da
fenomenologia está na fórmula tautológica “fenomenologia descritiva” que se
apóia no afastamento de toda determinação que não seja demonstrativa,
que não se mostre por si mesmo.
Sobre os temas da intencionalidade e do a priori, Heidegger
afirma que:
As estruturas da intencionalidade no seu a priori são o fenômeno.
Em outras palavras, as estruturas da intencionalidade no seu a
priori circunscrevem os objetos que se apresentam em si mesmos
24
25
Heidegger, M. History of the Concept of Time (Prolegomena), p. 85.
Heidegger, M. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1976. p. 34.
Roberto Wu
188
nessa investigação e explicados na sua presença. O termo
“fenômenos” não diz, de modo algum, sobre o ser dos objetos
sob estudo, mas refere-se apenas ao modo como são encontrados. O
fenômeno está em conformidade com tudo o que se torna visível
nesse tipo de encontro e pertence a esse contexto estrutural
da intencionalidade. [...] Fenomenológico significa tudo que
pertence a tal modo de exibição do fenômeno e das estruturas
fenomenológicas, tudo o que se torna temático nesse tipo de
investigação. O não-fenomenológico seria tudo que não satisfizesse
esse modo de investigação, sua conceitualidade e seus métodos
de demonstração.26
O método fenomenológico não é, de forma alguma, uma
técnica fixa, mas um acesso ao ente a partir do dar-se fenomenológico
da intencionalidade que cada instante implica, o que significa que há
a necessidade de uma conquista de um acesso aos fenômenos27. Em
Ser e Tempo, entretanto, o jargão husserliano é abandonado em prol
de uma associação agora explicitamente afirmada: a relação entre
ontologia, fenomenologia e hermenêutica. A ontologia só é possível
como fenomenologia, e fenomenologia em Ser e Tempo somente se
dá como hermenêutica do Dasein e das condições de possibilidade de
toda investigação ontológica. Assim, temos Heidegger definindo a
fenomenologia em seu conteúdo como ontologia, isto é, ciência do ser
dos entes. Essa ciência tem como tarefa fazer com que o ente se mostre
em seu ser, já que, no mais das vezes, não é o fenômeno que se dá, mas
o seu oposto, o encobrimento.
O encobrimento pode se dar de diversos modos: um fenômeno
pode nunca ter sido descoberto, um fenômeno pode estar entulhado, ou
seja, antes havia sido descoberto, mas voltou a velar-se, e um fenômeno
pode se encobrir por desfiguração. Sobre esse último caso, Heidegger
afirma que é o mais freqüente e perigoso, pois engana e desorienta pela
sua “clareza” mas que, por trás dessa suposta certeza, encobre o que
há de mais decisivo para a investigação fenomenológica. Nesse sentido,
o fundamental para a investigação fenomenológica é o ser, na medida
26
27
Heidegger, M., History of the Concept of Time (Prolegomena), p. 86.
Idem, ibidem, p. 87.
A apreensão fenomenológica da vida fáctica em Heidegger
189
em que “em sentido fenomenológico, fenômeno é somente o que
constitui o ser, e ser é sempre ser de um ente”28. Mas o ser não é uma
mera abstração, ou ainda um ente qualquer; na medida em que o ser
só pode se dar em algum ente, faz-se necessário o questionamento de
um ente para a manifestação do ser. É nessa perspectiva que Heidegger
enuncia a hermenêutica do Dasein como a condição de possibilidade
da manifestação do sentido do ser em geral. Como o modo de ser do
Dasein é a existência, a hermenêutica assume então a interpretação da
existencialidade da existência, o que implica numa radicalização maior do
que o sentido tradicional de hermenêutica enquanto método particular
das Ciências Históricas do Espírito.
Componentes fundamentais do método fenomenológico
Em Os Problemas Básicos da Fenomenologia, Heidegger enuncia três
componentes básicos do método fenomenológico: redução, construção
e destruição. Esses três elementos compõem um método que não tem
nada em comum com os métodos das outras ciências, no sentido de
que as ciências positivas relacionam-se com entes. A fenomenologia
é ontologia e, portanto, visa ao ser. O Dasein é o ente que possui o
privilégio ôntico-ontológico, ou seja, ele é o ente que está na abertura
ao ser e, nesse sentido, Heidegger afirma que “o ser se dá apenas se a
compreensão do ser, portanto Dasein, existe”29. A ontologia tem uma
base ôntica, o Dasein, a partir do qual o sentido do ser enquanto tal
pode se mostrar.
Para um esclarecimento da tarefa da fenomenologia é preciso
analisar o caráter apriorístico que envolve o seu método. Esse método diz
respeito a um a priori do ser em relação ao ente. O ser é anterior ao ente,
mas num sentido diverso da mera sucessão temporal. Nesse contexto,
Heidegger afirma que “ser anterior é uma determinação do tempo, mas
ele não pertence à ordem temporal do tempo que nós medimos pelo
Heidegger, M. Sein und Zeit, p. 37.
Heidegger, M. The Basic Problems of Phenomenology. Bloomington and Indianapolis:
Indiana Univ. Press, 1988, p. 19.
28
29
Roberto Wu
190
relógio; antes, é um anterior que pertence ao ‘mundo invertido’”30. O
tipo de abordagem capaz de apreender o ser é denominado de cognição
a priori, cujos componentes básicos constituem a própria fenomenologia
enquanto conceito de um método.
O primeiro dos três componentes básicos do método
fenomenológico é o da redução:
Para Husserl, redução fenomenológica, [...] é o método de conduzir
a visão fenomenológica da atitude natural do ser humano cuja
vida está envolta no mundo das coisas e pessoas de volta para a
vida transcendental da consciência e suas experiências noéticasnoemáticas, nas quais objetos são constituídos como correlatos da
consciência. Para nós, redução fenomenológica significa conduzir a
visão fenomenológica de volta para a apreensão do ser, seja qual for
o caráter dessa apreensão, para a compreensão do ser desse ente
(projetando sobre o caminho desvelado). Como qualquer outro
método científico, o método fenomenológico cresce e muda devido
ao progresso feito precisamente com sua ajuda sobre os assuntos
sob investigação. O método científico nunca é uma técnica. Tão
logo se torne uma ele decaiu de sua natureza própria.31
Raras vezes, Heidegger enunciou de forma clara o seu
distanciamento com a fenomenologia de Husserl. Trata-se, sobretudo,
da questão do sentido do ser, questão que permaneceu opaca a Husserl,
e que, conseqüentemente, o circunscreve na tradição metafísica da
ontologia. A fenomenologia de Husserl serviu muito mais como
inspiração a partir da qual Heidegger daria um desdobramento próprio
do que um modelo a ser seguido. É nesse sentido que se deve entender os
componentes do método fenomenológico heideggeriano, que possuem
uma perspectiva outra que a do método husserliano.
Em seguida, Heidegger chega a afirmar que a redução
fenomenológica, embora importante, está longe de ser o componente
central do método. A tarefa que se impõe ao fenomenólogo é de ganhar
um acesso ao ser e isso, salienta Heidegger, só pode se dar por meio
de um ente. “O ser não se torna acessível como um ente. Nós não o
30
31
Idem, ibidem, p. 20.
Idem, ibidem, p. 21.
A apreensão fenomenológica da vida fáctica em Heidegger
191
descobrimos simplesmente à nossa frente. Como se demonstrará, ele
sempre deve ser trazido à visão numa livre projeção. Esta projeção
do ente anteriormente dado em seu ser e as estruturas do seu ser nós
chamamos de construção fenomenológica”32.
O terceiro componente do método fenomenológico tal como
Heidegger o define é a destruição. Esse conceito, presente no parágrafo
6 de Ser e Tempo, reapareceria em Os Problemas Fundamentais na reiteração
da necessidade de uma destruição da ontologia tradicional a fim de
liberar uma interpretação de ser que não a pautada pela mera presença.
Essa tarefa envolve um confronto com toda a tradição filosófica que,
desde Platão e Aristóteles, lidou com uma concepção mediana do
ser a partir de uma temporalidade do ente meramente dado. Dessa
maneira, Heidegger afirma a necessidade de uma destruição, isto é, de
“um processo crítico no qual os conceitos da tradição, que a princípio
devem ser empregados, são desconstruídos até as fontes desde as
quais seus contornos foram traçados. Somente por meio da destruição
a ontologia se assegura totalmente no caminho fenomenológico do
caráter genuíno de seus conceitos”33. Deste modo, os componentes do
método fenomenológico estão numa relação de mútuo-pertencimento,
na medida em que a construção é essencialmente destruição, no sentido
de uma desconstrução dos conceitos ontológicos tradicionais. Longe
de ser uma negação da tradição, trata-se antes de uma apropriação das
possibilidades mais próprias dessa tradição.
Já no parágrafo 6 de Ser e Tempo, Heidegger explicava que a
abertura da possibilidade mais própria dependia da apropriação do
passado, mas essa apropriação era uma destruição que visava trazer à
tona aquilo que a tradição encobre no seu legar. É nesse sentido que
Heidegger empreende uma repetição da questão ontológica, isto é, uma
retomada destrutiva do legado da tradição ontológica.
Já no final do § 7 de Ser e Tempo, após a exposição acima relatada
da fenomenologia, Heidegger afirma que tais investigações só se deram
por causa das contribuições de Husserl para a fenomenologia – embora
32
33
Idem, ibidem, p. 21-22.
Idem, ibidem, p. 23.
192
Roberto Wu
não haja referência explícita a conceitos específicos de Husserl. É
nesse contexto de reconhecimento de sua dívida com o autor das
Investigações Lógicas que Heidegger propõe que o que há de essencial na
fenomenologia não é fato dela ser “uma ‘corrente’ real. Mais elevada
do que a realidade está a possibilidade. O entendimento da fenomenologia
reside unicamente em se apreendê-la como possibilidade”34. A questão
da possibilidade exige o desenvolvimento do significado da compreensão,
portanto, de uma abordagem hermenêutica que clarifique em que sentido
esse filósofo concebe o primado da possibilidade.
O Tema da Possibilidade na Fenomenologia heideggeriana
O recurso pelo abandono dos conceitos husserlianos no interior
de Ser e Tempo exprime precisamente a impossibilidade de uma ontologia
fundamental unicamente nos moldes da fenomenologia de seu mestre
– o próprio Husserl é tragado no movimento de destruição da história
da tradição ontológica. Sobre isso, Figal afirma que:
Se, juntamente com Descartes, Husserl se movimenta no pano
de fundo da pergunta sobre como a consciência pode ser a
região de uma ciência absoluta, então a relação do pensamento
filosófico com a intencionalidade já está cunhada de uma
maneira contra a qual justamente Heidegger se volta. Para o
pensamento contemplativo que se retém na epoche, os modos
intencionais de se portar, como Husserl mesmo sempre diz uma
vez mais, são objetos; e isso significa: como quer que se precise
compreender esse estado de coisas no particular, eles precisam
se achar simplesmente presentes. [...] Esse padrão de pensamento
exclui desde o princípio o empreendimento da fenomenologia
no sentido de um desdobramento da possibilidade, tal como
Heidegger o exige. De acordo com a idéia de uma manutenção
da possibilidade, tudo depende justamente de abandonar a
orientação por um tal algo simplesmente presente e igualmente
por outras e similares concepções, a fim de poder colocar a
pergunta sobre o ser como tal.35
Heidegger, M. Sein und Zeit, p. 37.
Figal, Günter. Martin Heidegger: fenomenologia da liberdade. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2005. p. 36.
34
35
A apreensão fenomenológica da vida fáctica em Heidegger
193
O tema da possibilidade não é um tema husserliano, mas retirado
de Kierkegaard. O filósofo dinamarquês foi o primeiro a discordar, de
forma suficientemente radical, ou seja, por uma abordagem do tempo,
das concepções tradicionais de realidade e de possibilidade. Alguns
conceitos kierkegaardianos permeiam Ser e Tempo, embora quase nunca
Heidegger lhes dê o devido crédito. Dentre esses conceitos, é importante
mencionar a relação entre existência e liberdade, a descoberta da
importância do caráter fundamental de determinados humores como
desespero e angústia, e, principalmente, a interpretação de Kierkegaard
sobre o tempo, nas modalidades de repetição, instante e porvir, baseadas
não na atualidade ou na realidade, mas na possibilidade, como se
desenvolverá adiante. Trata-se da concepção do existente humano a
partir da recusa de uma substância definidora, de uma essência humana
dada a priori; em suma, da imbricação entre escolha e liberdade no projeto
humano de tornar-se sujeito.
A questão da possibilidade aparece em Ser e Tempo diretamente
atrelada a um conceito de gênese hermenêutica: a compreensão. Definida
como uma das dimensões da abertura, juntamente com o discurso e a
disposição, a compreensão é enunciada como “o poder-ser capaz de
propiciar aberturas”, sendo que esse poder-ser deve ser visto como
“possibilidade de ser”36. A compreensão é radicalmente diferente de
uma faculdade cognitiva no sentido da epistemologia tradicional – não
é entendimento ou razão, e não diz respeito à assimilação subjetiva de
objetos – antes, é definida unicamente em termos ontológicos. O Dasein
é este ente que compreende o ser e isso significa: ele é o ente que, prétematicamente, já foi lançado ao mundo como ente aberto ao ser – isto
é, ser-no-mundo -, e como ente que, a cada compreensão, se projeta
para possibilidades.
Enquanto elemento articulador da existencialidade, a compreensão
é responsável pelas relações de sentido e significância do ser-nomundo. Entretanto, existir como ser-no-mundo significa projetar-se
continuamente para possibilidades, o que quer dizer o Dasein não pode
36
Heidegger, M. Sein und Zeit, p. 143-144.
194
Roberto Wu
ser concebido apenas como um ente dotado de propriedades que
consistiriam na sua “realidade”, mas que esse ente que se projeta é quem
ele pode ser. Nesse sentido, Heidegger afirma categoricamente: “o Dasein
é sempre a sua possibilidade”, sendo que a possibilidade não deve ser
definida como inferior à realidade – trata-se do “meramente possível”
em que o Dasein já sempre se encontra, enquanto ente lançado37.
Mas a possibilidade deve ser uma possibilidade repetida, o
que envolve uma elucidação breve sobre a questão da temporalidade.
Tendo como ponto de partida a modalização da existência humana em
propriedade e impropriedade, um dos fatores cruciais para a correta
visualização dessas modalizações acaba sendo o entendimento do
existencial da decadência, e de suas ramificações correspondentes. Assim,
tanto a compreensão, quanto a disposição e o discurso podem tender
para a propriedade tanto quanto para a impropriedade. Na medida em
que a existência humana é abertura projetiva a partir de sua facticidade,
o Dasein pode projetar-se propriamente ou impropriamente pela sua
compreensão do tempo. O ser do Dasein, isto é, a sua existência, é no
mais das vezes determinado pelo mundo, no sentido de ser absorvido
pelo mundo e determinado em si mesmo pelos aspectos matizados
pela decadência no ser-com-os-outros. Assim, o impessoal e todas
as estruturas derivadas (ambigüidade, nivelamento, medianidade)
aliviam o Dasein de sua tarefa de existir em sentido próprio, oferecendo
interpretações disseminadas por uma linguagem que não diz respeito
mais a uma existência concreta, já que se limita apenas a passar adiante
a fala. O fenômeno do falatório (Geredete) traz consigo um caráter
autoritário de já ter sempre uma interpretação compartilhada no discurso
sobre cada coisa. Desta forma, a tarefa de uma compreensão originária do
ser, e em Ser e Tempo isso significa – da existência, acaba sendo esvaziada
e tornada supérflua do ponto de vista da interpretação pública em que
predomina a decadência.
A disposição da angústia ocupa a função de uma abertura radical
para a possibilidade mais própria de ser, rompendo com a impessoalidade
37
Heidegger, M. Sein und Zeit, respectivamente, p. 42 e p. 143.
A apreensão fenomenológica da vida fáctica em Heidegger
195
das interpretações correntes disseminadas no falatório. Corresponde à
angústia, concomitantemente, a irrupção de uma temporalidade que
não o da cotidianidade, temporalidade que corresponde à possibilidade
de apropriação do ser. Nessa perspectiva, a temporalidade cotidiana
(atender/espera, atualização/dispersão/desamparo, esquecimento) é
modalizada, a partir da tonalidade afetiva fundamental da angústia,
em antecipação, instante e repetição. Essas ekstases temporais não são
descritas em termos seqüenciais, antes, exigem uma nova forma de
compreender o tempo, já que elas se dão em conjunto.
Em Ser e Tempo há uma primazia do porvir sobre a atualidade
e o sido, primado que se sustenta pelo fato do Dasein ser concebido
unicamente como possibilidade de ser. O porvir é o sentido da
atualidade e do sido. A repetição é a retomada do que, tendo sido, é
possível novamente. Neste aspecto, Kisiel argumenta que “a facticidade
do passado [...] não é um fato bruto, mas antes a possibilidade do
sido”38. Retomar o passado não como coisa simplesmente dada, mas
como possibilidade, é expor o caráter livre de um ente que é poder-ser.
Ou seja, tanto o sido, quanto a atualidade, são concebidos em termos
de possibilidade. É o sentido do porvir que transpassa e articula a
possibilidade das outras ekstases. Vejamos como esse tema descende
de Kierkegaard:
[...] antes de mais, nota-se nesta explicação que o porvir, num
certo sentido, significa mais do que o presente e o passado: pois
não é o porvir o todo de que o passado só representa uma parte?
E que, num certo sentido, o seu significado seja este, resulta de
o eterno significar, antes de mais, porvir, ou ainda, de o porvir
ser a incógnita com que o eterno, irredutível ao tempo, quer
salvaguardar o seu comércio com o tempo.39
Desta forma, para Kierkegaard, o porvir é a “incógnita” do
eterno que ultrapassa as delimitações do passado e do presente na
perspectiva do eterno. Também para Heidegger, pelo menos em Ser e
Kisiel, T. The genesis of Heidegger’s Being and Time. Los Angeles: Univ. of California,
1995. p. 439.
39
Kierkegaard, S. O conceito de angústia. Lisboa: Presença, 1972. p. 124.
38
196
Roberto Wu
Tempo explicitamente, é o porvir que dá a confluência de sentido para as
demais ekstases, enquanto tempo da possibilidade. A repetição é assim a
retomada do sido para o porvir, e isto significa, não uma reduplicação do
passado, mas uma projeção das possibilidades do sido para o porvir, o que
envolve uma transfiguração do sido. Na obra A repetição de Kierkegaard,
o narrador afirma: “eu estou esperando por uma tempestade – e pela
repetição. [...] Ela (a tempestade) me tornará praticamente irreconhecível
para mim mesmo”40. Passar pela tempestade só é possível na medida
em que houver uma mudança radical no indivíduo que não o permita
mais ser identificado ao estado anterior. A repetição é, portanto, uma
espécie de apropriação e de destruição simultânea: para o indivíduo ser
quem se é, ele deve repetir a possibilidade latente de si:
[...] na ordem natural, a repetição corresponde à necessidade
inabalável que é própria daquela ordem. Na ordem espiritual, o
problema não está em se extrair da repetição uma mudança para
aí nos instalarmos confortavelmente, como se o espírito tivesse
contato apenas exterior com as repetições do espírito (segundo
as quais, o bem e o mal alternam como as estações do ano); o
problema está, sim, no transformar-se a repetição em algo de interior, algo que
seja, o próprio objeto da liberdade, o seu supremo interesse, isto é, enquanto
tudo à volta se modifica, poder ela realizar a repetição.41
Se, por um lado, em Ser e Tempo o conceito de repetição está
atrelado a uma transformação advinda da possibilidade própria do
existente humano, por outro, trata-se da discussão de uma repetição das
possibilidades próprias da tradição ontológica que foram encobertas ao
longo de sua história. Trata-se da mútua elucidação entre ser e tempo,
na tese de que o tempo é o sentido do ser. Da mesma forma como o
ser se encobre no mais das vezes, o tempo da cotidianidade é um tempo
indiferente.
40
Kierkegaard, S. Repetition: a venture in experimenting psychology. Princeton: Princeton
Univ. Press, 1983. p. 214.
41
Kierkegaard, S. O conceito de angústia. Lisboa: Presença, 1972. p. 28, grifo nosso.
A apreensão fenomenológica da vida fáctica em Heidegger
197
Fenomenologia, Hermenêutica da Facticidade e Aristóteles
Sobre a fenomenologia, Heidegger declarou várias vezes que era
aprendiz de Husserl e que o verdadeiro fenomenólogo era Aristóteles.
Para a explicitação da importância de Aristóteles, analisaremos alguns
trechos da obra de 1922, intitulada Interpretações Fenomenológicas de
Aristóteles: indicação da situação hermenêutica (relatório Natorp). É certo que
a influência de Aristóteles sobre a filosofia de Heidegger é enorme sob
inúmeros aspectos. Destacaremos apenas a apropriação heideggeriana
das questões relativas à práxis extraídas principalmente da interpretação
do livro VI da Ética a Nicômaco.
Nesta obra, Heidegger enfatiza de forma ainda mais contundente
do que faria posteriormente em Ser e Tempo, a relação entre ontologia,
fenomenologia e hermenêutica. Esses termos são analisados em torno da
questão da facticidade ou da vida fáctica. A interpretação do sentido do
ser a partir do fio-condutor do Dasein assume o caráter de hermenêutica
da vida fáctica. Caputo explica o conceito de facticidade nos seguintes
termos:
[...] tudo gira, nestas primeiras conferências de Friburgo, em
torno da noção de “vida fáctica”, um conceito de Dilthey que
significa existência concreta, histórica. Para Heidegger, a vida
fáctica é determinada em termos aristotélicos como algo que se
automove, como um “ser-movido” em si mesmo, aquele cujos
movimentos procedem de si mesmo (kinêsis, Bewegtheit). A vida
fáctica não se limita a estar disponível (vorhanden), pronta para
ser inspeccionada. É esquiva e está em movimento, retirandose permanentemente (entziehen), afastando-se a si mesma de
vista.42
A vida fáctica tem suas próprias modalizações de ser e se
temporaliza de diferentes maneiras. O Dasein tende, no mais das vezes,
a fugir do fato de estar entregue ao ser e a buscar uma forma de conduta
pautada em interpretações tranqüilizadoras que evitam a tarefa da vida
42
Caputo, J. Desmitificando Heidegger. Lisboa: Inst. Piaget, 1993. p. 72.
198
Roberto Wu
fáctica. Nesse sentido, lemos: “uma vida fáctica que se comporta de tal
modo que, na temporalização concreta de seu ser, inclusive nos casos em
que evita o encontro consigo mesma. A vida fáctica tem o caráter de ser
de tal modo que descobre-se em si mesma como difícil de carregar”43.
De certa maneira, Heidegger utiliza conceitos que ficariam
famosos na obra de 1927, como cuidado, ocupação, preocupação, morte
e decadência para caracterizar a dinâmica da vida. Assim como em Ser e
Tempo, Heidegger mostra como que o Dasein tem a tendência a se deixar
absorver pelo mundo. Entretanto, isso é apresentado como estratégia
teórica para mostrar que o Dasein já transita numa compreensão de ser,
num sentido prático, isto é, o Dasein já compreende ser pois, antes de
mais, ele é praxis. A tarefa de uma hermenêutica da facticidade leva em
consideração a vida fáctica nas suas relações concretas, ou seja, não
se trata da análise da humanidade na sua generalidade abstrata mas da
interpretação da vida no seu próprio movimento.
Embora o Dasein desde sempre já se comporte de alguma maneira
em relação ao seu ser, a vida fáctica, enquanto tal, não se faz acessível
diretamente, pelo encobrimento dos caracteres da decadência. Nesse
ponto, Heidegger afirma que “aquilo que mostra a existência não pode
ser interrogado de uma maneira direta e geral. A existência só se faz
compreensível em seu próprio ser no questionamento da facticidade, na
destruição em cada caso concreto da facticidade, a respeito dos seus motivos
das suas atividades, suas orientações e suas disposições voluntárias”44. Na
medida em que “a possibilidade da existência é sempre a possibilidade da
facticidade concreta”45, a tarefa da destruição diz respeito à possibilidade
da apreensão do ser da vida concreta no seu projeto, evitando as
interpretações consagradas pela esfera da decadência.
Heidegger , M. Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles (Anzeige der
hermeneutischen Situation). Mauvezin: Trans-Europ-Repress, 1992b [7, p. 21]. Citaremos a partir
dessa edição bilíngüe, cotejando com as seguintes traduções: Phenomenological Interpretations with
Respect to Aristotle: Indication of the Hermeneutical Situation. Man and World, v. 25, Netherlands:
Kluwer Academic Publishers, p. 335-393, 1992c. Tradução de Michael Bauer, e Indicación de la
Situación Hermenêutica: Interpretaciones Fenomenológicas sobre Aristóteles (Natorp-Berich).
Madrid: Editorial Trotta, 2002. Tradução de Jesús Adrián Escudero.
44
Idem, ibidem, [7, p. 21].
45
Idem, ibidem, [14, p. 26].
43
A apreensão fenomenológica da vida fáctica em Heidegger
199
Heidegger explica que facticidade e existência não significam a
mesma coisa, sendo a última uma possibilidade que se temporaliza no
ser da vida fáctica. Desta forma, a investigação radical da problemática
ontológica é dependente de uma hermenêutica da facticidade. A tarefa
da filosofia enquanto interpretação ontológica da facticidade é definida
do seguinte modo: “a filosofia pretende ver e captar a vida fáctica em
suas possibilidades ontológicas decisivas, isto é, se a filosofia se decide
por si mesma de modo radical e claro – [...] a compreender a vida fáctica
a partir de si mesma e conforme suas próprias possibilidades fácticas
[...]”46. A compreensão da vida fáctica não é apenas a apreensão dos seus
diversos modos de ser, mas também como ela se temporaliza.
O elemento central para se compreender a questão do tempo na
vida fáctica é a phronesis. Esse saber que se encontra no bojo dos cinco
saberes tais como Aristóteles os elaborou na Ética a Nicômaco, diferenciase da techne, da episteme, da sophia e do nous, como um saber que envolve
uma auto-compreensão, trata-se da vida sabendo sobre si mesma, o que
envolve uma discussão sobre a temporalidade. A phronesis enquanto saber
específico do mundo da praxis envolve uma concepção do tempo que não
pode ser reduzida à mera seqüência de agoras. Embora a definição de
tempo oferecida por Aristóteles na Física consolide paradigmaticamente
o tempo ordinário, Heidegger vê na Ética a Nicômaco a exigência de uma
outra temporalidade que não a dos entes físicos. A praxis se diferencia
temporalmente dos outros saberes – na techne, por exemplo, o início e o
fim da produção se divergem. Na práxis o indivíduo se “auto-produz”
na ação e na projeção de si. Nesse sentido, o tempo da vida fáctica é
algo outro que o dos objetos.
O fundamental da compreensão da vida fáctica é a apreensão
do adequado a cada caso. A compreensão enquanto phronesis visualiza
não apenas o adequado ao caso, mas a relação entre o caso com o todo,
e isso significa que é pela phronesis que a totalidade do ser do Dasein,
isto é, da sua existência, e do tempo correlativo a essa existência, se
entrecruzam: “a phronesis, na medida em que esclarece o trato com
46
Idem, ibidem, [15, p. 27].
200
Roberto Wu
o mundo, contribui para o desdobramento temporal da vida em seu
ser”47. O tempo da phronesis, o kairos, é concebido como instante a partir
do qual a situação concreta pode ser apreendida, o que sempre quer
dizer, apreendida a partir do fim último que orienta cada caso de uma
maneira determinada. Na linguagem de Ser e Tempo, é no instante que
se dá a repetição enquanto retomada da possibilidade mais própria, o
que equivale dizer, é no instante que se antecipa a possibilidade de ser
no projeto apropriador de si. Utilizando a expressão de Kisiel, o Dasein
apreende o adequado do caso concreto no instante, isto é, no “momento
do insight phronético”48.
Heideg ger empreende, por tanto, uma her menêutica
fenomenológica da facticidade, isto é, uma interpretação apropriadora
das categorias da vida fáctica a partir dela mesma: “a hermenêutica
é fenomenológica, o que significa que seu âmbito objetivo – a vida
fáctica em relação com o modo de seu ser e de seu discurso – se
considera, segundo a temática e o método de investigação, como um
fenômeno”49. A tarefa de apreender os fenômenos, de deixar e fazer com
que o ente se mostre tal como ele é, exige conjuntamente a tarefa de
uma hermenêutica que permite o acesso ao ser desses fenômenos.
A hermenêutica da facticidade, tal como elaborada nas Interpretações
fenomenológicas de Aristóteles, permite que se visualize a interdependência
da fenomenologia, da hermenêutica e da ontologia a partir da questão
da vida fáctica.
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Idem, ibidem, [35, p. 42].
Kisiel, op. cit., p. 282.
Heidegger, M. Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles (Anzeige der
hermeneutischen Situation). [17, p. 28].
47
48
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Recebido em: 30 de novembro de 2007.
Aprovado em: 12 de dezembro de 2007.
Número Especial:
Heidegger e a Educação
Sobre o sentido de educar
Marcelo Sodelli*
Resumo: O presente trabalho é um estudo sobre o sentido de educar, na
sociedade contemporânea, por meio da Fenomenologia Existencial de Martin
Heidegger. Iniciaremos com uma reflexão teórica sobre a Fenomenologia
Existencial, contemplando aspectos fundamentais da “Condição Humana”,
sobre a questão do “sentido” e os modos de cuidar de ser. Em seguida,
apresentaremos uma discussão sobre o sentido de educar e seus desdobramentos
ônticos na escola. Concluiremos este estudo apontando três elementos
fundamentais sobre o sentido de educar: conhecimento como aproximação,
a atitude como o cuidado e o horizonte do tempo como possibilidade da
experiência e não de experimento.
Palavras-chave: Fenomenologia. Sentido. Educação. Cuidado.
About the meaning of educating
Abstract: The present work is a study about the meaning of educating,
in contemporary society, by means of Martin Heidegger’s Existential
Phenomenology. We begin with a theoretical reflection on Existential
Phenomenology and Dasein, focusing on fundamental aspects of the “Human
Condition”, the issue of “meaning” and the modes of caring for being. Next, we
present a discussion about the meaning of educating and its ontic unfolding at
school. We conclude this study by presenting three fundamental elements about
*
Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor
da Faculdade de Psicologia da PUC-SP. E-mail: [email protected]
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação
Vitória da Conquista
Ano VI
n. 10
p. 203-222
2008
204
Marcelo Sodelli
the meaning of educating: knowledge as distance reduction, attitude as care and
the horizon of time as a possibility of experience and not of experiment.
Key words: Phenomenology. Meaning. Education. Care.
1 Introdução
Por que perguntar sobre o sentido de educar? Ora, essa indagação
só é possível porque de alguma maneira o sentido de educar pode nos
escapar, se perder, se esvaziar. E esse sentido só pode nos escapar, se
esconder, se encobrir porque ele não é algo pronto e muito menos
definitivo.
O sentido de educar não é a missão de uma instituição de ensino,
aquilo que está escrito e registrado no projeto político pedagógico de cada
escola. Embora as diretrizes descritas neste projeto possam direcionar
as ações educativas, elas representam no máximo a intenção do como
e para que educar, mas não o sentido.
Em uma rápida revisão bibliográfica, podemos encontrar estudos
que se dedicam a investigar o atual modo de ser das escolas. Por exemplo,
Lapo (1999, p.10) comenta que a escola se transformou em um deserto
de significações, vazia de idéias e sentido. Nas suas palavras, “professores
e alunos habitam escolas vazias [...] cheias de normas, de mandos e
desmandos, que exigem novas formas de ser e de fazer, escolas mais
lotadas, mais superpovoadas e, paradoxalmente, cada vez mais vazias”.
Lipovetsky (1998) retrata uma escola sem vida, pois a relação entre
o professor e o aluno esvaziou-se de sentido; os mestres perderam o
prestígio e a autoridade, os alunos vegetam sem motivação ou interesse.
Tedesco (1998) lembra mais um agravante, pois o fato não se resume
apenas à forma deficiente como a escola cumpre os objetivos, mas
também ao fato de se ignorar quais são as finalidades que ela deveria
cumprir e em que direção deveria voltar suas ações.
Obviamente, o modo de ser da escola não pode ser compreendido
sem considerarmos e caracterizarmos quem é a clientela que a freqüenta.
Bondía (2002, p. 23) descreve o sujeito moderno como alguém que
Sobre o sentido de educar
205
não “só está informado e opina, mas também como um consumidor
voraz e insaciável de notícias, de novidades, um curioso impenitente,
eternamente insatisfeito”. Curiosamente, podemos identificar o
sentimento de insatisfação tanto na vida do educador como na vida do
educando. Se por um lado o educador se decepciona com a receptividade
e motivação de sua clientela para o estudo, os alunos se frustram com
os conteúdos curriculares, cada vez mais amplos e complexos, cada vez
mais distante de seu mundo, de sua experiência de vida. Sintetiza Bondía
(2002, p. 23), “cada vez estamos mais tempo na escola, mas cada vez
temos menos tempo”.
A partir deste contexto, torna-se evidente a urgência em
resgatarmos a discussão sobre o sentido de educar, no mundo
contemporâneo. Este estudo se propõe a iniciar esta tarefa por meio
da Fenomenologia Existencial de Martin Heidegger.
Optamos em dividir esse estudo em duas partes. Apresentaremos,
em primeiro lugar, um estudo teórico sobre a Fenomenologia Existencial,
priorizando o modo singular de ser do Dasein, contemplando aspectos
fundamentais da “Condição Humana”. Ainda numa perspectiva ontológicoexistencial, nos deteremos mais profundamente na questão sobre
“sentido” e os modos de cuidar de ser (autenticidade e inautenticidade).
Em seguida, na segunda parte, iniciaremos uma discussão sobre o sentido
de educar e seus desdobramentos ônticos na escola.
Ressalvamos que a compreensão Fenomenológico-Existencial,
apresentada nesta pesquisa, se sustenta, na discussão feita por Heidegger
(1993), em sua obra Ser e Tempo. Utilizaremos, também, outros autores
que compartilham com este modo de compreender o existir humano,
entre outros: Medard Boss, Benedito Nunes e Zeljko Loparic.
2 O Homem na perspectiva Fenomenológico-Existencial
Uma das maiores contribuições do pensamento fenomenológico
é a simples, mas importante constatação de que não podemos estudar e
compreender o Homem da mesma forma como o fazemos com outros
206
Marcelo Sodelli
seres e objetos. Podemos distinguir duas condições fundamentais entre
esses entes (tudo que existe, todos os seres vivos e objetos) e o Dasein1,
termo proposto pelo próprio Heidegger para indicar o caráter peculiar
e distinto da existência humana.
A primeira condição fundamental é que o Dasein é o único ser
que sabe da sua finitude, de que um dia sua vida vai terminar, de que
ele é um ser mortal. Assinala Nunes (2002, p. 22): “desde o princípio o
Dasein está predeterminado pelo seu fim”. O homem sabe que um dia
virá em que ele não mais “será” ou “existirá”. Para a fenomenologia
existencial, esta diferença marca um modo distinto do Homem estar
no mundo, muito diferente dos outros entes, uma vez que é o único ser
que tem de conviver com o seu-ser-para-a-morte e é livre para realizar
uma opção entre viver ou morrer. Desta condição ontológica, nascem
dois sentimentos inerentes ao Dasein: a angústia e a culpa.
A ameaça do não-ser (a morte) é a fonte da angústia primordial
do Dasein, a qual vivenciamos por meio do confronto entre a necessidade
de realização das nossas potencialidades e o perigo de não ser capaz
de realizá-las. Discutindo a essência da angústia, Boss (1975) esclarece
que cada angústia humana tem um de que, do qual ela tem medo e um
pelo que, pelo qual ela teme. O de que de cada angústia compreende a
possibilidade real do Dasein de um dia não estar mais aqui. O pelo que da
angústia nos remete à própria condição existencial do Dasein, ou seja, a
responsabilidade de zelar e cuidar de sua continuidade no mundo.
A culpa é outra importante singularidade do modo de ser do
Dasein a qual não está relacionada às proibições ou tabu culturais, mas,
fundamentalmente, à consciência2 de que o ser do Dasein está sempre em
jogo. Deste modo, temos sempre que escolher um modo de ser e, como
tal, podemos falhar nesta escolha. A culpa então se vincula à consciência
Dasein é o homem compreendido como o ser-existindo-aí. Dasein é sempre uma possibilidade no
qual se encontra como uma abertura para a experiência. Esta característica ficará cada vez mais
evidente com a explicitação da estrutura do ser-no-mundo, sendo, esta estrutura a constituição
ontológica do Dasein. Ser-no-mundo, por sua vez, designa um fenômeno unitário que comporta
uma pluralidade de momentos estruturais indissoluvelmente ligados: o mundo, o ente que está
no mundo e o ser-em.
2
Consciência deve ser entendida aqui, como nos ensina Inwood (2002), como o “saber junto com”, quer dizer, o Dasein é convocado por ele mesmo a dar conta do seu ser (existir). Conhecer
esta tarefa é ter consciência do apelo do ser, do estar-aí-no-mundo.
1
Sobre o sentido de educar
207
da não-realização integral das potencialidades, da necessidade imperativa
de efetuar certas escolhas, em detrimento de outras. Para melhor
entendermos o sentimento de culpa, vejamos a segunda diferença
fundamental entre o Dasein e os outros entes.
A segunda condição fundamental é que o Homem nasce com o
seu ser livre. O Dasein é essencialmente livre, no sentido de ser capaz de
realizar opções e de tomar decisões das quais resultam os significados
de sua existência. Os outros animais já nascem destinados a serem eles
mesmos, pois não têm a possibilidade de ser outra coisa. Por exemplo,
uma abelha já nasce abelha, não há outra possibilidade, a não ser, existir
como abelha. Por outro lado, o Homem nasce possibilidade e não
determinação.
Tomemos como exemplo a condição existencial de um cão que,
livre do mundo que o cerca, será sempre um cão, experimentando o
mundo como um cão, independentemente de ser criado por cães ou
por humanos.
Seria possível afirmar que, fenomenologicamente pensando, se
um homem fosse criado por macacos, ele experimentaria o mundo como
Homem (Dasein)? Parece que os outros animais só podem experimentar a
condição existencial de sua espécie. Qualquer animal, sem ser o Homem,
quando nasce, só pode ser aquilo que ele já é. Não há abertura. Podemos
dizer o mesmo do Homem?
Na compreensão Fenomenológica Existencial, o homem se torna
Dasein unicamente na sua relação de ser-com-os-outros (humanos).
Dasein é sempre uma possibilidade, na qual se encontra uma abertura
para a experiência. O homem é o ser-existindo-aí.
Entretanto, o Dasein não existe isoladamente sem o mundo que
habita que, por sua vez, também não existe separado do Dasein. Quer
dizer, o homem não é uma simples “coisa” no meio de outras coisas,
nem uma interioridade fechada dentro de si mesmo. Daí a importância
de compreender a expressão fenomenológica “ser-no-mundo” que
aponta primeiramente para um fenômeno de unidade e é deste modo
que devemos compreendê-la. Esta expressão deve ser entendida como
208
Marcelo Sodelli
uma estrutura de realização, visto que a existência do homem como
“ser-no-mundo” se desenvolve num mundo de realizações, interesses e
explorações, de lutas e fracassos. É importante perceber que, na visão
heideggeriana, o homem não está dentro de um mundo, quer dizer, não
existe um mundo anterior no qual o homem foi colocado, tampouco o
homem existe para depois criar um mundo. O homem “é” (existe) na
exata medida de seu “ser-em” (na sua relação com o mundo). Não existe
anterioridade entre esses dois movimentos (Heidegger, 1993).
Porém, mesmo sendo possibilidade, o Homem não vive solto
no mundo, sem rumo. Ao contrário, por sua condição ontológica de
abertura, de ter-que-ser alguma coisa, todo o tempo, o Homem se
entrelaça no mundo, por meio da busca incessante pelo sentido. Como
aponta Heidegger (1993, p. 208), “sentido é aquilo em que se sustenta
a compreensibilidade de alguma coisa. Chamamos de sentido aquilo
que pode articular-se na abertura da compreensão”. Esta busca de
sentido nunca termina, pois o ser do Homem sempre está em jogo, dia
após dia, hora após hora, minuto após minuto. O sentido da existência
consiste no estar-lançado-no-mundo, como seu destinar-se, seu rumo.
E é esse sentido da existência que vai impulsionando e pressionando
a mundanização de nosso mundo, toda a ambientação de nosso lugar
de vida, nosso trabalho, nosso fazer. Assim, a força motivadora da vida
humana é a busca que o homem empreende para dar um sentido à sua
existência (Barash, 1997).
Mas como já dissemos, o Dasein não está lançado e aberto
ao mundo aleatoriamente. O Dasein se abre ao mundo por meio da
disposição, ou seja, da forma que é onticamente conhecida como o
humor, os estados de humor. A disposição é o estado em que nos
encontramos, é o modo de ser-em com que nos sentimos, com que nos
dispomos ao mundo. Salienta Heidegger (1993, p. 192) “na disposição
subsiste existencialmente um liame de abertura com o mundo, a partir
do qual algo que toca pode vir ao encontro”. Tudo que chega ao homem
o faz por intermédio dos estados de humor. Portanto, a compreensão
do homem em relação às coisas é sempre emocionada. Pela disposição
Sobre o sentido de educar
209
é que as coisas são descobertas, como boas, temíveis, indiferentes,
interessantes, ameaçadoras, etc. É o homem existindo no mundo, sempre
à luz de uma disposição emotiva (Safranski, 2000).
Este modo peculiar de existir, no qual se abrem, a todo instante,
infinitas possibilidades de ser, tendo como horizonte o próprio não-ser
(a morte), se apresenta para o Homem como uma tarefa árdua, difícil
e angustiante. O Homem tem que dar conta do seu existir e ninguém
pode realizar esta tarefa por ele. Esta escolha dos modos de ser não se dá
por meio de uma ponderação temática do pensamento, mas, conforme
acrescenta Heidegger (1993), é sempre posterior a algo para o que já
fomos preparados pela disposição (estados de humor), embora ela
talvez seja a primeira e única de que nos damos conta. Por este último
motivo, sempre achamos que é através da ponderação do pensamento
que escolhemos.
Assim, Heidegger (1993) nos alerta que não podemos confundir
a abertura do ser-no-mundo no humor com o que o Dasein conhece,
sabe e acredita sobre si mesmo. A abertura da disposição (os estados
de humor) possibilita e desenvolve o que o Dasein representa, por meio
da emoção e afeto, sem que necessariamente tenha um movimento de
consciência. A maioria das pessoas apresenta a compreensão dos estados
de humor por meio do velamento, ou seja, daquilo que ainda não foi
intelectualmente compreendido.
Por outro lado, isto não quer dizer que o Dasein não seja
compreendido. Heidegger (1993) assinala que a compreensão é um
modo de ser-em tão originário quanto a disposição. Compreender é
entendido, por este autor, como um ato de tornar visíveis e familiares, às
entidades e seres, suas utilidades e serventias. É permitir uma atribuição
de significados tanto na relação com as coisas como na relação das coisas.
Nessa atribuição de significados, inclui-se a compreensão que, por sua
vez, já traz implícita a interpretação. Compreender e interpretar são
estados existenciais básicos do Dasein, do seu ser-no-mundo, quer dizer,
é um modo do homem ser e existir no mundo. Para Heidegger, não há
compreensão sem interpretação. Concordando com essa idéia, salienta
210
Marcelo Sodelli
Dartigues (2005) que a interpretação é a explicitação do compreendido,
ou seja, é o significado que se abre na compreensão do mundo, que indica
o para-quê (utilidade e serventia) do que é compreendido.
O ser das coisas está no lidar dos homens com elas e no falar;
está numa trama de significações que os homens vão tecendo entre si
mesmos e por meio da qual vão se referindo e lidando com as coisas.
Deste modo, conclui Critelli (1996), os significados não estão nas coisas,
mas na compreensão do Dasein. Por esta razão, é possível para o Dasein
atribuir significados novos ao mundo que o rodeia.
Heidegger (1993) considera que o homem é sempre passageiro,
lançado em um mundo e está sempre entregue à responsabilidade de si
mesmo. O estar lançado significa a facticidade do homem, ou seja, pelo
fato de estar-aí, o homem já revela um modo global de se relacionar
com o mundo e o compreender, testemunhado na disposição e na
compreensão. Estando-aí, o homem é, antes de tudo, o mundo que ocupa
e que o preocupa. O conhecimento não é senão a articulação de uma précompreensão, na qual o homem sempre já se encontra. Assim, Heidegger
denuncia um sujeito concretamente definido e historicamente situado.
Como já discutimos, ao dar-se conta de ser, de poder-ser, o
Homem percebe que tem que dar conta de seu ser, ou seja, tem que dar
conta de sua existência e, sobretudo, isto está sob sua responsabilidade.
Assim, o Homem tem que “cuidar de ser”. Os homens tomam para seu
cuidado tudo o que pertence à existência: o mundo, as coisas do mundo,
os outros homens, si mesmos. Heidegger define como “cuidado” o
habitar o mundo e construí-lo, preservar a vida biológica e atender suas
necessidades, tratar de si mesmo e dos outros. É o “cuidado” que torna
significativas a vida e a existência humana. Ser-no-mundo, portanto, é
cuidar (Loparic, 1999).
Heidegger (1993) afirma que a escolha desse cuidar não é aleatória.
Esse cuidar está baseado, em última análise, em uma escolha com tríplice
aspecto, a saber: do que se vai cuidar ou não (o que está próximo ou
distante de nossos cuidados), de como se vai cuidar ou não (o modo
como se cuida), de como se vai cuidar desse cuidar mesmo. Podemos
Sobre o sentido de educar
211
dizer que a escolha “de que cuidar” e “do modo de cuidar” retiramos
do nosso mundo herdado, quer dizer, da cultura do mundo em que
nascemos. O modo de cuidar do modo de cuidar do que se tomou sob
cuidados é o que nos leva mais propriamente ao âmbito do sentido.
Esse sentido deve ser entendido como um rumo que apela, em outras
palavras, a uma destinação, em que se abre a possibilidade de se cuidar
de ser, dando-se conta de ser numa certa direção e não em outra. Como
já afirmamos, é através da disposição (os estados de humor) que o
Dasein cuida do existir. Dessa forma, cuidando de existir é que o sentido
originalmente se manifesta.
Faz-se necessário ainda assinalar a temporalidade do Dasein, que é
o movimento extático, isto é, o Dasein só retroverte (passado) advindo
(futuro) a si, e porque retroverte ao advir é que gera o presente (Nunes,
2002). Assim, o futuro é uma antecipação, o passado, a retomada
do que uma vez foi possível, e o presente, o instante da decisão.
Fenomenologicamente, o passado ainda está no presente, no presente
está comprimido o passado, como no passado antecipa-se o futuro.
Deste modo, o Dasein existe temporizando-se, entre o momento que
nasceu até a sua morte.
3 Compreensão fenomenológico-existencial sobre sentido
Como aponta Heidegger (1993, p. 208) “sentido é aquilo em que
se sustenta a compreensibilidade de alguma coisa. Chamamos de sentido
aquilo que pode articular-se na abertura da compreensão”. Continua
o autor, sentido refere-se, primordialmente, ao modo peculiar do ser
humano de cuidar e sentir as coisas do mundo. Este peculiar modo de
ser (cuidar e sentir) vai impulsionando e pressionando a mundanização de
nosso mundo, toda a ambientação de nosso lugar de vida, nosso trabalho,
nosso fazer. O sentido de existir dos homens está no lidar com as coisas
do mundo e no falar; está numa trama de significações que os homens vão
tecendo entre si mesmos e por meio da qual vão se referindo e lidando
com as coisas. Sintetiza Nunes (2002, p. 16) que o homem (Dasein):
212
Marcelo Sodelli
Compreende esses nexos referenciais, cujo todo é dotado de
significatividade – um entrelaçamento de significações, do qual
é inseparável o mundo circundante (mundo dado), cujo âmbito
é espacial, mas não num sentido métrico, como o aposento em
que me movimento familiarmente, tal uma paragem em que
me encontrasse.
Sentido representa, por um lado, uma direção para a qual estamos
nos dirigindo, um ponto no qual queremos chegar, um destino, um rumo
e, por outro, o modo como nos direcionamos para este horizonte, o
modo como nos sentimos nesta direção. Por estas duas particularidades
sempre presentes, sentido pode ser traduzido, numa linguagem
fenomenológica, como o modo de cuidar das coisas do mundo (objetos),
dos outros (pessoas) e de mim mesmo (minha existência), ou seja, o
ser-no-mundo de cada homem.
Embora o cuidado se revele como uma abertura ontológica
do ser homem, sugerindo infinitas possibilidades de ser, na analítica
do sentido, buscamos compreender, principalmente, de que modo o
homem traz para os seus cuidados estes possíveis modos de ser. Entre
essas possibilidades, nos alerta Thiele (1998), a analítica do sentido
acompanha, mais especificamente, o movimento do homem no plano
da existência autêntica e o da inautêntica.
Como explica Inwood (2002), o modo de ser autêntico revela
uma apropriação das possibilidades, um apoderamento de si mesmo:
a decisão, na qual se evidencia o perfil da temporalidade autêntica: o
futuro, que puxa a cadeia dos êxtases, é uma antecipação; o passado,
a retomada do que uma vez foi possível; e o presente, o instante da
decisão (Nunes, 2002). O modo de ser autêntico deriva da compreensão
de que “vale a pena gastar o meu tempo” sendo deste modo e não de
outro, decidindo isto e não aquilo, considerando vigorosamente que
nada pode me garantir, verdadeiramente, que este é o tempo para se
gastar desta maneira, pois não temos predeterminado um parâmetro de
referência sobre o tempo, metricamente calculado, a não ser a certeza
de que, um dia, este tempo cessará, circunscrito por minha finitude. Por
Sobre o sentido de educar
213
isso é que o sentimento de angústia sempre acompanha o instante da
reflexão autêntica.
Todavia, a reflexão autêntica não se origina apenas de um simples
exercício intelectual. Segundo Heidegger (2001), reflexão é a coragem de
tornar o axioma de nossas verdades e o âmbito de nossos próprios fins
em coisas que, sobretudo, são dignas de serem colocadas em questão.
Como sabemos, refletir nem sempre é sentido pelo Homem como
algo agradável e convidativo; ao contrário, a ação de refletir nos remete
à possibilidade de poder-ser-livre, de poder escolher, de compreender a
inospitalidade do mundo, enfim, de se angustiar (Loparic, 2004). Diante
da angústia, tudo cai por terra, nu, despido de qualquer importância,
pois, por meio dela, experimentamos a estranheza do mundo e a
própria liberdade de ser. Somente pela presciência da angústia toda a
possibilidade acidental e provisória é banida (Heidegger, 2001).
Por ser uma condição existencial do Dasein ter que cuidar do
próprio existir, dando sentido para as coisas do mundo, e mais, sabendo
que é impossível transferir esta tarefa para outro, por estas razões, o
mundo pode se tornar um lugar inóspito, a vida pode ser sentida como
um ônus, como um fardo que se tem de carregar. Acrescenta Critelli
(1996, p. 16):
Céu e terra pertencem-se mutuamente, e todos os elementos da
natureza, à medida que aparecem revelados e abrigados nessa
pertença, também dela compartilham. No caso do homem, esse
modo de pertença em que se cria uma inexorável integração é
impossível; a vida humana está em perpétuo deslocamento. Viver
como homens é jamais alcançar qualquer fixidez.
Nesta mesma direção, Loparic (1999) alerta que o perigo que nos
espreita e em toda parte nos acua é o mundo como mundo, originário
e diretamente, que se abre para o Dasein desabrigado. O mundo inteiro
não o pode completar. Consciente disto o Dasein experimenta a angústia
e desespero, dor e tédio.
Entretanto, o Homem não vive cotidianamente angustiado. Por
sua própria abertura, por meio da linguagem e na convivência com
214
Marcelo Sodelli
os outros, o Homem se objetifica ou impessoaliza, explicitando sua
possibilidade de inautenticidade, de impropriedade. Este modo de ser
alienante é o que pode afastar o Homem daquilo que Heidegger (1993)
compreende como tarefa fundamental do Dasein: cuidar de si mesmo.
Destarte, o Homem pode cuidar de si mesmo, não cuidando, ou seja,
irresponsável, indiferente ou distraidamente.
Alerta Nunes (2002, p. 22): “diante dessa existência finita, da
morte, o homem como ser cadente não cessa de fugir”. A inautenticidade
evidencia, assim, a tentativa de um modo de ser impessoal, no qual sou
absorvido pelo mundo, explica Inwood (2002, p. 11), “de tal forma que
esquece de si mesmo como um ente autônomo e interpreta a si mesmo
em função de suas preocupações correntes”. Neste sentido, o modo de ser
inautêntico é a possibilidade de não se apoderar de si mesmo, de se perder
de si mesmo, sendo de um modo impróprio, respondendo pelo “a gente”
e não por si mesmo. Esta absorção do mundo pode ser traduzida em
relação à questão mais própria do homem, seu ser-para-morte (finitude),
na proposição que não sou mais eu que morro, mas sim, a gente é que
morre, que, em última análise, não é ninguém, muito menos eu.
A inautenticidade leva embora as escolhas próprias e a
responsabilidade pelo que o homem faz e em que acredita. Não sou eu
quem decide para que serve algo, ou quem decide como fazer algo. Nem
ninguém em particular decide tudo. Ninguém o faz. É apenas o que se
pensa e se faz, o que o impessoal pensa e faz. O desdobramento disso
é que o horizonte do tempo pode ser interpretado como o “tempo do
agora”, um tempo objetivo, que pode ser contado. O cotidiano assume,
então, um caráter de preenchimento, no qual o homem se debruça e
geralmente se perde (Safranski, 2000).
4 Sobre o sentido de educar
A partir desta resumida apresentação Fenomenológico-Existencial
da Condição Humana, podemos agora nos perguntar sobre o sentido de
educar. Quando interrogamos sobre o sentido de educar, não estamos
Sobre o sentido de educar
215
somente questionando para qual direção a educação está indo, mas
também, de que modo ela está indo para esta direção. Ao perguntarmos
sobre o sentido, indicamos preocupação tanto com o como fazer, como
também com o para que fazer. Na prática docente, isto se traduz na
crítica ao puro uso da técnica, ou seja, o uso tecnicista da técnica. Como
esclarece Almeida (2005), apenas saber ensinar é diferente de garantir a
construção do conhecimento pelo aluno, o aprender a aprender.
Qual é o sentido de educar? Muitas respostas podem nos passar:
garantir a transmissão do conhecimento (científico), desenvolver no
aluno aspectos intelectuais-afetivos, formar cidadãos autônomos e
críticos perante as exigências do mundo etc. Para pensarmos sobre
o sentido de educar, primeiramente, devemos superar a sedução pela
resposta rápida, pronta.
Retomando historicamente a origem da escola, podemos perceber
que até a idade média, a atividade de trabalho estava associada à produção
artesanal e ao comércio, e não havia de fato, separação entre a vida e
trabalho, entre socialização familiar e profissional. Com o advento da
modernidade, houve uma crescente necessidade de conhecimentos
especializados na área técnica-científica para a produção do trabalho e
também aumentou a exigência de preparação das pessoas para a entrada
no mundo profissional (Gatti, 2000). Assim, neste período, a escola
passou a representar um espaço de transição e preparação da vida da
criança para a vida adulta, ou melhor, do mundo infantil para o mundo do
trabalho (adulto). Nas últimas décadas podemos observar que, cada vez
mais, as escolas vêm assumindo a tarefa de educar, já que, considerando
que os pais (pai e mãe) não têm “tempo” para educar seus filhos, pois
estão fora de casa, trabalhando, cada vez mais, as famílias solicitam das
escolas este posicionamento.
Nesta esteira, se por um lado, a rede pública pretende formar
trabalhadores/empregados, a rede particular, por outro, busca formar
vestibulandos. Assim, é possível identificarmos um sentido de educar
comum entre a rede pública e a particular: ambas contribuem na
formação do aluno para a inautenticidade.
216
Marcelo Sodelli
Embora esta constatação seja simples, não podemos dizer o
mesmo quando buscamos compreender a escola, a partir da trama de
significados do mundo contemporâneo, na proposição de libertar o
sentido de educar de sua inautenticidade.
Devemos deixar claro que não é a escola que transforma o aluno
para o modo de ser inautêntico, como diz Heidegger (1993), todos os
homens no seu ser-no-mundo tendem à inautenticidade, tendem a buscar
no “a gente” a dissolução da árdua tarefa do cuidar de si mesmo. Assim,
a vida na escola, como qualquer experiência ôntica, pode nos aproximar
e nos afastar de sermos nós mesmos, de sermos mais próprios.
Contudo, ao analisarmos a escola a partir de seu funcionamento
(classes numerosas, currículo fracionado, conteúdo distante da realidade
do aluno etc.), fácil é perceber o quanto ela se tornou uma facilitadora
do modo de ser inautêntico.
Diante desta proposição e na direção de tentar buscar modos de
ser mais autênticos na escola, gostaríamos de analisar três horizontes do
sentido de educar: do conhecimento, da atitude e do tempo.
Entre os vários significados que a palavra “conhecimento” possui,
ressaltamos o sentido de aproximação. Fenomenologicamente pensando,
conhecer é aproximar (Zimmerman, 2001).
Este resgate de sentido vem, de certa maneira, contrapor o que
a ciência moderna preconiza como conhecer: distanciamento. Este
modo moderno de compreender o conhecimento entende que quanto
mais distante o sujeito estiver de seu objeto de estudo, mais ele poderia
saber sobre este. Na busca por um caminho seguro e previsível, a ciência
moderna direcionou o conhecimento para outra posição: da experiência
com o mundo das coisas para o experimento com as coisas do mundo.
Como afirma Bondía (2002, p. 28), “a ciência moderna, a que se inicia em
Bacon e alcança sua formulação mais elaborada em Descartes, desconfia
da experiência”. A experiência se converte em experimento. Assim, o
aperfeiçoamento do método torna-se uma tarefa fundamental para a
apropriação e domínio das coisas do mundo. Chegamos, então, a um modo
de compreender o conhecimento como uma acumulação progressiva de
verdades objetivas, externo ao homem, separado da existência humana.
Sobre o sentido de educar
217
Ora, não é por acaso que o modo de conhecimento da ciência
moderna tem encontrado dificuldades de se entrelaçar na vida escolar.
Como buscar proximidade com os alunos quando o próprio método
preconiza o distanciamento.
A partir da compreensão fenomenológica que conhecer é
aproximar, resta-nos saber de que forma essa aproximação deveria ser
realizada na escola, ou seja, a atitude perante o educar. Isto nos leva a idéia
de “cuidado”. É o “cuidado” que torna significativas a vida e a existência
humana. Ser-no-mundo, portanto, é cuidar (Heidegger, 1993).
Vejamos, se o método da ciência moderna nos leva ao
distanciamento, o modo de cuidado entre o professor e o aluno só
poderia ser técnico/distante. Aqui, o pensar é apresentado como
cálculo, como raciocínio puro (fora do mundo), inspirado no princípio
de causalidade. Como salienta Bondía (2002), o excesso de repasse de
informação, característica de nosso sistema escolar, não garante que
aluno experimente o mundo na sua totalidade de significados, pelo
contrário, a obsessão pela transmissão de informação (de estar sempre
informando e não formando) distancia o aluno da experiência própria
com o mundo, faz com nada lhe aconteça.
Embora o desenvolvimento do pensamento lógico-causal seja
importante para a vida humana, este não é suficiente para podermos
compreender nossa vivência no mundo. Na verdade, o pensar lógico-causal
só é possível porque já nos encontramos abertos para as coisas do mundo,
numa certa disposição, cuidando de algumas coisas e não de outras.
Assim, tão fundamental quanto ensinar o pensamento lógicocausal, é nos preocuparmos em formar os alunos para o cuidado de
sua própria existência. Por exemplo, em relação à criança, explica
Cytrynowicz (2000, p. 83), “cuidar, não é somente poupar-lhe experiências
desagradáveis ou fazer que siga um determinado caminho. [...] o cuidado
mais original com a criança cuida das próprias possibilidades”.
Quando acima falamos em “preocupação”, queremos assinalar
que o Dasein está sempre pré-ocupado com algo, está sempre ocupado
de alguma forma. Talvez seja esta a tarefa mais importante do Dasein e,
218
Marcelo Sodelli
também, a mais difícil. Temos que dar conta do nosso existir todos os
dias, fazer escolhas, sempre no sentido do vir-a-ser.
Parece que, atualmente, o viver foi compreendido como um
eterno problema a ser resolvido, uma equação que espera solução, uma
verdade, talvez uma técnica do viver. Contudo, rápido aprendemos que
quando um problema acaba logo outro aparece. Como vimos, esta árdua
tarefa de cuidar de ser abre a possibilidade para a inautenticidade, para
a impropriedade do Dasein.
Se por um lado, é a própria condição ontológica do Dasein que
possibilita a abertura para a inautenticidade, por outro, é na vivência
ôntica, no lidar dos homens com os outros homens e com os entes no
mundo que o modo de ser para a inautenticidade se concretiza.
Percebemos, então, a importância da relação do Dasein com
o ser-com-os-outros, já que é a partir desta relação que o mundo
vai se abrindo e se construindo, que o mundo vai ganhando cores
e formas. Entretanto, as cores e as formas do mundo não estão
prontas e, muito menos, se apresentam estáticas. É principalmente
pelo mundo dos adultos que a criança é introduzida e convocada a
cuidar de si mesma.
Este parece ser um ponto fundamental. Embora o mundo não
possa ser compreendido como um espaço acabado e imutável, buscamos
por meio do educar apresentar sempre para as crianças um mundo já
dado, ordenado e regrado, no qual cada coisa tem sua função e serventia.
Parece que, com o avanço da ciência e da técnica, estamos cada vez
mais nos obrigando a aceitar como verdade a tese que o ser do ente é
sempre algo definido pelas propriedades do próprio ente, independente
da relação com o Dasein.
Neste modo de apresentar o mundo um sentimento primordial
do Dasein é esquecido. No mundo contemporâneo o Dasein não tem
tempo para se angustiar. Mesmo sendo o angustiar uma forma de
ocupação, atualmente se ocupar é sinônimo de fazer algo, realizar algo,
produzir algo. Logo, para o homem moderno se angustiar tem o sentido
de perda de tempo.
Sobre o sentido de educar
219
O poder midiático, sensível a este sentido de tempo, não cansa de
seduzir os homens com a promessa do “ter” em substituição ao “ser”,
como algo que nos indica um caminho seguro para a completa realização
pessoal, afastando a angústia. Inaugura-se, assim, um cenário de mundo
moldado pelo consumo, pela avidez em responder pelo sentido no modo
de possuir coisas, que por sua própria constituição ôntica é incompatível
a aquilo que pretende responder.
Neste mundo regido pelo tempo cronológico, pelo tempo do
fazer, pelo tempo do consumo, a escola não vem se mostrando como
um lugar de resistência, como um lugar do questionamento e do resgate
do sentido de ser. Pelo contrário, em vez de buscar angustiar os alunos
provocando uma crise de conhecimento sobre o mundo e sobre eles
mesmos, a escola por meio de uma pedagogia do controle se apresenta
como um continuum sedativo que, ao longo do tempo, impessoaliza e
fortalece a inautenticidade em seus alunos.
Neste momento, torna-se fundamental resgatar quem é este
ser que lida cotidianamente com os alunos nas escolas. Perguntamos:
será que o professor, pela singular posição de importância que tem no
nosso sistema de ensino, foi formado para romper com os paradigmas
da atual sociedade?
Forçoso é admitir que a tríade da sociedade contemporânea
“exploração, produção e consumo”, como não poderia ser diferente,
também está presente na formação docente. Categoricamente,
Gatti (2000) aponta na formação de professores um “ciclo vicioso”
– professores com formação básica inadequada – alunos com
formação básica inadequada – novos professores com formação
inadequada, etc.
Concordamos com Vieira (2000), quando assinala que a formação
inicial de professores constitui o ponto nevrálgico, por meio do qual seria
possível reverter a qualidade da educação, provocando uma ampla reação em
todo o sistema de ensino. Com base nesta compreensão, um componente
estratégico da melhoria da qualidade da educação básica, a formação inicial
de professores, poderia ganhar realmente o status de uma política pública.
Sairíamos de um “ciclo vicioso” para um “ciclo virtuoso”.
220
Marcelo Sodelli
Nesta direção, o sentido de educar poderia ser novamente
evocado e, deste modo, a experiência de cuidar de ser poderia ser
apresentada como algo que nos acontece, com todos nós e com cada
um singularmente.
Considerações finais
Neste estudo vimos possíveis explorações sobre o sentido de
educar a partir da Fenomenologia Existencial de Martin Heidegger.
Discutimos a importância de compreendemos o educar além da mera
transmissão de informações e do desenvolvimento lógico-causal.
De uma certa perspectiva, nossos apontamentos podem parecer
simples e óbvios e, possivelmente, devem ser. Entretanto, é justamente
a esta experiência a que queríamos nos referir, ou seja, experiência que
só ao Dasein pode acontecer e que vem sendo impedida pela tessitura
do modo de ser do mundo contemporâneo.
À luz da discussão realizada neste estudo, a figura do professor
ganha um peso fundamental. Torna-se clara a importância de pensar a
formação de professores a partir de um continuum. A singularidade da
profissão de ser professor exige uma formação que deveria ser sempre
cuidada, seja por um processo de uma efetiva supervisão escolar, seja
pelo processo da formação continuada. Quando perguntamos sobre o
sentido de educar devemos, necessariamente, perguntar sobre o sentido
de ser educador.
A insistência em preconizar a pedagogia do controle, o
conhecimento como distanciamento, a ocupação para a inautenticidade,
poderá custar a todos nós a perpetuação da inexistência de um autêntico
trabalho de educação. Ou seja, o esquecimento de um dos sentidos
mais próprios da educação: a construção pelo aluno de um autêntico
projeto de vida.
Sobre o sentido de educar
221
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Lisboa: Instituto Piaget, 2001.
Recebido em: 09 de novembro de 2007.
Aprovado em: 21 de novembro de 2007.
Número Especial:
Heidegger e a Educação
A universidade na era da técnica – tarefas e desafios
Wanderley J. Ferreira Jr.*
Resumo: Esse artigo trata das tarefas e desafios da universidade na era da técnica
reportando-se inicialmente a dois momentos decisivos no desenvolvimento da
razão ocidental: sua gênese entre os gregos e seus desdobramentos na metafísica
do sujeito cartesiano e no projeto matemático de natureza da ciência moderna.
Mostra ainda que essa racionalidade atinge sua plenitude no domínio planetário
da técnica na época presente, colocando alguns desafios e tarefas à universidade
na chamada sociedade do conhecimento.
Palavras-chave: Filosofia. Conhecimento. Educação.
The University at the Technique age: Tasks and Challenges
Abstract: This paper studies the tasks and challenges of the university at
the technological age, considering initially two important moments in the
development of the western reason, its origin among greeks and its development
withen the methaphysics of subject cartesian and in the mathematic project
of the nature of modern science. It also shows that this rationality affects its
entiress in the planetary domain of the technique at present time, placing some
challenges and tasks to the university in the called information society
Key words: Philosophy. Knowledge. Education.
Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor de filosofia
da Universidade Estadual de Goiás (UEG). E-mail: [email protected]
*
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação
Vitória da Conquista
Ano VI
n. 10
p. 223-254
2008
224
Wanderley J. Ferreira Jr.
Introdução
A compreensão das tarefas e desafios que se colocam à universidade
na era da técnica, tomando como referências básicas algumas reflexões do
filósofo Martin Heidegger1 (1889-1976), exige que sejam explicitados
os aspectos básicos do contexto de emergência da razão moderna e
seu ideal de dominação técnica da natureza via ciência e da sociedade
via política. Tornou-se lugar comum epistemólogos e historiadores das
ciências e da filosofia enfatizarem a originalidade dessa nova forma de
saber que surge com a metafísica cartesiana e a Revolução Científica
no século XVII. De fato, a ciência moderna propõe um novo diálogo
entre o homem e uma natureza reduzida à condição de um autômato
regido por leis matemáticas. Contudo, raros são os pensadores que, como
Heidegger, procuram resgatar ou rememorar os pressupostos metafísicos
que contribuíram para que esse diálogo experimental que surge com a
ciência moderna no séc. XVII se consuma hoje no domínio planetário
da técnica. Tais pressupostos se encontrariam na origem do pensamento
racional como filosofia entre os gregos. Portanto, as raízes da razão
moderna e de toda civilização Ocidental que hoje, através do domínio
da técnica, atinge níveis planetários, encontram-se naquelas tentativas
dos primeiros pensadores gregos (Pré-Socráticos) em estabelecer uma
compreensão racional da physis e na compreensão técnica do pensar já
presente em Platão e Aristóteles.2
Ainda não temos acesso sequer à totalidade das análises e
interpretações que Heidegger fez das experiências originárias dos
gregos acerca da physis, do Logos, do homem, do ser das coisas e de
1
Martin Heidegger (1889-1976) – Filósofo sobre o qual desenvolvi minha dissertação de mestrado
em Filosofia A questão da superação da metafísica na era da técnica (2001) e minha tese de doutorado em
filosofia – O processo de objetificação na metafísica e na ciência moderna (2005), sob orientação do Prof.
Dr. Zeljko Loparic (Unicamp).
2
Na carta Sobre o Humanismo (1947), Heidegger considera que uma autêntica experiência da essência
do pensar originário, que implicaria sua própria realização, exige que nos libertemos da interpretação
técnica do pensar, cujos primórdios recuam até Platão e Aristóteles. Neles não é mais o Ser que
determina o dizer e o pensar, ao contrário, doravante, são as leis do pensar (Principio de identidade,
Não-contradição e da Razão Suficiente) e as regras da gramática que determinam o que é o Ser,
concebido como causa e fundamento do ente. O próprio pensar é tido, ali, como uma tékhne, o
processo da reflexão é posto a serviço do fazer e do operar (Heidegger, 1979a, p. 149).
A Universidade na era da técnica – tarefas e desafios
225
como toda história posterior do Ocidente seria marcada pelo crescente
esquecimento dessas experiências originárias. O fato é que, para o
filósofo, uma melhor compreensão do pensamento grego contribuiria
para a percepção da especificidade da racionalidade que surgiu com a
metafísica do sujeito em Descartes e com o projeto matemático de natureza
da ciência moderna no século XVII.
Ora, sabemos que o surgimento da razão moderna marca o início
da hegemonia do sujeito pensante cartesiano (Eu penso) e da transformação
de todas as coisas em objetos redutíveis às representações desse sujeito
enquanto senhor e controlador da natureza3. Essa razão, ávida em
dominar e controlar a natureza e o homem, encontraria sua consumação/
plenitude no domínio planetário da técnica nos dias atuais. Nesse sentido,
poderíamos considerar que no âmbito do paradigma newtonianocartesiano da “ordem a partir da ordem”, concebe-se a natureza como um
autômato regido por leis mecânicas (Cf. Prigogine, 1984). Opera-se,
assim, uma redução do real às representações de um suposto sujeito puro
desencarnado capaz de perceber, para além da complexidade aparente,
determinadas leis simples. Ora, essa visão determinista e mecanicista da
natureza será colocada em questão por novas formas de racionalidades e
experiências pré-reflexivas do real sugeridas pelos novos paradigmas no
âmbito das ciências contemporâneas. Nesse sentido, depois de explicitar
alguns aspectos básicos da gênese da razão moderna, vamos tentar
responder até que ponto o tipo de racionalidade que surge com Descartes
e a ciência moderna entram em crise nos dias atuais, colocando novas
tarefas e desafios à universidade da era da técnica. Cabe ressaltar, desde
já, que com o advento da metafísica cartesiana e a Revolução científica
do século XVII, o homem moderno teve que fazer uma escolha: ou
escolhia voltar ao seio da natureza ou escolhia estabelecer com ela um
diálogo experimental baseado em símbolos e fórmulas matemáticas que
desrealizavam nossas experiências cotidianas das coisas. Não é difícil
saber que caminho escolhemos. Apostamos na ciência e na técnica que
intima, interroga e re-constrói a natureza conforme a ordem e a medida.
3
Sobre o surgimento do sujeito pensante. Cf. Heidegger: A pergunta pela coisa (1935), a Coisa (1935),
A época da imagem do mundo (1938), Nietzsche II (1962).
226
Wanderley J. Ferreira Jr.
O preço a pagar seria nosso crescente estranhamento em nossa própria
casa – a terra.
Não há como negar a atualidade de uma constatação/diagnóstico
feita por Heidegger em 1929 na conferência Was ist Metaphysik? (Que
é metafísica?) sobre essa universidade da era da técnica. Ela não
passaria do resultado da fragmentação da ciência numa diversidade
de especialidades e disciplinas que são artificialmente reunidas
em Universidades e Faculdades. Na realidade, constata o filósofo,
desapareceu o enraizamento das ciências, da universidade e do próprio
homem no mundo da vida (Lebenswelt) (Cf. Heidegger, 1979b). O fato é
que a universidade na Era da técnica planetária corre o sério risco de se
tornar uma instituição técnica determinada por princípios tais como:
funcionalização, automação, burocratização e informação. A própria concepção
de homem que subjaz ao funcionamento das universidades na chamada
Sociedade do conhecimento, o reduz à condição de animal de trabalho (arbeitendes
Tier), ou material humano (Menschenmaterial) (Cf. Heidegger, 1997). Nesse
sentido, veremos que o caráter radicalmente técnico de nossa época faz
da universidade um dispositivo tecnológico semelhante a uma fábrica
ou a uma agência prestadora de serviço, que privilegia em suas grades
curriculares uma concepção meramente técnica e científica do mundo
natural e humano. O pior é que nos iludimos de que, sob a mediação da
técnica, podemos controlar e dispor da totalidade das coisas conforme
nossa vontade. Ora, constataremos, com Heidegger, que a força que
organiza isso tudo, conferindo coesão à sociedade, é uma vontade de
potência cujo único objetivo, como já observou Nietzsche, seria seu
próprio engrandecimento, ou seja, o aumento de seu próprio domínio
sobre a totalidade dos entes.
Infelizmente, essa disponibilidade incondicional de todas as coisas
à fúria da técnica faz com que a universidade deixe de ser um poder
espiritual decisivo na constituição de uma verdadeira nação, de um
verdadeiro espírito do povo (Volkgeist). Enquanto instituição organizada
tendo as leis de mercado como condição e a formação de incompetentes
sociais como resultado, a universidade tem agora como missão básica a
A Universidade na era da técnica – tarefas e desafios
227
formação desse animal de trabalho – o homem, que se converte em material
humano que deve ser preparado para render o máximo no processo de
produção, ou ser descartado como uma espécie de ruído que compromete
a otimização da performance do sistema.
O fato é que hoje proliferam diversas formas de se falar em
crise da razão e seus conceitos operatórios, o que exigiria uma nova
universidade para a formação de um novo tipo de homem adaptado a uma
realidade na qual a única coisa permanente é a própria impermanência
e transitoriedade das coisas. Infelizmente, esses novos paradigmas,
que instauram novas formas de adquirir, armazenar e transmitir
conhecimentos, nem sempre são considerados ou compreendidos pelos
gestores, professores e alunos em nossas escolas e universidades. Esse
fato torna ainda mais urgente e relevante a questão guia desse artigo:
Que desafios se colocariam à universidade nessa época de emergência de
novos paradigmas e no âmbito da chamada sociedade do conhecimento?4 Em
que medida essa universidade pode ser crítica e inovadora em relação à
crescente padronização e especialização do conhecimento num mundo
cada vez mais uniforme e esquadrinhado pelo cálculo?
Reconhecemos que a ciência contemporânea procura reintegrar
o homem no mundo que ele descreve, tentando talvez re-encantar a
natureza e devolver o mistério que cerca cada coisa em sua simples
presença. Essa nova postura certamente exige novas formas de produzir,
assimilar, armazenar e distribuir o conhecimento adquirido, não apenas
através da ciência e sua insistência sobre o demonstrável, mas mediante
uma relação realmente significativa e originária com um mundo reabitado
pelo mistério.
Na tentativa de compreender alguns aspectos fundamentais
dessa nova configuração do conhecimento e do novo estatuto do
homem e da própria razão no contexto da sociedade do conhecimento,
vamos tomar como ponto de partida de nossa exposição o surgimento
da razão moderna no âmbito da metafísica cartesiana e da ciência
Sociedade do Conhecimento é a forma brasileira de traduzir Sociedade da Informação ou Super Estrada
da Informação, expressões cunhadas nos anos 90 pela Comunidade Econômica Européia e os Estados
Unidos com o objetivo de planejar ou concentrar esforços na construção de uma infra-estrutura
global da informação.
4
228
Wanderley J. Ferreira Jr.
moderna. Concluiremos nosso percurso apontando alguns impasses
da racionalidade tecno-científica nos dias atuais e suas repercussões na
forma em que o conhecimento é produzido e transmitido em nossas
universidades.
1 Gênese e crise da razão técnico-científica
Ao retomarmos alguns aspectos da gênese da razão moderna numa
perspectiva heideggeriana, não podemos negligenciar o fato de que a
apropriação romana (latina) de certos termos fundamentais da metafísica
grega – Logos (Ratio), Alethéia (Veritas), Ergon (Opus), Enérgeia
(Actualitas), Physis (Natura) – não apenas aprofundou o desvirtuamento/
esquecimento das experiências originárias dos gregos em relação ao ser,
ao pensar e ao dizer, mas preparou o advento da época moderna e seu
ideal de dominação e controle sobre a totalidade dos entes. A transição
da energéia (Aristóteles) em actualitas (realidade eficaz) (escolástica), por
exemplo, prepara a disponibilidade incondicional de coisas e homens à fúria
da técnica nos dias atuais. O real torna-se isso que existe e está colocado
fora de suas causas como efeito de uma ação eficaz, seja do homem ou de
Deus. Ora, compreender o ente como realidade eficaz, como resultado
de uma ação eficaz, vela o evento da origem de sua essência. Pensa-se o
puro dar-se do Ser naquilo que se manifesta – o ente, mas não se pensa
as condições de possibilidade do Dar-se, o mistério que subjaz a todo
des-velamento. Essa experiência do Ser, enquanto causa de uma realidade
concebida como resultado de uma ação eficaz, teria preparado o solo
para o surgimento da razão moderna com o advento do sujeito pensante
(Descartes) e com a revolução científica do século XVII e seu projeto
matemático de natureza (Heidegger, 1961, p. 419-420).
Ao fixar como ponto de partida a dúvida universal e radical,
Descartes (1596-1650) estabelece-se na consciência de si enquanto
certeza de si. O filósofo tem a ilusão de poder ensinar um método
capaz de desembaraçar radicalmente a opinião pela dúvida metódica
do sujeito pensante. Assim, o eu penso impõe-se como a afirmação
A Universidade na era da técnica – tarefas e desafios
229
certa da consciência em ato, de sua atualidade viva enquanto puro
fato de consciência. O que emerge da radicalização da dúvida, de sua
hiperbolização, é a evidência do Cogito, a certeza para o Sujeito Pensante,
que se afirma como sujeito consciente de seu objeto (conteúdo) de
pensamento e consciente de si. Assim, a dúvida metódica cartesiana e
a emergência da evidência do Cogito inauguram, não apenas a ordem das
razões na qual se deduz a existência de Deus e do mundo exterior, mas o
pensamento moderno na busca pela objetividade do conhecimento.5
A metafísica cartesiana postula que a autoridade não repousa
mais em um princípio transcendente ou na autoridade da tradição,
mas na imanência do próprio sujeito capaz de usar metodicamente sua
razão rumo às certezas sempre parciais. Doravante, o homem terá que
buscar um novo ponto fixo para sua conduta moral, política e científica,
já que a tradição e a autoridade (Aristóteles) não satisfazem mais as
novas exigências do tempo. O Eu penso (Cogito) converte-se, assim, em
princípio fundador fazendo com que o homem alcance uma posição
única dentro desse perguntar pelo ente. O homem transforma-se em
sujeito, não mais uma parte da totalidade do ente ao lado de Deus e
do mundo, mas aquela instância na qual se reduzem e da qual partem
todas as proposições metafísicas. O termo subjectum não tem agora a
amplitude do termo grego hypokeimenon (o que subjaz, o que suporta
determinadas qualidades), mas restringe-se ao homem, sujeito pensante
e representador. Nesse sentido, como sujeito, o homem se funda a si
próprio como medida de todas as medidas com as quais se mede o que
pode ser tomado como certo, verdadeiro e existente.
Mas como chegamos ao reinado do sujeito na modernidade?
Como se tornou possível interpretar todo existente tomando como
Este vasto desenvolvimento desemboca em Kant (1724-1804), que elabora uma crítica como ato
de um sujeito transcendental que irá determinar os limites, princípios e o território da Razão humana
no campo do conhecimento, da ética, da política e da religião. A consciência do filósofo, consciência
universal (intersubjetiva), é a consciência do Sujeito humano, suporte da universalidade da Razão e
das condições a priori do conhecimento. Para além da dúvida metódica, o Cogito cartesiano tornou certo
de si mesmo e de seu objeto, na medida em que retomou o itinerário (exposto na Fenomenologia do
Espírito) que conduz o espírito, da consciência imediata do aqui e agora ao ingresso no Saber Absoluto, onde desde
o mais distante de si, o Espírito encontra-se na posse de si mesmo. O fato é que Hegel, a última metafísica
possível, prepara as recusas das ilusões do Sujeito Pensante e do monopólio do absoluto, presente
nas obras de Marx (1818-1883), Freud (1856-1939) e Nietzsche (1844-1900).
5
230
Wanderley J. Ferreira Jr.
critério apenas as estruturas do sujeito cognoscente? A preeminência
de um Sub-jectum provém da pretensão do homem de encontrar um
fundamentum absolutum inconcussum veritatis – um fundamento que descansa
na certeza de si. Tal pretensão não passa do resultado da liberação do
homem da autoridade da Igreja e de Aristóteles. Assim, em virtude dessa
liberdade, o homem que se libera se põe a si mesmo uma obrigação.
Esse imperativo pode ser a razão humana e sua lei, ou o ser ordenado
objetivamente e instituído por essa razão (Cf. Heidegger, 1997, p. 81).
Nesse sentido, podemos considerar que a “experiência do Ser” para o
homem moderno não é mais uma experiência que o Ser faz de si no dizer
e no pensar do homem. O Ser transforma-se em objeto do representar
de um sujeito que pensa. Dizer que esse sujeito pensa, é dizer que ele
representa, ou seja, mantém determinada relação com um representado.
Representar significa, tomando por base a si próprio colocar algo diante
de si e garantir aquilo que é posto como tal. Essa garantia advém de um
calcular, pois só a calculabilidade garante de antemão e constantemente
a certeza do que se quer representar. Aqui domina, não mais uma
escuta e um ver que deixam as coisas serem o que são, mas um desafio
que submete a totalidade do ente ao cálculo e à planificação. Assim, o
verdadeiro sentido da categoria de Sujeito mostra-se no âmbito desse
processo de objetivação total do mundo que o reduz a uma imagem – esse
processo é o que Heidegger chama de reino da Técnica. O devir sujeito do
homem, com Descartes, não é senão a transcrição metafísica última do
estabelecimento do reino da técnica. O próprio fato do homem tornarse sujeito e do mundo tornar-se imagem/objeto, não passaria de uma
conseqüência da essência da técnica no movimento de sua instalação
planetária (Cf. Heidegger, 1997, p. 86-87).
O fato é que essa confiança na capacidade da razão em dominar
e devassar todo mistério da natureza, reduzida à condição de autômato,
configura-se como um dos fenômenos que determinam a essência
da época moderna6. Mas que concepções de real e de verdade estão
6
Heidegger aponta outros fenômenos que constituiriam a identidade da época moderna: surgimento
da ciência e da técnica mecânica, a massificação do homem, a transformação da arte em estética; a concepção
do obrar humano como cultura e a fuga dos deuses, ou seja, o processo de desdivinização (Entgötterung)
(Hölderlin) (Cf. Heidegger, 1997b, p. 70).
A Universidade na era da técnica – tarefas e desafios
231
subjacentes a tais fenômenos? Para o filósofo, a resposta a tal questão
exige que a modernidade seja compreendida não somente em dentro
de seus limites, mas como resultado de algumas decisões metafísicas
que ao longo da história ocidental velaram o sentido originário do Ser
e prepararam o advento da modernidade e da era da técnica.7 O fato
é que somente desvelando o fundamento metafísico da modernidade
poderemos entender seus sintomas – ciência moderna, técnica planetária,
subjetivação da estética, a empresa cultural e a desdivinização do mundo.
Tais fenômenos colocam-nos diante do desafio de buscar alternativas à
mobilização total operada pela técnica planetária.
Houve um tempo, mais precisamente durante o breve período
de reitorado na universidade de Freiburg em 1933, em que Heidegger
teria acreditado numa certa capacidade do nazismo de criar uma
mobilização (uma terceira via entre o comunismo e o americanismo)
que harmonizasse melhor o homem às exigências da técnica moderna
(Cf. Heidegger, 1969). Tal tarefa impunha ao povo alemão o dever de
tornar-se digno de um novo começo que estaria na grandeza originária da
filosofia grega. Contudo, logo o filósofo percebeu que também esse
começo grego da filosofia estava sob o domínio da Vontade de Poder
(Nietzsche) que impera na era da técnica. Compreendeu mais ainda, que
também o nazismo seria o rosto trágico desse domínio incondicional
sobre a totalidade do ente que começa com a metafísica cartesiana e
sua descoberta do sujeito.
Mas o que dizer das novas teorias, descobertas e paradigmas que
emergem hoje em várias áreas do conhecimento científico? Será que
7
Algumas decisões tomadas entre os gregos e que repercutiram na história do Ocidente: a
decisão de pensar o Ser como causa e fundamento do ente, como realidade, como substância, como
o efetivamente dado e não como possibilidade ou fundamento sem fundo (Abgrund) de onde o
ente essencializa o seu Ser; a decisão de pensar o Ser a partir do Ente, esquecendo-se a diferença
ontológica entre Ser e ente; a decisão de fazer da Metafísica uma lógica fundada na interdependência
entre fundado e fundamento, e por ser lógica, a Metafísica é ôntica e teísta: é ôntica porque o Ser
é tomado como fundamento do ente e confundido com o Ente Supremo; é teísta, porque o ente
só poderá ser fundado se realmente fundar-se num último fundamento que exclua a possibilidade
de outra fundamentação - esse fundamento supremo é o Theós; a decisão de pensar o Ser a partir
do pensamento e da lógica e não como condição de todo dizer e pensar; e por fim, a decisão de
pensar a essência da Verdade como adequação (conformidade) e como Certeza, decisão que implica
uma via representacional ao Ser e a promoção do homem à condição de subjectum (Sujeito), isto é,
o homem como Sujeito torna-se o fundamento e a medida da verdade de suas representações e
do próprio Ser.
232
Wanderley J. Ferreira Jr.
alguma coisa efetivamente mudou na essência da técnica e no projeto
matemático de natureza da ciência moderna com a crescente substituição
do velho paradigma cartesiano-newtoniano e sua visão mecanicista e
determinista de natureza por um novo paradigma que propõe uma visão
mais holística e sistêmica da realidade?
1.1 O surgimento de novos paradigmas e a universidade
O surgimento de novos paradigmas nas ciências tem como
consequência mais imediata a queda de alguns “dogmas” e princípios
lógicos do cientificismo do século XIX, sustentado por uma visão
determinista e mecanicista da natureza. Entre esses dogmas podemos
destacar: o atomismo, o determinismo, o mecanicismo e a tese empirista de
que toda teoria que ultrapasse os limites da experiência sensível não tem
valor científico. Podemos considerar que o atomismo foi eliminado pela
desintegração das partículas subatômicas, o que revelou a impossibilidade
de se chegar, até o momento, ao elemento último da matéria. Cada vez
mais nos convencemos de que não há separação rígida entre matéria e
espírito, entre contínuo e descontínuo, entre sujeito-objeto-instrumento.
O determinismo, que conferia à Ciência o poder de uma previsão absoluta
dos fenômenos regidos por leis imutáveis e mecânicas, foi eliminado pela
Física Teórica (Quântica). No universo subatômico, dadsa as mesmas
causas/condições nem sempre se pode esperar os mesmos efeitos. As
Leis naturais tornam-se meras convenções com valor instrumental/
relativo e não podem ser aplicadas no universo subatômico no qual
impera a incerteza. Contra o paradigma cartesiano-newtoniano da ordem
a partir da ordem, opõe-se o paradigma da ordem a partir do caos, da ordem
a partir do ruído. Contra a razão analítica cartesiana, descobre-se que
o microscópico não é simples, mas complexo. Definitivamente, não há mais
lugar para se pensar na possibilidade de um Sujeito/observador puro
(Demônio laplaciano)8 que, dadas determinadas variáveis, conseguiria
8
Laplace – 1814 – “devemos encarar o estado presente do universo como o efeito de seu estado
anterior e como a causa daquele que se seguirá. Uma inteligência que, em dado momento, pudesse
ver todas as forças que animam a natureza e a situação respectiva dos seres que a constitui [...].
Abarcaria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e de seu menor
átomo [...]. Nada seria incerto para essa inteligência, e o futuro, assim como o passado, estaria
presente para ela”.
A Universidade na era da técnica – tarefas e desafios
233
prever todos os estados passados e futuros do universo. A racionalidade
científica, além de abrir mão do monopólio da verdade, assume que
talvez só poderá lidar com aproximações, probabilidades, que nada é
certo. Somos e estamos irremediavelmente entranhados num mundo
de valores e significações que torna ilusória qualquer observação pura
de um dado puro feito por um Sujeito puramente racional.
Mas como pode a ciência, cuja ambição é descobrir a ordem
oculta na natureza, solicitar agora as potências organizadoras do acaso,
do caos? O que mudou com o novo paradigma da ordem a partir do acaso,
ordem a partir do ruído? Vivemos uma revolução epistemológica, novas
teorias científicas constroem ou estabelecem uma nova inteligibilidade
do universo fundada em instrumentos conceituais como: acaso, caos,
complexidade (Edgar Morin), estruturas dissipativas (Ilya Prigogine),
geometria dos fractais, desordem organizadora, auto-organização
(Humberto Maturana), etc. A Revolução epistemológica atual atinge
tanto novos domínios de novas teorias (cibernética, neurolinguistica,
teoria dos sistemas, teoria da informação, ciências cognitivas, filosofia
da mente, inteligência artificial, etc.), quanto os campos teóricos já
estabelecidos (a física, a química, a biologia).
A nova racionalidade da ciência contemporânea representada
por Ilya Prigogine, Henri Atlan, Edgar Morin, Humberto Maturana
e outros, pretende renunciar ao determinismo clássico (newtoniano)
propondo que as leis da natureza são irreversíveis e aleatórias. As leis
naturais observadas no universo macro-cósmico, não têm validade no
universo subatômico, no qual, por exemplo, nenhum observador pode
pretender apreender, ao mesmo tempo, a posição e a velocidade de
uma partícula no espaço e no tempo (Princípio de incerteza – Werner
Heisenberg). Com o advento da noção de complexidade, por exemplo,
a ciência é obrigada a admitir que existe uma quantidade infinita de
interações e de interferências entre um número muito grande de unidades
que desafia sua capacidade de cálculo. É certo que hoje os próprios
cientistas já não se vêem mais como sujeitos puros, desencarnados e
estranhos diante de uma natureza que não passaria de um autônomo
234
Wanderley J. Ferreira Jr.
(uma máquina) submetido à leis matemáticas. O homem agora sente a
necessidade urgente de situar-se no mundo que ele mesmo descreve.
Contudo, a ciência moderna fundada no paradigma da matematização
da natureza simplesmente constatava que o homem era um estranho
no mundo que ele não apenas descrevia, mas dominava.
É certo que, desde sua origem no século XVII, a ciência moderna
procurou estabelecer uma nova forma de comunicação entre homem e
natureza – buscando sempre compreender nossa situação e a que título
participamos da evolução da natureza. Sua originalidade em relação a
outras práticas e narrativas estaria na experimentação. A ciência sempre
procurou estabelecer um diálogo experimental com seu objeto, partindo
do pressuposto de que conhecer é modificar. Ela constituiu-se, assim, como
uma teoria do real, uma teoria que intervém e transforma o real e que
provoca e intima a natureza a dizer sem ambiguidades se é conforme
ou não a uma determinada teoria ou modelo. Assim, seja qual for a
interpretação que se dê a ciência moderna, ela implica uma concepção
da natureza como algo passivo e morto, um autômato regido por leis
mecânicas universais redutíveis ao instrumental matemático. Contudo,
como já foi mencionado, os conceitos básicos que fundamentavam
a concepção clássica do mundo alicerçada no paradigma cartesianonewtoniano chegam a seus limites no âmbito de metamorfoses que hoje
atingem todas as ciências.
Entre os próprios cientistas abandonou-se a ambição de reduzir o
conjunto de processos naturais a um pequeno número de leis universais
e necessárias. Doravante, as ciências naturais descrevem um universo
fragmentado, rico de diversidades qualitativas e de surpresas potenciais.
Descobre-se que o diálogo experimental não é o sobrevôo desencantado
sobre uma mera extensão submetida ao movimento, mas a descoberta
e a exploração sempre local e eletiva de uma natureza complexa e
múltipla (Prigogine, 1984, p. 44). Não são mais as situações estáveis
e as permanências que interessam aos cientistas e filósofos, mas as
evoluções, as crises, as instabilidades. Não se quer estudar apenas o
que permanece, mas o que se transforma, as perturbações geológicas,
A Universidade na era da técnica – tarefas e desafios
235
climáticas, a gênese e a mutação das normas, etc. O fato é que a idéia de
uma natureza determinista e estéril está sendo cada vez mais abandonada
num campo de pesquisas no qual se privilegia as estruturas instáveis, a
irreversibilidade do tempo, etc...
A Ciência contemporânea afastou-se de uma idéia chave para
a ciência clássica, a idéia de que o microscópico é simples e regido por leis
matemáticas simples. A ciência deveria ir do complexo ao simples, num
processo de análise tão rigorosa quanto a demonstração de um teorema.
Postulava-se a existência do elementar, o elemento último constituinte do
todo (O Universo) e como correlato a idéia de uma Mathesis Universalis.
Sabemos agora que nos encontramos em um mundo essencialmente
aleatório, no qual a reversibilidade e o determinismo são exceções e a
irreversibilidade e a indeterminação microscópica é a regra. Não temos
mais o direito de afirmar que o único objetivo da ciência é a descoberta do
mundo do ponto de vista exterior de uma inteligência pura. Abandonase cada vez mais a ilusão de extraterritorialidade teórica e cultural da
ciência em relação a outras narrativas e racionalidades. É urgente, pois,
que a ciência se reconheça como parte de uma cultura, não tendo a
pretensão de ocupar o lugar da cultura no seio da qual se desenvolve
(Cf. Prigogine, 1984). Enfim, a natureza que a ciência procura manter
um certo diálogo não é mais aquela descrita através da idéia de tempo
homogêneo, contínuo, reversível e repetitivo. Doravante, exploramos
uma natureza re-encantada, de estruturas complexas e em desequilíbrio
e que nos fazem pensar na coexistência de tempos irredutivelmente
diferentes e articulados nos quais se entrelaçam a necessidade e o acaso.
Mas será que as ciências contemporâneas e seus novos paradigmas
representariam uma nova alternativa ao domínio planetário da técnica
e ao projeto matemático de natureza da ciência moderna?
Para Heidegger, a física atual e toda ciência contemporânea,
mesmo depois da teoria da relatividade e da teoria quântica, não
passariam de prolongamentos do projeto matemático de natureza
iniciado com a ciência moderna.9 Hoje se fala de uma teoria do caos
Heidegger sempre demonstrou um grande interesse em conhecer os problemas debatidos pelos
cientistas de seu tempo. A esse respeito pode-se conferir em Vom Wesen der menschlichten Freiheit –
Einleitung in die Philosophie, §15, algumas anotações preliminares sobre o problema da causalidade
9
236
Wanderley J. Ferreira Jr.
determinístico. Contra o paradigma cartesiano-newtoniano da ordem a
partir da ordem, vimos surgir o paradigma da ordem a partir do caos, do ruído.
Contudo, o poder desafiador da técnica continua exigindo que todas as
coisas se manifestem em sua pura disponibilidade enquanto fundos de
reserva. O caráter matemático da ciência moderna pode muito bem ser
expresso na frase de Max Planck: “é real tudo que se pode medir”. A
expressão de Planck nos leva a inferir que conhecimento seguro para a
ciência é o que pode ser medido (Heidegger, 1976, p. 13).
Assim, desde o inicio da ciência moderna até a era cibernética, o
cálculo seria o processo pelo qual a ciência assegura seu domínio sobre
o real enquanto objeto (Gegenstand). Portanto, a ciência contemporânea,
apesar de propor novos paradigmas, não abre mão do processo de
objetificação inerente ao paradigma matemático. O fato é que, no
entender de Heidegger, a física contemporânea mostra apenas uma
outra forma do ente material aparecer em sua objetidade. Mesmo a física
atômica permanece uma física, assim como a física newtoniana, ou seja,
é ciência. Nesse sentido, há algo que não muda nessas duas épocas da
física moderna: a intimação à natureza, o desafio de tudo conceber como
fundo de reserva/estoque (Bestand) (Heidegger, 1958, p. 68).
Apesar da ciência contemporânea realmente ainda ser determinada
pela fúria da técnica planetária e pelo projeto matemático de natureza
da ciência moderna, é inegável que as mudanças paradigmáticas de
nosso tempo, além de conferir um novo estatuto para o sujeito do
conhecimento, certamente repercutem na forma como o conhecimento
é produzido, assimilado e distribuído dentro da universidade. Já foi
dito que no contexto da sociedade do conhecimento não é possível
continuar a trabalhar com projetos/programas que insistam na lógica
da simples passagem de conteúdos para os alunos. Muito menos,
nas ciências. Em Die Frage nach das Ding (A pergunta pela coisa), podemos ler algumas considerações
sobre os direitos e limites do formalismo matemático nas discussões contemporâneas (Cf. p.
105). O filósofo nos apresenta análises extremamente precisas do método e dos procedimentos das
ciências modernas (Cf. Die Frage nach der Technik, p. 76 sq; Holzweg – Die Zeit des Weltbildes, p. 71-78;
Vorträge und Aufsatze, p. 69-70.). Existe ainda a tentativa de manter um certo diálogo com a física
contemporânea e alguns de seus ilustres representantes, como atestam as inúmeras referencias a
Niels Bohr (Cf. Die Frage nach das Ding, p. 51), Max Planck (Vorträge und Aufsatze, p. 58), Heisenberg
(Die Frage nach das Ding, p. 51; Vorträge und Aufsatze, p. 31, 51, 61).
A Universidade na era da técnica – tarefas e desafios
237
podemos nos contentar com a perspectiva de uma mera preparação para
o mundo do trabalho. A universidade deve sim colaborar no processo
de democratização do conhecimento, capacitando os indivíduos para
mobilizar conhecimentos de forma criativa e significativa em situações
novas no cotidiano sem, contudo, desacreditar as meta-narrativas,
as grandes sínteses teóricas sobre a história, a sociedade e o homem
(filosofia, ciência, política).
Mas que desafios se colocariam à Universidade nessa época
de emergência de novos paradigmas e denominada de sociedade do
conhecimento?
2 Universidade e sociedade do conhecimento – ilusões e
desafios
O Banco Mundial em seu relatório intitulado Promoting knowledge
And Learning for a better World, considera, numa perspectiva neoliberal,
que no surgimento do novo milênio, conhecimento e informação tornaramse fatores essenciais de desenvolvimento. O aumento do entendimento
científico e o rápido avanço das tecnologias da informação e comunicação
estão conduzindo a mudanças sem precedentes na forma de produzir,
transmitir e adquirir conhecimento. Países em desenvolvimento têm
agora a oportunidade de explorar a revolução do conhecimento com o
objetivo de reduzir a pobreza e promover o desenvolvimento sustentável
(Banco Mundial, 1999). Por seu lado, o Ministério da Ciência e
Tecnologia (MCT) num documento intitulado Sociedade da Informação
no Brasil (MCT, 2000) considera que há um paradigma emergente de
produção de bens e serviços e de organização de atividades em geral
baseado na utilização intensiva de Tecnologia da Informação e da
Comunicação.
Mas o que significa afinal Sociedade do conhecimento? O termo tornouse corrente no início dos anos 90 e refere-se ao projeto euro-americano
de planejar e executar a construção de uma infra-estrutura global da
informação e comunicação. Essa Sociedade da informação (Europa) ou
238
Wanderley J. Ferreira Jr.
Super via da informação (USA) é hoje alimentada e mantida por órgãos
estatais, empresas e redes de pesquisas de cada País (Brasil - MEC/
CNPq, Capes e Universidades). Os mais entusiastas acenam com as
possibilidades abertas pela Sociedade do conhecimento, tais como: a
constituição de uma cidadania internacional numa sociedade globalizada na
qual impere o respeito às diferenças, ao outro; uma maior democratização
de oportunidades e acesso generalizado à informação; melhor eficiência
e eficácia na qualificação da mão de obra e disponibilidade cada vez
maior de novas tecnologias. Contudo, para que essas possibilidades
abertas pela sociedade do conhecimento possam ser efetivadas, tornase necessário vencer alguns desafios: o primeiro desafio é de ordem
cultural. Como disseminar e mobilizar instituições e comunidades para os
preceitos da sociedade do conhecimento? Com relação a acessibilidade,
pode-se perguntar: como acessar e educar o maior número possível de
adultos, não importando a localização, horário, diferenças culturais e
dificuldades físicas? Em relação à qualidade de vida, pode-se indagar:
como melhorar as perspectivas de cada criança, jovem ou adulto como
indivíduo e membro de comunidades econômicas, culturais e políticas?
Por fim, podemos questionar: como assegurar a obtenção dos objetivos
anteriores com um crescimento econômico lento e outras necessidades
sociais urgentes?
Esses desafios assumem outra dimensão quando contextualizados
na sociedade brasileira que padece, quase que cronicamente, de três
formas de analfabetismo – o analfabetismo da leitura-escritura (não saber
ler e escrever); o analfabetismo sócio-cultural-político (não saber em
que tipo de sociedade se vive); o analfabetismo tecnológico (não saber
interagir com máquinas complexas). Não é por acaso que o governo
brasileiro, ainda de forma tímida, procura estabelecer os parâmetros e o
caráter daquilo que se poderia chamar de sociedade do conhecimento.
No documento já citado do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT)
intitulado Sociedade da informação no Brasil percebe-se o esforço conjunto
de profissionais em estabelecer uma espécie de programa da sociedade da
informação no qual a educação ocupe lugar de destaque: “[...] a educação
A Universidade na era da técnica – tarefas e desafios
239
é o elemento-chave para a construção de uma sociedade da informação
e condição essencial para que as pessoas e organizações estejam aptas
a lidar com o novo, a criar, e, assim, a garantir seu espaço de liberdade
e autonomia” (MCT, 2000, p. 7).
Mas que tipo de teoria pedagógica é pressuposta por essa revolução
na educação preconizada pelos defensores da chamada sociedade do
conhecimento? Quais os pressupostos antropológicos, epistemológicos,
éticos e políticos da nova sociedade da informação?
2.1 Os pressupostos pedagógicos da sociedade do conhecimento
– as pedagogias do aprender a aprender e seu caráter adaptativo
Na Sociedade do conhecimento, o fenômeno da educação em seus
processos de construção, gestão e disseminação do conhecimento tem
como pressuposto pedagógico as pedagogias do “aprender a aprender”.
Em tal sociedade repete-se como um mantra a necessidade da educação
continuada/permanente, que infelizmente visa mais adaptar o indivíduo
às necessidades do mercado, em vez de humanizá-lo no sentido de sua
maior autonomia no pensar e no agir com senso de responsabilidade
social. Podemos considerar que a sociedade do conhecimento coloca
duas exigências: 1º - melhoria da qualidade da educação fundamental
através da lógica da criação, da iniciativa, de responsabilidade social e do
exercício da cidadania; 2º - criação de condições favoráveis à educação
permanente e reconhecimento de outras formas de conhecimentos
e valores como requisitos de inovação e desenvolvimento social.
Assim, na Sociedade do conhecimento toda proposta pedagógica deve
estar balizada na ética da diversidade, ou seja, no respeito pelo outro
em todas as suas diferenças e na satisfação de suas necessidades de
sobrevivência e transcendência (arte, religião).10 Essa valorização do
particular, do multiculturalismo, do pluralismo racial e cultural, exige
10
Alain Badiou em seu livro Ética (Ed. Relumé-Dumará) também faz um diagnóstico da
fragmentação do ethos contemporâneo e desconstrói os fundamentos da ética universal dos
direitos humanos, que concebe o homem como vítima definindo o Bem, o justo, em função de
um mal também universal. Contra essa ética universal de um suposto sujeito universal, Badiou
(1990) propõe uma ética das singularidades.
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Wanderley J. Ferreira Jr.
que os educadores cada vez mais sejam conhecedores da diversidade
cultural humana, resistindo e combatendo em todas as suas formas a
tentação do etnocentrismo.
Os professores sintonizados com os imperativos da sociedade
do conhecimento devem reconhecer que o foco no processo de ensinoaprendizagem deve ser o exercício de habilidades e competências por
parte do aluno visando sua maior autonomia, seu tornar-se sujeito do
processo de aprendizagem. Esse enfoque exige a passagem de uma lógica
do ensino para uma lógica do treinamento (aprender fazendo). A idéia
implícita aqui é que as competências são construídas exercitando-se em
situações complexas e que tenham algum significado para aluno.
Mas quais seriam as principais teses das pedagogias do aprender
a aprender que servem de subsídio para a proposta pedagógica da assim
chamada sociedade do conhecimento? A primeira delas sustenta que devem ser
mais valorizadas as aprendizagens que o indivíduo realiza por si mesmo
sem a transmissão/mediação de outro no processo de aprendizado. Ora,
aprender sozinho pode até contribuir para a autonomia do indivíduo,
mas não se deve estabelecer uma hierarquia valorativa que considere o
aprender sozinho superior ao processo de aprendizagem sob a mediação
de alguém. O fenômeno da educação é algo que também pode favorecer
a autonomia intelectual e moral por meio da transmissão das formas
mais elevadas e desenvolvidas de conhecimento histórica e socialmente
existentes. A segunda tese afirma que é mais importante desenvolver
um método de aquisição, descoberta, elaboração e construção de
conhecimentos, do que aprender conhecimentos já prontos, acabados
e elaborados por outros. Ou seja, aprender o método científico é mais
importante que aprender o conhecimento científico já estabelecido. A
transmissão de conhecimentos existentes deve ser substituída, assim,
por condições de aprendizagem nas quais o aluno constrói suas próprias
verdades.
A terceira tese considera que a atividade do aluno é verdadeiramente
educativa quando impulsionada por seus interesses e necessidades. O
aluno deve buscar por si o conhecimento e nesse processo construir
A Universidade na era da técnica – tarefas e desafios
241
seu método de aprendizado. Por fim, as pedagogias do aprender a
aprender consideram que a educação deve preparar os indivíduos para
se adaptarem a uma sociedade em acelerado processo de mudança. O
aprender a aprender torna-se uma exigência na disputa por novos postos
de trabalho, predispondo o indivíduo a uma constante e infatigável
adaptação à sociedade e a seus códigos (lei, contrato, instituição).
Portanto, a sociedade do conhecimento, onde triunfa a cibernética,
ciência do controle de informações, possui uma concepção de educação
cujo objetivo básico é formar nos indivíduos as competências necessárias
visando sua melhor adaptação ao sistema. Aos educadores caberia conhecer
a realidade sem esboçar críticas a sua estrutura e contradições. Basta
saber melhor quais competências a realidade social e o deus onipotente
e onipresente do mercado exigem desse animal de trabalho.
Nessa sociedade da informação e da comunicação, denominada
de pós-moderna, pós-industrial, a Educação e a própria universidade
deveriam se organizar em torno de quatro aprendizagens fundamentais
que constituiriam verdadeiros pilares do conhecimento no século XXI:
1º - o aprender a conhecer – adquirir os instrumentos da compreensão; 2º
- o aprender a fazer – poder agir sobre o meio envolvente; 3º - o aprender
a viver junto – participar e cooperar com os outros em todas as atividades
humanas; 4º - o aprender a ser – integra as três precedentes (Délors, 2001,
p. 89-90). Esses quatro princípios são apontados pela Unesco como eixos
estruturais da educação na sociedade contemporânea. Uma educação
que deve visar o ser total do homem, procurando ensiná-lo a ser um
indivíduo com pensamentos autônomos e críticos, apto a formular os
seus próprios juízos de valor e a se responsabilizar pelos seus atos.
O paradoxal é que, apesar das pedagogias do aprender a aprender
serem fundamentadas nos princípios do aprender a conhecer, fazer,
conviver e ser, que de certa forma procuram exercitar competências e
habilidades que, em tese, conduziriam o indivíduo a um maior grau de
autonomia, contudo, no contexto da chamada sociedade do conhecimento tal
pedagogia visa antes de tudo adaptar o indivíduo às leis de mercado. Ora,
que papel a universidade teria a desempenhar em tal contexto?
242
Wanderley J. Ferreira Jr.
2.2 Uma abordagem crítica do papel da universidade na sociedade
do conhecimento
Uma abordagem realista e crítica da chamada sociedade do
conhecimento exige o estabelecimento de uma clara distinção entre
informação e conhecimento. O conhecimento implica uma gestão criativa
da informação, que pressupõe uma percepção das formas de acesso,
seleção, articulação e organização das informações. O ato de conhecer
é fundamentalmente diverso do ato de informar-se. Somente o ato de
conhecer poderia expressar um legítimo fenômeno pedagógico. A pura
e simples informação não viabiliza, por si só, qualquer competência
reflexiva capaz de transformar a experiência vivida em experiência
pensada. Somente o conhecimento pode nos capacitar para o exame
da multiplicidade de relações inerentes a cada coisa. O conhecimento,
portanto, ao contrário da mera informação, pressupõe a apreensão e
concepção de contextos globais em seu caráter multidimensional e
nas relações entre o todo e cada uma das partes. Tomando por base
essa breve distinção entre conhecimento (aprendizagem significativa)
e acúmulo de informações, podemos estabelecer alguns desafios que
se colocariam à universidade na chamada sociedade do conhecimento
(pós-industrial, pós-moderna). Entre esses desafios podemos destacar:
a exigência de criatividade, da aplicação e disseminação da informação,
da transferência e adaptação de conhecimentos a novas situações
socialmente relevantes, além de incentivar a autonomia individual e a
solidariedade.
Nesse sentido, não basta mais que cada qual acumule no começo
da vida uma determinada quantidade de conhecimentos de que se
possa abastecer indefinidamente. É necessário estar apto a aproveitar
e explorar, do começo ao fim da vida, todas as ocasiões de atualizar,
aprofundar e enriquecer esses conhecimentos, e de se adaptar a um
mundo em mudança. A competência, então, passa a ser a capacidade
de saber-mobilizar um conjunto de recursos, conhecimentos, knowhow, esquemas de avaliação e de ação, ferramentas e atitudes a fim de
A Universidade na era da técnica – tarefas e desafios
243
enfrentar com eficácia situações complexas e inéditas (Cf. Perrenoud,
1999). Contudo, tais considerações deixam sem problematizar os
próprios interesses que estão em jogo na sociedade da informação.
Muitos educadores e gestores entusiasmados com a possibilidade de
democratização do conhecimento na sociedade pós-industrial parecem
esquecer que tal sociedade não passa da expressão empresarial dos
investimentos racionalmente programados para o mundo globalizado.
Nesse sentido, oligopólios ou mega conglomerados passam a ter poderes
ilimitados para determinar a informação que pode ser (re)passada à
sociedade via universidade, mídia, etc.
Os educadores não se cansam de enfatizar os inúmeros aspectos
positivos da sociedade do conhecimento. Entre esses aspectos podemos
destacar a possibilidade da formação de um cidadão mais consciente
mediante a democratização do conhecimento e do acesso à informação.
Porém, educadores e gestores da educação sabem que a universidade na
sociedade do conhecimento depara-se com uma tarefa aparentemente
paradoxal – ao mesmo tempo em que ela quer ser inovadora e crítica, por
causa da própria vocação iconoclasta do conhecimento em seu processo
de desenvolvimento, ela se depara com as exigências do mercado por
mais especialização e padronização no conhecimento em um mundo
cada vez mais esquadrinhado, matrizado e uniformizado pelo cálculo.
O homem converte-se, aqui, em material humano que deve render o
máximo ou ser descartado como ruído que compromete a otimização da
performance do sistema. Nesse contexto, a universidade passa a ter como
modelo de funcionamento a empresa, como condição de funcionamento
as leis de mercado e como resultado a formação de incompetentes sociais.
Contudo, percebem-se algumas tentativas de se formular um novo
papel para a universidade na formação daquilo que se considera os três
tipos de racionalidades a serem educadas na sociedade pós-industrial,
na qual cada vez mais ocorrerá integração entre trabalho, estudo e lazer
(Cf. Masi, 2000).
O que se constata hoje é que a universidade não pode mais se
contentar em preparar mão de obra para o mercado de trabalho, ela
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Wanderley J. Ferreira Jr.
precisa estar atenta aos três tipos de racionalidades que o homem atual
deve ser capaz de usar: a racionalidade cognitivo-instrumental das
ciências; a racionalidade moral-prática (direito e ética) e a racionalidade
estético-expressiva (artes e literatura). Sabemos que, desde seu início,
a Universidade constituiu-se em sede privilegiada da unificação dos
saberes produzidos por esses três tipos de racionalidades. As ciências
da natureza apropriaram-se da racionalidade cognitivo-instrumental e as
humanidades distribuíram-se pelas outras duas racionalidades. Contudo,
progressivamente a idéia da unidade do saber foi sendo substituída pela
da hegemonia da racionalidade cognitivo-instrumental e, portanto, das
ciências da natureza e seu “projeto matemático de natureza” (Heidegger).
Essa hegemonia das ciências naturais, ou seja, da razão instrumental,
representou a consolidação do paradigma cartesiano-newtoniano e sua
visão determinista e mecanicista da natureza. Portanto, a crise que hoje
abala esse modelo de explicação, propondo uma nova percepção de
uma nova realidade, não pode deixar de repercutir dentro da própria
universidade e na forma como é produzido, assimilado, armazenado e
distribuído o conhecimento.
O fato é que a universidade atual depara-se com o desafio de
promover a transformação de seus processos de investigação, de ensino
e de extensão, na tentativa de estabelecer ou resgatar a importância
da racionalidade moral-prática e da racionalidade estético-expressiva
na formação de um homem integral. Torna-se necessário e urgente
que as humanidades e a própria reflexão filosófica sejam incorporadas
à formação estritamente técnica de nossas universidades. Isto não
implica a marginalização da racionalidade cognitivo-instrumental/
técnico-científica das ciências, mas a recusa da posição dominante e
dos efeitos nefastos de um tipo de racionalidade que, levada a seus
extremos, culminou com o extermínio industrial de pessoas nos campos
de concentração nazistas.
Ora, tornou-se lugar comum admitir que a ciência moderna
(a Física matemática de Galileu e Newton) se constituiu contra o
senso-comum, ao construir modelos matemáticos de uma realidade
A Universidade na era da técnica – tarefas e desafios
245
que foi reduzida às relações de cálculos matemáticas. Essa ruptura
da ciência com os testemunhos dos sentidos, com o mundo da vida
(Lebenswelt) (Husserl), possibilitou um assombroso desenvolvimento
técnico-científico, mas retirou do homem sua capacidade de participar
na construção de regras práticas para viver sabiamente em um
mundo no qual as questões do valor e do sentido da experiência
são desprezadas por um pensamento que apenas planifica e calcula.
Torna-se necessário refletir sobre essa ruptura entre ciência e mundo
da vida, o mundo do sentido. É preciso saber beneficiar-se do mundo
desencantado criado pelo pensamento calculador (Ciência), sem
renunciar à exigência de romper com esse processo de objetificação
avassaladora mediante o estabelecimento de novas formas de
experiências não objetificantes que nos aproximem mais de uma
vivência originária (Urleben) das próprias coisas. A primeira condição
para se iniciar essa mudança em nossa forma de ser e estar no mundo
consiste em promover o reconhecimento de outras formas de saber
e narrativas soterradas ou marginalizadas pelo discurso demonstrável
e controlável da ciência.
O que está claro até o momento é que a sociedade do
conhecimento não tem o objetivo de generalizar o conhecimento para
todos os indivíduos e países do globo, mas selecionar o conhecimento
que pode ou deve ser adquirido pelos indivíduos de países “em
desenvolvimento”. Nessa sociedade da informação, a maioria dos cidadãos,
sem luta, sem oposição e sem contestação, pode ser incluída, uma vez
que se rouba o direito deles pensarem e falarem com significação.
Diante desse quadro torna-se urgente a questão da verdadeira missão
da educação e da universidade na sociedade do conhecimento, a época
do domínio planetário da técnica. O que teriam a nos dizer sobre tal
questão pensadores como Edgar Morin e Martin Heidegger?
Em sua obra Educar na era planetária (Morin, 2002), Edgar Morin
sustenta que a missão da educação na Era planetária seria criar as
condições de possibilidade para a emergência de uma sociedade-mundo.
Para tanto seria preciso formar cidadãos protagonistas, conscientes
246
Wanderley J. Ferreira Jr.
e criticamente comprometidos com a construção de uma civilização
planetária. Na perspectiva de Morin, é plenamente possível e desejável
que a universidade realize sua missão de humanizar o homem na
era planetária, desde que incorpore o que o autor chamou de eixos
estratégico-diretores, que têm a finalidade de organizar a informação e a
dispersão dos conhecimentos de nosso meio ambiente para a elaboração
de uma mundologia cotidiana. Um princípio estratégico fundamental é
compreender e sustentar nossas finalidades terrestres, ou seja, fortalecer as
atitudes e as aptidões dos homens para a sobrevivência da espécie humana
e para a evolução da hominização (Morin, 2002, p. 50).
Nesse sentido, o primeiro eixo-estratégico diretor é o que Morin
chama de conservador/revolucionante. Torna-se necessário promover
ações conservadoras que fortaleçam a capacidade de sobrevivência da
humanidade e ações revolucionárias inscritas na continuação do progresso
da hominização. Mediante a ação revolucionante, procura-se criar as
condições nas quais a humanidade se aperfeiçoe como tal numa
sociedade-mundo. Um segundo eixo estratégico diretor consiste em
progredir resistindo à barbárie. Deve-se sempre estar atento contra o
retorno persistente dos desdobramentos da barbárie ou qualquer forma
de ameaça à dignidade humana. Hoje estamos sujeitos a um tipo de
barbárie que surge da aliança da antiga barbárie de violência, ódio e
dominação, com as forças modernas tecnoburocráticas. A resistência à
barbárie é ao mesmo tempo condição conservadora da sobrevivência
da humanidade e condição revolucionante que permite o progresso da
hominização (Cf. Morin, 2002).
Como terceiro eixo estratégico diretor, Morin propõe a
problematização da noção de desenvolvimento e subdesenvolvimento.
O século XXI da sociedade da informação exige a problematização do
conceito de desenvolvimento. E certamente a educação pode ajudar a
superar o reducionismo econômico que enfatiza apenas o crescimento
material (econômico) como critério de desenvolvimento. O fato é que
a idéia de progresso é multidimensional e ultrapassa os esquemas, não
só econômicos, mas também da civilização e da cultura ocidental que
A Universidade na era da técnica – tarefas e desafios
247
pretende fixar seu sentido e suas normas (Morin, 2002, p. 68). Um
autêntico progresso exige a ampliação das autonomias individuais e o
crescimento das participações comunitárias (locais/planetárias). Nessa
tentativa de repensar a noção de desenvolvimento veremos que o
subdesenvolvimento dos países desenvolvidos cresce precisamente com
o desenvolvimento tecnoeconômico dessas mesmas nações. Pode-se
falar então, com Morin, de um subdesenvolvimento dos desenvolvidos: um
subdesenvolvimento moral, psíquico e intelectual. Há uma miséria
que não diminui com o decréscimo da miséria fisiológica e material,
mas que se acrescenta com a abundância e o excesso. Por outro lado,
a idéia de subdesenvolvimento ignora as eventuais virtudes e riquezas
das culturas milenares dos povos chamados subdesenvolvidos (Morin,
2002, p. 69-70).
Outro eixo estratégico, apontado por Morin, exige a tarefa de
“civilizar a civilização” dando prosseguimento à hominização. O sonho
da expansão pessoal de cada um, da supressão de qualquer forma de
exploração e dominação, da justa divisão dos bens, da solidariedade efetiva
entre todos, da felicidade generalizada levou ao uso de meios bárbaros
que arruinaram o processo civilizatório. Doravante, criar condições para
a civilização de uma sociedade-mundo implica em reforçar a associação
e cooperação geopolítica mediante redes associativas que criem e
alimentem uma consciência cívica planetária (Cf. Morin, 2002).
Heidegger é menos otimista que Edgar Morrin ao propor as
possíveis alternativas que nos restam em um mundo desertificado pelo
cálculo, e no qual o homem vagueia como um desterrado na condição
de primeira e fundamental matéria prima. O filósofo procura nos
mostrar que o pensamento calculador, que impera na era da técnica,
prende-se unicamente ao cálculo, à organização e planificação das
coisas transformadas em objetos. O pensamento calculador não admite
outra coisa que o enumerável. Cada coisa é apenas aquilo que se pode
enumerar. Esse tipo de pensamento não é capaz de suspeitar que todo
o calculável do cálculo já é num todo, cuja incalculabilidade torna-se
manifesta. Heidegger pergunta se o caráter de revelado daquilo que
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Wanderley J. Ferreira Jr.
é esgota-se na desmonstrabilidade? A insistência da ciência sobre o
demonstrável não fecharia o caminho para aquilo que realmente é?
Assim, o que estaria em jogo em nossa época seria a possibilidade da
superação do caráter técnico-científico como única medida da habitação
e da ação do homem no mundo (Cf. Heidegger, 1979b, p. 80).
Como não poderia deixar de ser, a universidade, seja ela pública
ou privada, colabora hoje nessa mobilização planetária que cria o mundo
uniforme do cálculo, na medida em que se contenta, ainda que de forma
deficiente, em preparar uma mão de obra bem treinada e qualificada
que satisfaça as exigências desse deus todo-poderoso chamado mercado.
Para Heidegger, o que está em jogo em nossa época técnico-científica é
a própria possibilidade do des-velamento (alétheia) do Ser na abertura
instaurada pela existência finita que é o homem. Assim, o pensamento
fundamental seria aquele cujos pensamentos não apenas calculam, mas
são determinados pelo outro do ente (que é o nada e o próprio Ser
que se comungam para além de todo ente disponível ao cálculo). Em
vez de calcular com o ente sobre o ente, este pensamento se dissipa no
ser pela verdade do ser (Heidegger, 1979b, p. 50). Mas o fato é que o
homem tornou-se Sujeito, e tudo no mundo tornou-se objeto disponível
para seus cálculos. Sua vontade é um sujeitar todas as coisas ao seu
domínio. A relação do homem com os outros seres é uma relação de
dominação. Progresso, aqui, significa uma crescente dominação sobre o
mundo natural e humano, mediante o poder provocador da Técnica. A
ciência baniu o mistério de toda presença e de todas as distâncias, mas
nem por isso nos colocou mais próximos às coisas e de nós mesmos
(Heidegger, 1979b, p. 49). Nesse sentido, observa Heidegger, desde o
início do Século XX a existência começou a deslizar para um mundo
sem profundidade. Todas as coisas escorregam para um mesmo nível,
para uma superfície. A dimensão dominante tornou-se a da extensão
e do número. Capacidade quer dizer, aqui, o exercício de uma rotina,
suscetível de ser aprendida por todos, conforme certo esforço. Já em
1935, Heidegger observava que essa planificação atinge sua intensificação
na Rússia e Estados Unidos, onde vigora o equivalente que destrói toda
A Universidade na era da técnica – tarefas e desafios
249
hierarquia e todo mundo espiritual. Essa avalanche uniformizadora
da técnica manifesta-se na forma de um desvirtuamento do espírito.
Decisiva é a transformação do Espírito em Inteligência instrumental,
ou seja, numa mera habilidade ou perícia no exame, no cálculo e na
avaliação das coisas, com o objetivo de transformá-las, reproduzi-las e
distribuí-las em massa (Heidegger, 1969, p. 71-72)
Quando se consuma a desfiguração do Espírito numa Inteligência
instrumental, assistimos à disposição das potências do Espírito em regiões
(a Arte, a Poesia, o Estado, a Religião, etc.). O mundo do Espírito
degrada-se em cultura, onde cada região torna-se um campo específico
de saber. A Ciência emerge dessa degradação do mundo do Espírito
em Inteligência instrumental, fragmentando-se numa multiplicidade
de disciplinas que estão a serviço das profissões (Heidegger, 1969).
Assim, o espírito ao degenerar-se nessa inteligência instrumental, que é
“ensinada” em nossas universidades, faz com que os rios, montanhas,
florestas, mares, o solo, o ar e, particularmente, o homem, sejam
convertidos em objetos disponíveis ao projeto de conquista e exploração
incondicionada da técnica planetária.
Conclusão
Apesar da revolução epistemológica que vivemos nesse início de
milênio, com a emergência de novos paradigmas no campo das ciências,
em nossas universidades prevalece ainda a valorização extrema, quase
que obsessiva, da eficácia e eficiência no funcionamento dos dispositivos
tecnológicos, entre os quais se encontraria a própria universidade.
A busca desenfreada por mais eficácia, eficiência e produtividade,
exige a prática sistemática da competição com os outros e consigo
mesmo. Nesse sentido, a eficácia incondicionada e a competição
tornam-se critérios últimos de hierarquização, ordenação e avaliação
dos diversos dispositivos tecnológicos, entre eles a universidade e o
próprio homem. O mais inquietante é que não está em nossas mãos
mudar tal situação. Nossas formas de pensar, falar e agir enquanto
250
Wanderley J. Ferreira Jr.
gestores, professores e alunos podem apenas corresponder e obedecer
aos imperativos impostos pelo domínio planetário da técnica. O fato é
que a missão tecnocrática assumida pelas universidades atuais, que se
contentam em preparar mão de obra para o mercado de trabalho, não
é responsabilidade de nenhum sujeito ou instituição determinada, não é
fruto de uma decisão arbitrária de algum tecnocrata. Numa perspectiva
heideggeriana, a universidade e todas as dimensões da existência humana
estão hoje sujeitas à manifestação época do próprio ser no domínio
planetário da técnica.
O que seria necessário fazer, dentro das limitações impostas por
nossa condição de “funcionários da técnica”, para que a universidade
volte a constituir-se em genuíno e autêntico poder espiritual? Como
fazer da universidade a mais alta escola do povo apta a formar homens a
altura das tarefas e desafios de nosso tempo? A questão da fragmentação
da universidade em departamentos, por exemplo, reflexo da inteligência
cega (Morin) e do predomínio do discurso da competência, sempre era
questionada por Heidegger quando o pensador se interrogava sobre
a missão da universidade. Em Que é Metafísica? (Was ist Metaphysik), o
filósofo considera que:
[...] os domínios das ciências estão muito distantes entre si.
O modo de tratar seus objetos é radicalmente diferente. Essa
dispersa multiplicidade de disciplinas se mantém, contudo, unida
graças tão somente à organização técnica das universidades e
faculdades, e conserva uma significação pela finalidade prática
das especialidades. Ao contrário, o enraizamento das ciências em
seu fundamento essencial se perdeu por completo (Heidegger,
1979b, p. 2).
Heidegger sugere que a superação do desarraigo e fragmentação
das ciências de forma que permita sua maior aproximação com o
mundo da vida (Lebenswelt), exige um retorno à filosofia e sua questão
guia – a questão do sentido do ser nos limites do tempo. Somente assim seria
possível talvez determinar o lugar de inserção de cada ciência em seu
fundamento essencial, o que permitiria um diálogo entre as diversas áreas
A Universidade na era da técnica – tarefas e desafios
251
do conhecimento baseado na experiência primordial do verdadeiro ser
das coisas e no caráter multidimensional do ser humano, enquanto um
ser simplesmente aí lançado no mundo. O fato é que a universidade, em
seus cursos e pesquisas, nunca chegou a incorporar satisfatoriamente
essa vivência originária e pré-reflexiva do mundo da vida, nem a
complexidade inerente ao homem. Isso exigiria uma outra forma de
experiência do pensar e do falar fora dos cânones estabelecidos pela
racionalidade técnico-científica. Infelizmente, a universidade hoje, refém
do mercado, está impossibilitada de buscar um equilíbrio no uso do
cálculo e da planificação em seus modelos de gestão, em suas pesquisas
e nos conteúdos programáticos das diversas disciplinas. O pensamento
calculador erige-se como a única maneira de pensar válida, como
conseqüência, o conhecimento científico, com seu método experimental/
matemático, torna-se o único digno de ser ensinado, em detrimento de
outras formas de narrativas e experiências (arte, religião, filosofia, etc.)
fundamentais para o processo de humanização do homem.
Diante desse cenário aparentemente estéril e inóspito do mundo
uniforme do cálculo, Heidegger nos aconselha a serenidade (Gelassenheit)
– uma atitude que nos faz inserir e utilizar de forma conveniente os
dispositivos tecnológicos, evitando que sejamos triturados e devastados
por eles. Portanto, não devemos nos deixar levar por nenhum ativismo
ou qualquer espécie de revolta diante da técnica, sob pena de cair na
armadilha do pensamento calculador. Trata-se, para Heidegger, não
de salvar o homem ou evitar o apocalipse nuclear, mas de salvar o Ser
daquilo que unicamente pode pô-lo em perigo, e que é ele próprio em
sua implacável manifestação no reino planetário da Técnica. Nenhuma
vontade humana, individual ou coletiva, poderá controlar esse destino do
Ser na era da técnica. Então, como preparar novamente o mundo para
que o homem possa novamente nele construir sua casa e morar?
A questão é: estaríamos nós, filhos de uma época uniformizada
pelo cálculo, aptos a resgatar uma relação mais originária com os
outros e com as coisas? Vale a pena vender tão caro nossa liberdade
por todo esse aparato de segurança e um certo conforto material, que
252
Wanderley J. Ferreira Jr.
só nos tornam mais indolentes e alienados em relação às nossas mais
autênticas necessidades e capacidades? O fato é que no crepúsculo da
Era atômica, não é mais uma terra sobre a qual o homem vive. O pior é
que a filosofia não pode produzir um efeito imediato, fazendo mudar o
estado presente do mundo. Resta-nos preparar, mediante o pensamento
e a poesia, uma disponibilidade para a aparição do sagrado ou para sua
ausência em nossa decadência. Em último caso, cabe a nós decidir se
da noite desse tempo de penúria e indigência surgirá uma nova aurora
do pensamento do Ser. Enquanto isso, o “deserto cresce...”. E errando por
uma terra devastada e uniformizada pelo cálculo, o homem continua
surdo ao canto do poeta – Lá onde brota o perigo nasce também o que salva
(CF. Hölderlin, Patmos).
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2. Da essência da verdade. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis:
Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007, 312 p.
(Coleção Pensamento Humano).
Rodrigo Ribeiro Alves Neto*
A preparação da edição completa da obra de Martin Heidegger
(1889-1976), estimada em mais de cem volumes, foi iniciada em seus
últimos anos de vida, mas sua publicação permanece ainda hoje inacabada.
Traduzida em velocidade acelerada na França, nos EUA, na Espanha, na
Itália e no Japão, a obra heideggeriana, no Brasil, vem sendo vertida para
o português em ritmo constante, desde a década de 70. A mais recente
contribuição para esse empreendimento reside na tradução da edição
intitulada Ser e Verdade, na qual se encontram reunidas duas preleções
pronunciadas por Heidegger na Universidade de Freiburg, quais sejam:
“A questão fundamental da filosofia” e “Da essência da verdade”.
A primeira preleção, do semestre de verão de 1933, apresenta o
obstinado esforço do autor em determinar a filosofia como “Metafísica”,
a fim de pensar uma possível unidade essencial no percurso histórico
da tradição ocidental de pensamento. Não se trata de uma disciplina ao
lado da “Ética” ou da “Lógica” no corpo doutrinário da Filosofia, menos
ainda uma ciência, um saber absoluto ou uma visão de mundo. O termo
“Metafísica” nomeia o núcleo decisivo de toda a filosofia e o fundamento
da história ocidental de pensamento em sua totalidade essencial. Com a
Metafísica, não se começou meramente uma nova época ou uma outra
etapa da nossa história. Interrogando o real – o mundo, o homem, Deus
– sob o ponto de vista da sua verdade, a Metafísica inaugurou a própria
história das possibilidades existenciais da humanidade ocidental em todas
as suas relações com o ente na totalidade. Desde a Antigüidade Grega,
Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Professor
substituto no Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da
UFRJ. E-mail: [email protected]
*
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação
Vitória da Conquista
Ano VI
n. 10
p. 257-262
2008
258
Rodrigo Ribeiro Alves Neto
onde, pela primeira vez, a filosofia se perguntou pela entidade dos entes
em geral, a abertura do real na qual o homem se encontra continuamente,
instaura-se a partir de uma interpretação do ser pela qual o ente em seu
todo se abre na direção de sua verdade. A Metafísica sempre buscou
fundar, a partir de uma posição face ao ser, a verdade do ente. Assim, a
história da Metafísica não significa a história das múltiplas e desconexas
concepções sobre o ser, mas a apropriação que o homem faz do ser e
que o ser faz do homem em seus envios históricos. A Metafísica está,
de certa maneira, na certidão de nascimento de nossa própria história,
pois, segundo Heidegger, nela se instaura a abertura do ente na totalidade
assim como uma decisão sobre a sua verdade.
Portanto, a filosofia não consiste em um questionamento que
se passa dentro da “cabeça” de alguns eruditos ou nefelibatas, pois
nos modos pelos quais o ente é pensado e determinado em função do
seu ser, a realidade é desvelada e endereçada aos homens nas “raras,
simples e capitais decisões da história”. Heidegger assume o desafio
de recuperar o vigor de instauração histórica da filosofia, esmaecido
quando ela se torna, inevitavelmente, uma banalidade da existência,
ou seja, um suposto conhecimento acabado passível de servir como
instrumento de formação e atividades escolásticas. Para tanto, é preciso
esclarecer a própria formação histórica do termo “Metafísica”, isto
é, o modo como a filosofia grega chega a predominar no Ocidente
não a partir do seu princípio originário, mas a partir do fim de seu
princípio, com as obras de Platão e Aristóteles, que em Hegel atingiu
o seu grandioso e definitivo acabamento. A consumação do grande
princípio do pensamento grego é, contudo, um “fim principiativo”,
pois se tornou normativa e predominante para os tempos posteriores,
sendo transmitida, sobretudo, pelas interpretações do cristianismo que
se mantiveram vigentes na modernidade européia (Descartes e Kant)
e na metafísica do Idealismo Alemão – sendo especialmente analisado
nessa preleção o pensamento lógico-matemático dos grandes sistemas
metafísicos do século XVIII (Wolff, Baumgarten).
O propósito de Heidegger é, a partir desse percurso, estabelecer
uma discussão com a obra de Hegel, pois nela a Metafísica reúne todas
Ser e Verdade
259
as forças essenciais da história do pensamento ocidental. Em Hegel, a
Metafísica atingiu seu ponto mais alto e está, a partir dele, completada.
Até Hegel, encontra-se a história da plenificação da metafísica e, depois
dele, no século XIX, o projeto que visa à sua inversão a partir das obras
de Kierkegaard e, sobretudo, Nietzsche. Heidegger pretende esclarecer
em que medida a Metafísica entrou, no século XX, no ápice de seu
processo de consumação, reivindicando uma reflexão cuja tarefa será
reconquistar a tradição em sua essência impensada para o futuro. Não se
deve, portanto, interpretar a Metafísica a partir da tradição, mas pensar a
“Metafísica” através de uma compreensão originária do que se apresenta
como impensado em sua história. Para isso, Heidegger se debruça sobre
os grandes textos da tradição, mas para trazer à linguagem aquilo que
neles permaneceu esquecido.
Essa preleção é relevante para observarmos o caráter ambíguo
do termo “Metafísica” na obra de Heidegger até os anos 30. De Ser e
Tempo até a preleção de 1935, intitulada “Introdução à Metafísica”, o
autor tentará efetuar uma fundação crítica da Metafísica, ou seja, dar
um novo conteúdo à palavra “Metafísica” a partir de uma outra posição
face ao ser, redescoberto em seu sentido originário: o tempo. Porém,
mais tardiamente, o termo “Metafísica” será definitivamente identificado
com a tradição e contraposto aos termos “pensamento”, “pensamento
essencial”, “outro pensamento” ou “pensamento do ser”. A Metafísica
pensa o ser sob a forma da substancialidade e da subjetividade sem,
contudo, interrogar-se pelo ser em vista daquilo que o determina como
tal. A Metafísica, desde o começo até sua plenitude, busca somente fundar
a verdade do ente em seu desvelamento, mantendo fora de questão o
ser ele mesmo e naquilo que lhe é próprio: o velamento. O projeto
condutor da Metafísica, onde se movimenta a história do Ocidente, é
trazer à enunciação (lógos) o ente em seu ser (ontos), tornando manifesta
a sua entidade a partir de sua causa suprema e do seu fundamento mais
elevado: Deus (théos). Deste modo, trata-se de uma onto-teo-logia, isto é,
da busca pela enunciação lógico-categorial da entidade do ente que, por
sua vez, determina-se a partir do seu fundamento transcendente. Com
260
Rodrigo Ribeiro Alves Neto
o fim da Metafísica, oculta-se um outro começo para o pensamento
a partir de um outro horizonte de questionamento do ser em sua
diferença referente ao ente. Assim, Heidegger considera que a filosofia
se estrutura em torno de uma dinâmica histórica entre o passado e o
futuro que insere a época presente no desafio de um fim e no apelo de
uma transformação. É por isso que uma discussão com a obra hegeliana
nos fornece o senso da nossa atualidade histórica e uma apreensão do
núcleo no qual se reúne o todo da história da Metafísica.
A segunda preleção, do semestre de inverno de 1933/1934, repete
o texto várias vezes alterado da preleção pronunciada no semestre de
inverno de 1931/1932 com o mesmo título. Após uma introdução
sobre a questão da essência da verdade, Heidegger divide a preleção em
duas partes: a primeira parte consiste em uma interpretação da célebre
“Alegoria da caverna”, narrada por Platão no diálogo “República”
(Politéia), e a segunda parte apresenta uma reflexão sobre o diálogo
Teeteto visando à questão sobre a relação entre verdade e não-verdade
bem como entre episteme e dóxa.
A tese heideggeriana concebe que o conceito de verdade da
Metafísica só tem olhos para a verdade da essência e nunca para a essência
da verdade. Quando pensamos na palavra “verdade”, concebemos
imediatamente a forma derivada da verdade do conhecimento e da
enunciação. Heidegger, porém, pensa a verdade como desvelamento
que, por sua vez, é algo mais originário que a verdade no sentido da
veritas. Alétheia é a palavra grega pronunciada na origem do pensamento
ocidental e que nos dá o aceno para a essência impensada da verdade. A
verdade enquanto veritas se inscreve no empenho por presentificar no
pensar e no dizer aquilo que o ente é tal como é. Trata-se de garantir a
adequação (adaequatio) entre o pensar e o ente tal como é, mas a “verdade
predicativa” é sempre derivada, pois para que o ente possa se revelar
na proposição tal como ele é, é preciso, em primeiro lugar, que ele
tenha se manifestado naquilo que é em si mesmo e antes de qualquer
determinação proposicional. É somente porque o ente já sempre se abriu
como presente na livre dimensão do desvelamento que ele se presta à
Ser e Verdade
261
determinação predicativa. Só na dimensão prévia desse desvelamento em
que o ente se faz presente como tal que é possível instaurar uma referência
com ele tal como é. O fenômeno originário da verdade só é possível com
base na abertura (Da) do ser (sein) na qual o homem descobre a si mesmo
sempre já lançado como ser-no-mundo. Ser verdadeiro é, então, deixar e
fazer ver o ente em seu estar aberto, retirando-o do velamento. Assim, a
verdade só é possível com base na abertura do ser, e o homem é a estância
que o ser carece para sua abertura. O fenômeno originário da verdade
pertence à constituição ontológica do homem (Dasein), pois descobrir
o ente em seu desvelamento é constitutivo de sua abertura factual em
um mundo específico no qual ele está lançado. Por esta via, a verdade é
originariamente um destino da finitude do homem e não tem nada a ver
com a sobriedade e a indiferença de proposições demonstradas.
Segundo Heidegger, a metafísica platônica expressa o combate
fundamental entre essas duas dimensões da verdade (predicativa e
manifestativa). E é na “Alegoria da caverna”, com seus quatro estágios
de libertação e retorno da caverna, que esse combate se expressa de
modo mais agudo e elevado. É só no retorno daquele que se liberta que
se mostra efetivamente a situação do homem na caverna subterrânea
diante das sombras projetadas ao fundo. Somente ao libertado aparece
o modo como tal circunstância não é contingente e, muito menos,
imputável ao mero engano, pois ela nasce de um comportamento do
homem para com a verdade que, desde “Ser e Tempo”, Heidegger
denominou como “decadência” ou “dissimulação”. Trata-se de um
modo de encobrimento ou não-verdade. Na caverna, o desvelamento não
desaparece, mas desenraiza-se ou deturpa-se, pois se mostra no modo
da aparência. Esse encobrimento reside no modo de ser com os outros
e na ocupação cotidiana do homem com este ou aquele ente em seu
caráter revelado. Nesse processo de libertação, o libertado vê que estar
na verdade e ser o lugar (Da) da manifestação do ser (Sein) não significa
ser um ente presente-subsistente, mas estar inserido numa dinâmica
de apropriação de si mesmo, de ter que vir a ser, a cada vez, o poderser que se é, precisando sempre e a cada vez liberar as suas próprias
possibilidades existenciais.
262
Rodrigo Ribeiro Alves Neto
O mais decisivo na leitura dessas preleções é não perder de vista
que, nessa tarefa de superação crítica da Metafísica e nessa tensão entre
encobrimento e desencobrimento, constitui-se a dinâmica da própria
História. A luta entre verdade e não verdade acontece na e como história,
reivindicando o espírito de um povo histórico a se decidir pela verdade.
Em ambas as preleções, Heidegger está se dirigindo sempre ao povo
alemão em sua “missão político-espiritual” de fundação de um novo
Estado. De abril de 1933 a abril de 1934, o filósofo esteve no cargo de
reitor da Universidade de Freiburg, mas o que está em jogo aqui é muito
mais que uma questão biográfica ou o julgamento de um homem. Essas
preleções estão eivadas não de um mero “jargão” militante e glorificante
passível de depuração, mas sim de uma complexa, instigante e perigosa
imbricação entre filosofia, política e história: uma questão sempre
“digna de ser pensada”, para usar uma expressão heideggeriana. Ainda
que sem identificação com o racismo e a ideologia de extrema-direita
que impregnará o nazismo a partir de 1934, a sanha revolucionária
do movimento nacional-socialista promoveu em Heidegger, porque
não dizer, uma embriaguez política e filosófica, que o levou a dizer na
época: “Queremos tornar a filosofia realidade”, exigindo que o filósofo
“domine o seu tempo”, engajando-se na tarefa de intervir e, ao seu modo,
“colaborar na história”. Heidegger acreditou que a compreensão da
essência da verdade assumiria o papel de fundamento do acontecimento
político, fazendo a política ser conduzida pela filosofia. O autor parece se
posicionar politicamente em nome da filosofia e, justamente por isso, serão
sempre dignas de reflexão as implicações filosóficas do seu engajamento.
Não é aceitável a posterior auto-justificação de inexperiência política que
o teria levado a, como diz Safranski, “sonhar politicamente” e se desiludir.
Seria preciso confessar ter sonhado também filosoficamente, admitindo não
somente os problemas e os equívocos implicados em seu diagnóstico
histórico-metafísico da situação, mas também em sua concepção sobre
a relação entre filosofia, política e história.
Nos ventos da ambigüidade:
Heidegger leitor de Nietzsche
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche II. Tradução de Marco Antônio Casanova.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. 2v.
Pedro Duarte de Andrade*
Martin Heidegger manteve-se, por toda sua vida, exposto àquilo
que Sócrates, na origem da filosofia, chamava de vento do pensamento.
Teve a força de se preservar flexível como aquelas árvores que, situadas
no litoral, sofrem as investidas imprevisíveis do clima, com ventanias
vindas de alto-mar que puxam seu tronco e seus galhos em direções
as mais estranhas. Maleável como elas, mas também firme como elas,
Heidegger fincou as raízes de seu pensar no solo do século que viveu
com a mesma intensidade que filosofou. É certo que, para ele, as duas
coisas eram uma só.
Testemunho cabal disso é sua longa e infatigável confrontação
com Nietzsche. E, sorte nossa, o esforço com maior fôlego de tal
confrontação tornou-se acessível, em 2007, ao leitor brasileiro no seu
idioma natal, graças à tradução para o português do professor Marco
Antônio Casanova dos dois volumes que compõem o famoso Nietzsche,
de Heidegger. Nos últimos anos da década de 1930, Heidegger dedicouse, com afinco, à leitura de Nietzsche, que foi objeto de suas preleções
universitárias, cujo conteúdo ocupa a maior parte desses volumes,
embora haja neles também ensaios dos primeiros anos da década de 1940.
Foi em 1961, contudo, que Heidegger reuniu e organizou o material tal
como o encontramos hoje.
* Doutorando em Filosofia na PUC-Rio. Professor da Pós-Graduação lato sensu (Especialização)
em Arte e Filosofia, na mesma universidade. E-mail: [email protected]
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação
Vitória da Conquista
Ano VI
n. 10
p. 263-269
2008
264
Pedro Duarte de Andrade
De lá para cá, muita polêmica envolveu esses escritos. Embora, em
geral, seja reconhecido certo pioneirismo no peso filosófico que Heidegger
reconheceu em Nietzsche, acusou-se ele, não raro, de fazê-lo sob o preço
de sua “heideggerianização”. Em outras vezes, reclamou-se, no mesmo
tom, da excessiva unificação, por Heidegger, de temas nietzschianos que
foram expostos normalmente em aforismos ou faziam parte de material
póstumo. No célebre texto “A metafísica de Nietzsche”1, por exemplo,
são articulados os cinco elementos que, para Heidegger, eram centrais na
filosofia nietzschiana: vontade de poder, niilismo, eterno retorno, alémdo-homem e justiça (sendo este último o mais surpreendente).
São reclamações curiosas, pois protestar que quando um pensador
lê outro não se mantém fiel a ele é como protestar que um filme adaptado
de um livro não permaneceu preso à sua letra. Ninguém, para interpretar
um autor ou para adaptar uma obra sua, rasga sequer uma folha do
original. Em outras palavras: quem quiser ler Nietzsche tal e qual ele
é, se é que alguém que lê Nietzsche acha mesmo que tal coisa existe,
basta ir na livraria mais próxima e lê-lo. Ele continua lá. Restaria ainda,
de todo jeito, perguntar se, caso Nietzsche saia da leitura de Heidegger
um pouco “heideggeriano”, se Heidegger, por sua vez, não sai um
pouco nietzschiano.
Ler o Nietzsche de Heidegger supõe o interesse tanto por um
quanto por outro. Heidegger sabe disso. Por isso, afirma que sua
leitura de Nietzsche obedece, ainda, à mesma tentativa que, em 1927,
caracterizava sua primeira grande obra, Ser e Tempo. Mais do que isso,
importa que Heidegger está convicto, de modo geral, que “todo pensador
ultrapassa o limite interno de cada pensador”2. É isso que nos permite
entender o fundamento do esclarecimento que lemos adiante.
Trabalhamos de maneira entrelaçada apresentação e interpretação,
de modo que não fica claro por toda parte imediatamente
aquilo que é deduzido das palavras de Nietzsche e aquilo que é
acrescentado a elas. A única coisa necessária a toda interpretação
Heidegger, Martin. A metafísica de Nietzsche. In: ______. Nietsche II. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2007.
2
Heidegger, op. cit., p. 374.
1
Nos ventos da ambigüidade: Heidegger leitor de Nietzsche
265
não é certamente deduzir a coisa mesma. Ao contrário, sem
insistir nisso, toda interpretação também precisa poder contribuir
discretamente com algo próprio a partir de sua questão. Essa
contribuição é aquilo que, medido a partir do que o leigo toma
sem interpretação pelo conteúdo do texto, é necessariamente
censurado como um imiscuir-se no interpretado e como um
ato arbitrário.3
Heidegger não pretende manter Nietzsche intacto. Nietzsche não
possui a fixidez necessária para que fique intacto. Heidegger o questiona
em nome daquilo que ele diz. Não seria isso que o próprio Nietzsche
desejaria, como encarnação do princípio da vontade de poder na seara
da interpretação? Parece bastante contraditório imaginar que Nietzsche
quisesse leitores fiéis, que mais se assemelhariam ao que ele chamava de
“rebanho” do que àqueles que ele nomeava como “espíritos livres”.
Essas questões de fidelidade perdem ainda mais importância
quando compreendemos o propósito de Heidegger ao ler Nietzsche.
Pois não se trata de curiosidade histórica ou de exploração erudita
na filosofia. Muito antes, ler Nietzsche é, para Heidegger, a questão
mais urgente. Pois, para ele, é nas palavras dos pensadores que vem à
luz a doação histórica do próprio ser, ou seja, o envio da essência da
história em sua temporalização, sendo que, neste caso, trata-se de nossa
humanidade ocidental. Nas palavras de Nietzsche, portanto, o que lemos
não são apenas vocábulos recheados de filosofia ou de anti-filosofia,
mas a decisão histórica em que nossa época está lançada.
Nesta medida, a despeito de seus protestos, Nietzsche pertence,
para Heidegger, à história da metafísica, entendida como nome para
a própria história ocidental em seu acontecimento mais essencial. Na
determinação do ente, ou seja, de tudo aquilo que é, enquanto vontade
de poder, Nietzsche teria aberto a época histórica em que vivemos. Ele
levou adiante a definição moderna do ser como vontade até seu cume,
liberando esta vontade de qualquer referência ulterior. Ela só quer
poder. Enquanto tal, ela não quer mais nada que não seja, em última
instância, ela mesma.
3
Heidegger, op. cit., p. 199.
Pedro Duarte de Andrade
266
Metas, valores ou idéias comparecem nesta maquinação da
vontade apenas como pretextos para que, a cada vez, ela possa garantir
seu próprio eterno retorno, pois, a rigor, a vontade não quer coisa
alguma – ela quer querer. Tudo serve apenas à ampliação de poder –
não deste ou daquele homem ou nação, mas da própria vontade. Tanto
assim que até o homem, diante disso, pode ser concebido como “capital
humano” ou “material humano”, já que mesmo ele está a serviço do
caráter incondicionado da vontade.
Foi isso que Heidegger chamou de “era da ausência de sentido
consumada”. Pois a vontade de poder determina os entes de tal modo
que dispensa, por sua própria essência, todo questionamento acerca do
sentido do ser por parte do homem. Na medida em que só quer poder, a
vontade proveria a “medida para a decisão quanto ao fato de só o eficaz
dever ser considerado como ente”.4 Em outras palavras, aquilo que não é
eficaz, mais do que não ter importância ou dignidade, simplesmente não
é. Buscar, por exemplo, o sentido ou a verdade do ser não é exatamente
eficaz, logo deve ser deixado de fora.
Pensar o ser, a entidade do ente, enquanto vontade de
poder significa: conceber o ser como a liberação do poder
em sua essência, de tal modo que o poder, vigorando
incondicionalmente, estabelece o ente como o objetivamente
efetivo no primado exclusivo contra o ser e faz com que o ser
caia em esquecimento”.5
Na dobra da vontade sobre si mesma enquanto vontade de poder,
ela instala o império das meras coisas, ou seja, dos entes, fora de toda
menção à pergunta sobre o seu ser. “Na objetivação, o próprio homem
e tudo o que é humano se transformam em mero fundo de reserva que,
computado psicologicamente, é inserido no processo de trabalho da
vontade de vontade”.6 De agora em diante, somente o objetivamente
eficiente deve valer.
Heidegger, op. cit., p. 288.
Heidegger, op. cit., p. 3.
6
Heidegger, op. cit., p. 296.
4
5
Nos ventos da ambigüidade: Heidegger leitor de Nietzsche
267
Daí a marcha da organização incondicionada daquilo que é o
“efetivamente real” encobrir não exatamente o ser mas, antes mesmo
disso, a própria possibilidade da pergunta por ele. De antemão, já está
decidido: só é o que é eficaz. Não estranha que, nesse cenário, palavras
como liberdade ou justiça, verdade ou coragem, tenham se tornado
inteiramente vazias na nossa época. É que o seu sentido não pode ser,
digamos, “preenchido” por nenhuma efetividade tecnicamente real ou
realizada. Sem o entrave da pergunta pelo sentido de ser, então, pode
a maquinação planetária dar vazão à sua sanha desenfreada com os
entes.
Faria parte dessa sanha da vontade, por exemplo, o ideal nazista
da “mobilização total”, expressão de Ernst Jünger que Heidegger
menciona no Nietzsche II. Para aqueles que insistem em criticar Heidegger
por conta de seu envolvimento com o movimento nacional-socialista
e seu posterior silêncio a este respeito, encontra-se aqui algo bem mais
importante: a interpretação filosófica daquilo que estava em jogo em tal
movimento. Em jogo estava, aliás, o próprio movimento, a mobilização
total, incessante e incondicionada, tal como determinada pela vontade de
poder. Nesta maquinaria sem limites, tem lugar a pretensão de domínio
incondicionado da Terra.
A era da consumação da metafísica – considerada a partir
do acompanhamento pensante dos traços fundamentais da
metafísica de Nietzsche – nos dá a pensar até que ponto nos
encontramos inicialmente na história do ser e até que ponto
precisamos experimentar antes disso a história como largar
o ser em meio à maquinação, um largar que é enviado pelo
próprio ser.7
Há, portanto, forte ambigüidade, pois é a história do ser que
nos entrega o ser largado em meio à maquinação, o que significa que
não adianta imaginarmos um desvio desta maquinação em prol de um
questionamento mais radical do ser. Pelo contrário. Somente através da
experiência profunda do que é essencialmente esta maquinação típica do
7
Heidegger, op. cit., p. 193.
268
Pedro Duarte de Andrade
mundo da técnica, podemos questionar propriamente o ser, pois este é o
envio histórico pelo qual ele chega até nós hoje. Por isso, o pensamento
de Nietzsche é tão crucial. Nele, podemos fazer a experiência de um tal
recebimento daquilo que somos em nossa época, tanto no que ela coloca
obviamente diante de nós quanto no que fica escondido em meio a isso.
Se o óbvio é o ente, cuja maquinação instala-se enquanto
vontade de poder, isto, ao mesmo tempo, encobre o ser, de onde o
pensamento recebe seu vigor. Na metafísica da vontade de poder, apenas
é radicalizada, para Heidegger, a tendência metafísica fundamental de
esquecimento do ser. Este esquecimento, contudo, não apenas esconde o
ser. Ele é também a sua preservação, a sua salvaguarda. Por isso, a história
da metafísica é, ambiguamente, o esquecer que guarda, o encobrir que
protege. Ela traz em seu bojo o insondável que, no entanto, reverbera
a cada vez: o ser.
Por isso, Heidegger considerou o passado essencial como
liberação. Pois ele não passou. Ele pode ser, antes, um início. E o
início, enquanto tal, só é o que é no próprio iniciar. Por meio disso, o
passado essencial “ultrapassa tudo o que chega depois dele e é assim
por vir”.8 Não por acaso, o último dos textos do Nietzsche chama-se
“Lembrança da metafísica”. É que ela “é a história do ser como o curso
contínuo a partir do início, um curso que deixa o retorno a outrora se
tornar uma urgência e a lembrança do início se tornar uma necessidade
extremamente urgente”.9 Isso vale para toda a história da metafísica,
inclusive para Nietzsche, já que, a rigor, ela toda “permanece afastada
do início de maneira igualmente essencial em seu começo tanto quanto
em seu fim”.10
Em cada coisa que pensa, Heidegger pensa o ser. E o ser, para
ele, é ambíguo, é vazio e riqueza11, é “promessa de si mesmo”. Por isso,
o pensamento de Heidegger, segundo ele mesmo indica12, precisa ser
ambíguo, evitando demonizações e elogios, pessimismos e otimismos,
Heidegger, op. cit., p. 2.
Heidegger, op. cit., p. 375.
Heidegger, op. cit., p. 377.
11
Dentre os momentos mais preciosos do Nietzsche II, de Heidegger, está o último capítulo da parte
intitulada “O niilismo europeu”, que se chama “O ser como o vazio e como a riqueza”.
12
Heidegger, op. cit., p. 191.
8
9
10
Nos ventos da ambigüidade: Heidegger leitor de Nietzsche
269
atingindo uma região aquém dessas clivagens: a região da ambigüidade.
É isso que explica suas idas e vindas ao interpretar Nietzsche enquanto
aquele que nos lança para a decisão de nossa época. Elas são apenas a
coragem que teve Heidegger de se deixar levar pelo vento do pensamento.
Nietzsche é a consumação da metafísica neste sentido ambíguo, pelo qual
a revela na sua forma mais nítida e radical, mas assim também a leva até
o seu limite extremo, como possível preparação de um outro início.
Periódicos permutados
Ágora – Estudos em Teoria Psicanalítica (Instituto de Psicologia – UFRJ)
Aletheia – Revista de Psicologia da ULBRA (ULBRA – Canoas-RS)
Análise & Síntese (Faculdade São Bento – Salvador-BA)
Análogos (PUC-RJ)
BIOETHIKOS (Centro Universitário São Camilo – São Paulo-SP)
BOLEMA – Boletim de Educação Matemática (UNESP – Rio Claro-SP)
Caderno Catarinense de Ensino de Física (UFSC – Florianópolis-SC)
Cadernos de Educação (Universidade Federal de Pelotas-RS)
Caderno de Pedagogia (Centro Univ. Moura Lacerda – Ribeirão Preto-SP)
Cadernos de Pesquisa (Fundação Carlos Chagas – São Paulo-SP)
Cadernos PET – Filosofia (UFPR – Curitiba-PR)
Ciência e Agrotecnologia (Universidade Federal de Lavras – MG)
Ciência & Educação (UNESP – Bauru-SP)
Comunicação & Educação (CCA-ECA-USP – São Paulo-SP)
Comunicações (Unimep – Piracicaba-SP)
Contexto & Educação (UNIJUÍ – Ijuí-RS)
Dialogia (Centro Universitário Nove de Julho - UNINOVE – São Paulo-SP)
Diálogo Educacional (PUC-PR – Curitiba-PR)
EccoS – Revista Científica (UNINOVE – São Paulo-SP)
Educação (PUC-RS – Porto Alegre-RS)
Educação e Cidadania (UniRitter – Porto Alegre-RS)
Educação e Filosofia (Universidade Federal de Uberlândia-MG)
Educação & Linguagem (IMS – São Bernardo do Campo-SP)
Educação e Pesquisa (Faculdade de Educação/USP – São Paulo-SP)
Educação em Revista (UFMG – Belo Horizonte-MG)
Educação em Questão (UFRN/CCSA – Natal-RN)
Educar em Revista (UFPR – Curitiba –PR)
Educere - Revista da Educação da UNIPAR (Umuarama-PR)
Estudos de Psicologia (PUC-Campinas-SP)
Estudos em Avaliação Educacional (Fundação Carlos Chagas – São Paulo-SP)
Ethica – Cadernos Acadêmicos (UGF-RJ)
Hispeci & Lema (Fafibe – Bebedouro-SP)
Ícone Educação (Unitri – Uberlândia-MG)
Ideação (Unioeste – Cascavel-PR)
Leopoldianum - Revista de Estudos e Comunicações (Unisantos – Santos-SP)
Linguagem, Educação e Sociedade (UFPI – Teresina-PI)
Linhas Críticas (UnB – Brasília-DF)
Paidéa – Cadernos de Psicologia e Educação (USP – São Paulo-SP)
Pesquisas e Práticas Psicossociais (UFSJ – São João del-Rei-MG)
Práxis Educativa (Universidade Estadual de Ponta Grossa-PR)
Proposições (Unicamp – Campinas-SP)
Psicologia em Revista (PUC-Belo Horizonte - MG)
PsicoUSF (Universidade São Francisco – São Paulo-SP)
Psicologia em Revista (PUC-Minas – Belo Horizonte-MG)
Quaestio - Revista de Estudos da Educação (UNISO - Sorocaba-SP)
Revista Brasileira de História da Educação (FE/USP – São Paulo-SP)
Revista Brasileira de Pós-Graduação – RBPG (CAPES – Brasília-DF)
Revista Contrapontos (UNIVALI – Itajaí-SC)
Revista da SPAGESP (Ribeirão Preto-SP)
Revista de Educação (PUC-Campinas-SP)
Revista de Educação Pública (UFMT – Cuiabá-MT)
Trabalho, Educação e Saúde (FIOCRUZ – Rio de Janeiro-RJ)
Signos (Centro Universitário Univates – Lajeado-RS)
Zetetiké (Unicamp - Campinas-SP)
Normas para publicação de trabalhos
O APRENDER é uma publicação que pretende divulgar trabalhos
sobre o processo educacional em suas variáveis filosóficas e psicológicas ou
contribuições de outras áreas do saber pedagógico a elas relacionadas.
O periódico define alguns enfoques temáticos para melhor orientar o
conteúdo dos trabalhos candidatos à publicação.
Filosofia da Educação:
• A aprendizagem como problema filosófico: como e em que condições
se dá a transmissão, construção ou apropriação do conhecimento.
• A Filosofia e a instituição escolar.
• Abordagem teórica das diferentes escolas pedagógicas.
• Diferentes conceitos e concepções de educação.
• Educação e Filosofia: as correntes filosóficas e sua relação com a
idéia de formação e os processos educacionais.
• Ética e Educação: a ética como fundamento para a formação e
a aprendizagem, a ética profissional do educador, entre outras
abordagens.
• Teorias da Pesquisa em Educação.
• Educação e Política: o caráter formador e transformador da educação
em seus aspectos político e filosófico.
• O papel da Filosofia nas transfor mações da educação
contemporânea.
• Novas tendências e tecnologias de ensino: aspectos filosóficos.
Psicologia da Educação:
• A aprendizagem como problema psicológico: como e em que
condições se dão a transmissão, construção ou apropriação do
conhecimento.
• Aspectos psicológicos voltados para o estudo do campo das
necessidades educativas especiais: dificuldades de aprendizagem,
educação especial, preparo e formação de professores, entre outros
pontos de vista.
• As escolas psicológicas e sua relação com os processos
educacionais.
• Novas tendências e tecnologias de ensino: aspectos
psicopedagógicos.
•
•
Psicanálise e Educação.
Psicologia Escolar/Educacional: trabalho docente, processo ensinoaprendizagem, aquisição da leitura e da escrita, interação professoraluno, cultura escolar, atuação do psicólogo na escola, entre outros
pontos.
• Psicologia do Desenvolvimento e Educação: aspectos psicomotores,
afetivos, cognitivos, lingüísticos, sociais, culturais e familiares.
• Relações humanas na escola.
• Sociedade e Educação: fatores psicossociais e de formação do
sujeito.
• Trabalho e Educação.
Obs.: Somente serão aceitos trabalhos que se enquadram em um ou mais dos
enfoques temáticos citados.
Envio dos Trabalhos
São recebidos para publicação artigos, ensaios, debates, resenhas,
traduções, entrevistas, relatos de caso, etc. Os textos enviados para análise
devem ser escritos em português, espanhol, inglês ou francês.
Os trabalhos candidatos à publicação devem ser enviados por e-mail,
com o texto anexo, para os seguintes endereços eletrônicos: leomaiabm@
gmail.com e [email protected]. Os trabalhos devem indicar os seguintes
dados de identificação:
• Título, resumo e palavras-chave no idioma do texto.
• Nome completo do(a)(s) autor(a)(es).
• Maior titulação (com indicação da área de conhecimento e nome
da instituição).
• Instituição de origem e função que está exercendo.
• Endereço eletrônico e telefone.
Formato dos Trabalhos
1. Os trabalhos devem ser digitados em Word for Windows e apresentados
segundo as especificações a seguir:
Artigos – até 20 páginas, incluídas as referências bibliográficas;
Resenhas – de três a cinco páginas;
Entrevistas e debates – de cinco a dez páginas;
Traduções – até 20 páginas.
2. A configuração do texto deve observar as seguintes especificações:
papel tamanho A4 (21 X 29,7), margens superior, inferior e laterais de 2
centímetros, espaçamento 1,5 entre as linhas e alinhamento justificado.
3. O título do trabalho deve vir em fonte Times New Roman, tamanho 12,
negrito e caixa alta, centralizado no alto da página inicial.
4. Dois espaços abaixo do título do trabalho, deve vir o nome do(s) autor(es)
em fonte Times New Roman, tamanho 12, em itálico, alinhado à direita
da página, seguido de asterisco, e, em nota de rodapé, deve-se indicar a
maior titulação (com a área de conhecimento e a instituição na qual foi
obtida), a instituição a que o(s) autor(es) se encontra(m) vinculado(s) e
endereço eletrônico.
5. Para artigo, dois espaços abaixo da indicação do(s) autor(es), deve vir o
resumo, no idioma da redação, acompanhado das palavras-chave (máximo
de cinco). O título, o resumo e as palavras-chave precisam ser traduzidos
para o inglês (Abstract e Key Words) ou francês (Résumé e Mots-clés).
6. O resumo (bem como o respectivo Abstract ou Résumé) deve ter no
mínimo 40 palavras e no máximo 100 palavras e ser redigido em um só
parágrafo.
7. Subtítulos devem vir em fonte Times New Roman, tamanho 12, em negrito,
somente com as primeiras letras maiúsculas e alinhados à esquerda da
página (não devem ser numerados).
8. As citações e referências bibliográficas devem seguir as normas da
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
9. Figuras e fotos, se houver, devem vir no corpo do texto, no local desejado
pelo autor, em preto e branco.
10. Gráficos, se houver, devem ser apresentados no final do trabalho, em
preto e branco, de maneira legível e com indicações e/ou legendas por
extenso.
Avaliação dos trabalhos
Os trabalhos candidatos à publicação são avaliados quanto a sua
qualidade e originalidade, por especialistas do assunto abordado. A escolha
dos pareceristas é feita, preferencialmente, entre os membros que compõem
o Conselho Editorial da revista.
Revisão
Os trabalhos aceitos para publicação serão submetidos à revisão de
linguagem. O APRENDER reserva-se o direito de realizar alterações sugeridas
pela revisão que não impliquem alterações no conteúdo. Os casos especiais
serão comunicados ao(s) autor(es), para sua avaliação.
Direitos autorais
O APRENDER detém os direitos autorais dos trabalhos publicados,
que não poderão ser reproduzidos sem autorização expressa dos editores.
Responsabilidade
O conteúdo expresso nos textos publicados é de responsabilidade
exclusiva de seus autores.
Exemplares do autor
Cada autor terá direito a três exemplares do número de publicação do
seu texto.
Aquisição de exemplares
• Catálogo on line: www.uesb.br/editora
• E-mails: [email protected] e [email protected]
Permutas
Aceitam-se permutas com periódicos nacionais e estrangeiros,
preferencialmente nas áreas de Educação, Filosofia e Psicologia.
Os contatos para esse fim podem ser feitos por meio dos endereços
eletrônicos: [email protected] e [email protected].
Aprender - Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb)
Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (Dfch)
Departamento de Ciências Humanas e Letras (Dchl)
Estrada do Bem-Querer, km 4
45083-900 - Vitória da Conquista – Bahia
Site: www.uesb.br/editora/publicacoes/aprender
Equipe técnica
Coordenação Editorial e Normalização Técnica
Jacinto Braz David Filho
Capa (arte gráfica)
Luiz Evandro de Souza Ribeiro
DRT - 2535
A foto da capa é de autoria de François Fédier, a quem agradecemos a gentil
cessão para a sua reprodução.
Ela retrata Heidegger junto aos participantes do seminário realizado em Le
Thor, em 8 de setembro de 1968. A fotografia foi inicialmente publicada no
livro de François Fédier, Soixante-deux photographies de Martin Heidegger. Paris:
Gallimard, 1999 (fotografia n. 50).
Editoração eletrônica e acompanhamento gráfico
Ana Cristina Novais Menezes
DRT - 1613
Revisão de linguagem (Textos em Português)
Leonardo Maia Bastos Machado (Editor responsável)
- Apresentação
- Heidegger e a arte de questionar
- Heidegger educador
- Kant entre o ficcionalismo de Vaihinger e a fenomenologia de Heidegger
- Freud se encaixaria no rol dos operários (Handwerker) das ciências naturais?
Considerações heideggerianas acerca da psicanálise freudiana
- Sobre a serenidade em Heidegger: uma reflexão sobre os caminhos do
pensamento
- A apreensão fenomenológica da vida fáctica de Heidegger
- Sobre o sentido de educar
Resenhas
- Ser e Verdade
- Nos ventos da ambigüidade: Heidegger leitor de Nietzsche
Maria Dalva Rosa Silva (Revisora - Edições Uesb)
- Heidegger e a Educação
- A determinação ontológica do Mundo: um perfeito a priori
- A Universidade na era da técnica - tarefas e desafios
Na tipologia Garamond 11/15/papel offset 90g/m²
Em agosto de 2008.